Osny da Silva Filho

No último dia 3 de outubro, a <a href="https://www.jota.info/legislativo/camara-aprova-pl-que-define-marco-das-garantias-03102023">Câmara dos Deputados aprovou a versão final</a> do <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2309053">PL 4188/2021</a>, conhecido como Marco Legal das Garantias. O texto segue, agora, para sanção presidencial.
Sua aprovação foi celebrada como medida apta a reduzir a inadimplência, e, com ela, o spread bancário, componente perverso do custo do crédito no Brasil. Reformas microeconômicas são comumente justificadas por esse propósito. O Marco Legal das Garantias tem, no entanto, méritos mais palpáveis e imediatos.
O primeiro deles é o seu itinerário. Diferentemente de reformas legislativas anteriores, desencadeadas, nos piores casos, por medidas provisórias inopinadas,<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> seu texto foi produzido por especialistas e avalizado por diferentes instituições, incluindo o Banco Central.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Com isso, seus elementos mais controvertidos – a criação das enigmáticas instituições gestoras de garantias ou IGGs e a reversão de entendimento jurisprudencial a respeito da proteção do bem de família hipotecado, em particular – foram prudentemente eliminados.
As principais inovações do projeto ora aprovado dizem respeito a elementos estruturais do direito das garantias, a começar pela disciplina da hipoteca, que passa, agora, a admitir excussão extrajudicial mediante previsão nos contratos. A mudança reaproxima os regimes executivos dos créditos garantidos por hipotecas e alienações fiduciárias de bens imóveis, corrigindo uma antiga distorção do direito brasileiro. Em linha com a literatura e a prática internacional, o Marco Legal das Garantias confere ao credor hipotecário o poder de promover a alienação do imóvel no prazo de 180 dias, sem precisar transferir para si o bem.
Outra ordem de inovações diz respeito ao chamado “recarregamento” de garantias: a extensão, a novas obrigações, de hipotecas e alienações fiduciárias constituídas sobre dívidas parcialmente adimplidas. A figura viabiliza a redução do chamado “capital morto”, isto é, da propriedade (em sentido econômico) que não pode ser convertida em capital financeiro.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> O recarregamento se subordina, no entanto, a previsão específica no título constitutivo da garantia.
Ainda no campo das inovações estruturais, o Marco Legal das Garantias disciplina a alienação da chamada “propriedade superveniente”, a propriedade já alienada fiduciariamente, equivalente funcional das hipotecas sucessivas. Embora já fosse reconhecida pela comunidade jurídica,<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> a figura não vinha sendo empregada pelo mercado em razão de sentimento de insegurança a respeito de sua disciplina. O texto aprovado aplaca esse desconforto ao explicitar seus dois principais pilares jurídicos: a prioridade do primeiro credor e a sub-rogação dos credores seguintes.
O marco também modifica o procedimento de excussão do bem alienado fiduciariamente, de modo a estabelecer hipótese de apropriação comutativa ex lege do bem objeto da garantia. A novidade reflete a tendência civilista de superação da proibição de pactos marcianos, apontando para o modelo de excussão adotado na França desde 2006.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> Impõe-se, nesse caso, a realização de dois leilões antes da apropriação, pelo credor, do bem desembaraçado.
Para além das estruturas, o marco inova no campo das funções de garantia, em que se incluem procedimentos executivos (como a busca e apreensão extrajudicial de veículos), soluções transacionais (com destaque para a conciliação prévia ao protesto de títulos) e competências notariais. Estas últimas alcançam a Lei 8.935 de 1994, ora modificada para reconhecer que os tabeliães de notas podem atuar como árbitros, promover de medidas de autocomposição e certificar o implemento (ou a frustração) de condições e outros elementos negociais.
Embora nenhuma dessas competências seja propriamente nova – todas elas já poderiam ser exercidas pelos notários –, sua explicitação é positiva. A certificação notarial, em particular, viabiliza um conjunto bastante amplo de atividades, pois não se restringe a condições em sentido estrito (as cláusulas definidas no artigo 121 do Código Civil), mas compreende outros eventos, a exemplo de consideranda verificáveis (como as representations and warranties), mecanismos de resolução autônoma de impasses societários (como as cláusulas de shotgun) e estipulações precedentes (as conditions precedent importadas da prática anglófona).<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
