Frederico do Valle Abreu

Persiste nos tribunais discussão sobre interpretação de claríssimo dispositivo de lei. Diz o art. 833, IV, do novo Código de Processo Civil (CPC/15): “Art. 833. São impenhoráveis: ... “IV - os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º”.
Por sua vez, a “ressalva” do § 2º assim exprime: “§ 2º O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm#art528%C2%A78" target="_blank" rel="noopener noreferrer">art. 528, § 8º </a>, e no <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm#art529%C2%A73" target="_blank" rel="noopener noreferrer">art. 529, § 3º”.</a>
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>A regra está clara, mas os tribunais, diante de algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), continuam a tergiversar sobre as hipóteses e limites de cabimento de penhora de vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios, bem como quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, ganhos de trabalhador autônomo e honorários de profissional liberal, que chamaremos de forma geral aqui e para fins didáticos como “salário”.
Quanto a isso, é de se ver, exemplificativamente, recente acórdão do STJ: “[...] 2. A exceção à regra da impenhorabilidade contida no art. 833, § 2º, do Código de Processo Civil de 2015 se aplica somente aos casos de prestação alimentícia, não se estendendo às hipóteses de verba de natureza alimentar, como são os honorários advocatícios. Fica ressalvada, porém, a hipótese em que, com base na regra geral do artigo 833, IV, do CPC/2015, a penhora de salários é deferida, mas com a preservação de percentual capaz de garantir a subsistência digna do devedor e de sua família. Precedente da Corte Especial. [...] (AgInt no AgInt no AREsp 1645585/DF, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/11/2020, DJe 24/11/2020).
O precedente da Corte Especial do STJ mencionado é o EREsp 1582475/MG, julgado em 03/10/2018, formado por maioria de votos e que não foi submetido ao regime de recurso especial repetitivo. Frisa-se que o próprio STJ não observou nesse julgamento o entendimento firmado no REsp 1184765/PA na sistemática do recurso repetitivo.
Em que pese não tenha o STJ se manifestado nesse julgado expressamente sobre a (im)possibilidade de penhora de 30% dos vencimentos, decidiu, no que interessa para a presente questão, que a penhora eletrônica dos valores depositados nas contas bancárias não pode descurar-se da norma inserta no artigo 649, IV, do CPC/73 (com a redação dada pela Lei 11.382/2006, à época aplicável), segundo a qual são absolutamente impenhoráveis os salários e verbas afins, salvo as exceções legais.
A questão já foi trazida em 2018 por Lênio Streck<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Ele insistiu que valores não poderiam valer mais do que a lei, muito menos desejos e subjetivismo do magistrado, de modo que "juiz não pode ignorar a lei com base em princípios que ele mesmo inventou ou, ainda, mediante o uso de uma inexistente ponderação de princípios, que, por certo, deixaria corado o seu criador, Robert Alexy. Desafio que se demonstre que, em algum momento, havendo uma regra que estipula claramente determinada questão, Alexy aceitaria fazer uma ponderação que envolvesse, por exemplo, a colisão entre o mínimo existencial (como valorar?) e o direito de cobrar uma dívida (há direito fundamental nisso?). [...] Jamais Alexy disse que bastaria pegar um princípio em cada mão e dizer uma palavra mágica como ‘estou ponderando’ e... fiat lux”.
De fato, Kelsen e Alexy pensaram em uma espécie de moldura a ser transposta para o ordenamento jurídico, mas para cada um a “moldura” é diferente. Em Kelsen, ela é propriamente fornecida pelo legislador nas regras positivadas; em Alexy, por normas intrinsecamente racionais, que exigem coerência.
Desse modo, na teoria de Alexy pode até não existir uma só decisão correta, mas as decisões, todas elas, devem ter coerência e racionalidade dentro do sistema e das próprias regras das quais são deduzidas. Penso que foi pensando nisso o que Lênio Streck trouxe o “desafio” na análise da teoria em Alexy. E está mesmo correto.
À época do CPC/73, havia o art. 649, IV, que proibia a penhora do salário e afins, com a exceção do parágrafo único, que mesmo no caso do salário permitia quando a dívida era de alimentos. Com o CPC/15, a regra se manteve e sofreu mais uma exceção: o salário continua impenhorável com relação às dívidas do “assalariado”, excetuadas agora não só as dívidas de alimentos, mas também os valores acima de 50 salários mínimos recebidos pelo devedor.
O critério foi o do legislador e não há nenhuma incongruência ou falta de clareza na regra e suas duas exceções. Basta ler novamente o art. 833, IV e seu § 2º. Portanto, só é (ou só deveria ser...) admissível a penhora do salário do devedor em caso de dívida de prestação alimentícia, independentemente de sua origem ou valor, bem como das importâncias excedentes a 50 salários mínimos mensais porventura depositadas em prol do devedor.
<blockquote class="jota-article__eye">O STJ, como se vê, firmou de lege ferenda uma terceira (e ilegal) exceção à impenhorabilidade do salário: a impenhorabilidade de salários pode ser excepcionada quando for preservado percentual capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família.</blockquote>
O percentual deve ser definido no caso concreto, sendo que cabe ao Juiz definir, basicamente, quanto vale a dignidade do trabalhador devedor em sua ou de sua família “subsistência digna.”
O que então vem a ser essa subsistência digna? Trata-se de um conceito jurídico indeterminado criado pelo STJ quando a lei de nenhuma maneira trouxe qualquer preceito aberto para fins de interpretação da exceção. Por isso é que digo que, neste caso (e em outros...) o STJ decide de lege ferenda de forma desautorizada (trata-se de aplicação simples dos princípios da separação dos poderes e da legalidade), até porque não há no art. 833, IV, § 2º, do CPC, nenhuma lacuna, obscuridade ou qualquer preceito aberto que exigisse do intérprete, de forma legal, alguma interpretação ou integração.
