Eurico Marcos Diniz de Santi

Há barreiras institucionais para cobrar, criar ou aumentar tributos: no plano do direito, são limites legais e constitucionais ao poder de tributar; no plano lógico, são os limites da racionalidade, da coerência interna e não-contradição da administração tributária na interpretação e aplicação das normas tributárias ex vi do Art. 142 do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ctn">Código Tributário Nacional</a>.
A análise, aqui, estende-se a práticas administrativas aplicadas em quase todos os municípios do Brasil, mas mediante incisivo corte epistemológico, utilizarei como exemplo ilustrativo o munícipio de São Bernardo do Campo – em especial, por razão de laços afetivos que me aproximam da ilustre Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, na qual fui aluno e professor titular por concurso público entre 1995 e 2000.
O caso sob foco expõe erro grosseiro perpetrado por divergência e incoerência na interpretação entre as autoridades tributárias do município, ensejando abuso e desvio de finalidade na concreção normativa do instituto constitucional do IPTU progressividade.
Nesta unidade federativa, o início do procedimento para aplicação do IPTU progressivo é notificação de parcelamento e edificação ex vi Art. 6º da Lei 6.324/2013 e o Art. 7º do Decreto 19.110/2014. Contudo, a lei determina a suspensão do prazo diante da apresentação do projeto e, ainda, proíbe a aplicabilidade do IPTU progressivo desde a “aprovação do projeto” até o fluxo do prazo de dois anos para o contribuinte “iniciar a obra”, ex vi do inciso II do Art. 7º da Lei 6.186/2011.
Ocorre que, em São Bernardo do Campo, os contribuintes vêm sendo prejudicados por uma divergência interpretativa entre a Diretoria do Departamento de Planejamento Urbano da Prefeitura (DPU/DPE) e o Conselho Tributário Municipal (CTM).
A autoridade administrativa competente (Diretoria do DPU/DPE) entende, em conformidade com a literalidade expressa da lei municipal, que iniciada a obra deve ser eliminada a aplicação da crescente (dobrada) da alíquota progressiva do IPTU, devendo ser retomada a alíquota convencional. Diversamente, as decisões do Conselho Tributário Municipal, seguindo orientação de pareceres da Procuradoria Geral do Município, alteram a interpretação da autoridade competente, e de forma inovadora e criativa introduzem novo critério normativo inexistente na Lei do IPTU progressivo de São Bernardo do Campo (Lei 6.324/2013): o critério “conclusão da obra”.
O texto legal não se refere à “conclusão da obra”, mas a “início da obra”, deixando claro, neste contexto, que o contribuinte que “inicia obra”, regularmente amparada por projeto aprovado, não pode ser enquadrado na situação de imóvel “não edificado, subutilizado ou não utilizado” ex vi do Art. 6º da Lei 6.186/2011.
Além disso, o Conselho Tributário Municipal, contrariando o princípio da irretroatividade, ante a não realização do critério legal inexistente (conclusão da obra), vem determinando, outra inovação interpretativa, sem base legal: a aplicação retroativa do IPTU progressivo, dobrando as alíquotas para os exercícios passados, desde o momento da notificação que deu início ao procedimento.
Aqui, salta aos olhos a discrepância entre: (i) a legalidade aplicada para os contribuintes em geral pela Diretora do DPU/DPE; e (ii) a legalidade do tipo “justiça vingança” aplicada aos desafetos e irresignados que recorrem ao Conselho Tributário Municipal: na primeira, aplicada pelo órgão competente da Administração Tributária, os prazos para que o contribuinte apresente o protocolo do projeto e para iniciar a obra interrompem a aplicação do IPTU progressivo; na segunda, construída pela Procuradoria Geral do Município e pelo Conselho Tributário Municipal, os respectivos prazos para que o contribuinte apresente o protocolo do projeto e para que inicie a obra não interrompem a aplicação do IPTU progressivo. Cabe, aqui, o famoso ditado africano: “Quando dois elefantes brigam, quem sofre é a grama” (ou seja, o contribuinte).
A “Justiça vingança”, segundo Tércio Sampaio Ferraz Júnior, é problema institucional e revela-se pela oposição de duas concepções de direito retratadas pelas deusas gregas da justiça: Themis e Diké. Enquanto Themis – que é a deusa do interior e das fratrias – representa a justiça vingativa que se pauta por julgamentos éticos e morais, Diké é quem carrega a balança representativa da isonomia, da racionalidade, da legalidade e do Direito que evoluiu para além das tribos familiares, um dos pilares do Estado democrático.
Ademais, tributo não deve constituir sanção de ato ilícito. Desconsiderar os prazos legais oferecidos para que o contribuinte exerça a ação desejada (fazer o projeto, informar o protocolo do projeto, aprovar o projeto junto à Administração Municipal e iniciar a obra) é desfigurar o caráter constitucional do IPTU progressivo de alcançar a função social da propriedade para transformar o eventual descumprimento de tais expectativas normativas em instrumento de arrecadação desfigurados em sanção de ato ilícito: atos ilícitos são punidos com sanções previstas em normas penais e não mediante o expediente tributário e constitucional do IPTU progressivo que não visa aumentar a arrecadação do município, mas induzir a adequada função social da propriedade no território urbano .
Além disso, é fundamental frisar que a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade, em nenhum momento, colocam a “conclusão da obra” como o marco de suspensão da progressividade da alíquota do IPTU.
A interpretação sistemática da Constituição Federal e do Estatuto da Cidade não permitem entender que o “uso adequado do imóvel” e o “cumprimento da obrigação” só estarão satisfeitos com o arbitrário, subjetivo e criativo critério da “conclusão da obra”.
“Há crimes de paixão e crimes de lógica. O Código Penal distingue um do outro, bastante comodamente, pela premeditação”, diz Albert Camus: talvez os atos do Conselho Tributário Municipal tenham sido por paixão, prática comum entre as administrações tributárias brasileiras, mas, em verdade, configuram simples “crimes de lógica”.

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JOTA

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