O Marco Legal das Garantias também inova ao reconhecer a gestão notarial de escrow accounts,<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> contas vinculadas à satisfação de exigências negociais predeterminadas.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> A figura encontra paralelo no ordenamento jurídico italiano, que, desde 2017, com a modificação da Lei 147 de 2013, admite o depósito facultativo do preço do negócio perante o notário. O depósito em contas correntes dedicadas reforça a integridade econômica de direitos expectativos através da colaboração notarial.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
A atualização da disciplina das garantias e de suas formas de execução e a introdução de inovações dirigidas à facilitação dos negócios vêm em boa hora. O preço da amplitude do Marco Legal das Garantias é a carência de unidade sistemática, que deverá ser buscada por outras vias, a começar pela doutrina.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Osny da Silva Filho, “Liberdade econômica e autoajuda empresarial”, Jota, 3.5.2019, disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/liberdade-economica-e-autoajuda-empresarial-03052019. Discussão em Judith Martins-Costa e Guilherme Nitschke (coords.), Direito Privado na Lei da Liberdade Econômica: comentários, São Paulo: Almedina, 2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> As principais novidades trazidas pelo MLG foram discutidas em 15 de junho na FGV Direito SP, em evento que reuniu Marcos Barbosa Pinto (Secretário de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda), Paulo Henrique Rodrigues Pereira (Secretário Executivo do CDESS, o “Conselhão”), Rachel Curcio Ximenes (Presidente da Comissão de Direito Notarial e de Registros da OAB-SP) e Alexandre Kassama (Diretor do Colégio Notarial do Brasil).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> A origem da proposta na literatura brasileira pode ser traçada à tese referencial de Fábio Rocha Pinto e Silva, Garantia das obrigações, São Paulo: IASP, 2017.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Enunciado n. 506 da V Jornada de Estudos de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “Estando em curso contrato de alienação fiduciária, é possível a constituição concomitante de nova garantia fiduciária sobre o mesmo bem imóvel, que, entretanto, incidirá sobre a respectiva propriedade superveniente que o fiduciante vier a readquirir, quando do implemento da condição a que estiver subordinada a primeira garantia fiduciária; a nova garantia poderá ser registrada na data em que convencionada e será eficaz desde a data do registro, produzindo efeito ex tunc.”
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Discussão em Gisela Sampaio da Cruz Guedes e Aline Miranda Valverde Terra, “Pacto Comissório vs. Pacto Marciano: estruturas semelhantes com repercussões diversas”, in Gisela Sampaio da Cruz Guedes, Maria Celina Bodin de Moraes e Rose Melo Vencelau Meireles (org.), Direito das garantias, São Paulo: Saraiva, 2017.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Referências na monografia de Gaetano Petrelli, La condizione «elemento essenziale» del negozio giuridico: teoria generale e profili applicativi, Milano: Giuffrè, 2000.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> A origem da categoria é geralmente associada ao julgado Stonewall v. McGown, 231 S.W. 850, 851 (Tex. Civ. App. 1921), no qual o termo assume o significado de garantia em sentido amplo.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Sobre o patrimônio separado e figuras correlatas, ver Marcel Edvar Simões, O patrimônio no direito civil e no direito empresarial: patrimônios destinados, patrimônios separados e patrimônios autônomos, Indaiatuba: Foco, 2023.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Peter L. Murray e Rolf Stürner, The Civil Law Notary – Neutral Lawyer for the Situation, München: Beck, 2010, pp. 3-6.

Dinheiro, Real Moeda brasileira

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JOTA

Marco Legal das Garantias tem méritos mais palpáveis e imediatos

Inovações no direito das garantias

Atualização da disciplina das garantias e introdução de inovações para facilitação dos negócios vêm em boa hora