Basta trazer à lume os arts. 140, parágrafo único, do CPC/15, ou 4º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB) para se constatar as hipóteses legais de quando isso seria possível ou exigível do magistrado em nosso ordenamento jurídico: Art. 140, parágrafo único, CPC/15: “O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei.” Ou o art. 4º da LINDB: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”
No caso das duas (e somente duas) exceções da regra da impenhorabilidade do salário não há qualquer disposição “aberta” ou conceito jurídico indeterminado, de modo que de nenhuma maneira o Judiciário está autorizado a criar essa “abertura semântica” para trazer ao debate subjetivismos e principiologia que a lei não quis.
Vale frisar: o Tribunal da Cidadania acabou por criar hipótese de integração e julgamento por equidade e principiologia quando a lei não lhe autorizou. E isso repercute, por óbvio, diretamente nos entendimentos dos tribunais locais e na vida do cidadão, deixando aflorar as paixões e critérios pessoais do juiz em cada caso, quando o legislador já tinha democrática e legitimamente escolhido o critério bastante objetivo e claro.
É de se indagar ainda: qual o critério normativamente válido para ultrapassar essa regra expressa do art. 833, IV, e admitir a penhora de parte do valor mensal recebido pelo devedor que recebe o salário? Qual o fundamento jurídico-normativo válido para se trazer ao jogo “exceções implícitas” que ninguém vê na ratio legis ao analisar o § 2º do mesmo dispositivo? É possível encontrar “outras exceções implícitas” no contexto claramente explicitado pelo legislador, com base em suposições, conjecturas e paixões afetas ao mercado e com argumentos pragmáticos para satisfazer a pretensão do credor quando a lei assim não permite?
Reclama-se tanto do “ativismo judicial” e eu vinha sempre afirmando que o Judiciário não poderia ser considerado sozinho o vilão da história, pois o legislador em muito contribuía com isso, permitindo de forma exacerbada a vagueza semântica na lei posta, o que traz a consequência desse casuísmo revisionista. No caso da impenhorabilidade do salário, porém, errei. O Judiciário está a ser protagonista de um ativismo ilegítimo in casu, pois com o texto da lei no episódio não há nada de errado e nem uma vírgula sequer de qualquer discricionariedade para a criação de “exceções implícitas”...
Não pode haver a criação pelo Judiciário do que Karl Olivercrona e Alf Ross chamaram de palavras ocas<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, que ampliam e generalizam tanto a discussão que acabam por não ensejar ao intérprete nenhum direcionamento para o seu significado no mundo real, ficando ao final sem correspondência alguma. Aliás, como ensina Ross, “ninguém pensa mais em deduzir de princípios a priori regras específicas sobre mútuo, aluguel, penhor etc...”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
O próprio Roscoe Pound, defensor do realismo norte-americano, preocupa-se com a segurança jurídica e reforça que há de se ter muito cuidado, pois “...aquele que faz o direito judicialmente não está apenas fazendo uma regra para o futuro. Ele está construindo um preceito jurídico que vai se aplicar às transações do passado, assim como do futuro, e está fazendo isso de forma imediata, com referência a uma controvérsia surgida no passado. Daí que o interesse social na segurança geral requer que ele não tenha a mesma liberdade que o legislador...”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Não se diga que não se sabe que há ─ e de fato há ─ devedores que abusam de sua posição e que agem de má-fé, mas isso não implica dizer que o Judiciário pode criar conceitos abertos e indeterminados quando a lei não o fez. Se não se entende por correto o critério do legislador (exceções bem claras: dívida de alimentos e valores acima de 50 salários-mínimos), é questão moral ou de inconstitucionalidade.
E se for de inconstitucionalidade, há meios jurídicos técnicos e previstos em lei para essa discussão, também já previamente escolhidos democrática e legitimamente pelo legislador. Basta utilizá-los a fim de que se cumpra a lei e alcance o credor a satisfação do seu crédito.
A questão, pois, não é de dignidade, mas de legalidade e de constitucionalidade. Não pode o Judiciário se valer de argumentos pragmáticos para criar conceitos jurídicos indeterminados não existentes na lei, contribuindo ainda mais para o problema da segurança jurídica.
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O episódio 49 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre o que o Supremo Tribunal Federal precisa dizer sobre a prisão de deputados. Ouça:
https://youtu.be/9Tv7gNDT4Rw
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> v. STJ erra ao permitir penhora de salário contra expressa vedação legal!. Disponível em <a href="https://www.conjur.com.br/2018-jan-04/senso-incomum-stj-erra-permitir-penhora-salario-expressa-vedacao-legal#:~:text=Insisto%3A%20%E2%80%9Cvalores%20n%C3%A3o%20valem%20mais,o%20seu%20criador%2C%20Robert%20Alexy" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.conjur.com.br/2018-jan-04/senso-incomum-stj-erra-permitir-penhora-salario-expressa-vedacao-legal#:~:text=Insisto%3A%20%E2%80%9Cvalores%20n%C3%A3o%20valem%20mais,o%20seu%20criador%2C%20Robert%20Alexy</a>. Acesso em 14.2.2021.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> OLIVERCRONA, K. Linguage jurídica y realidade. Trad. Ernesto Valdéz. México, Fontamara: 1995.p. 34-6; ROSS, A. Tû-Tû. Trad. de Edson Bini. Prefácio: Alaôr Caffé Alves. São Paulo, Quartier Latam: 2004.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> cf. Direito e Justiça. Trad. de Edson Bini. Prefácio: Alaôr Caffé Alves. 2ª ed. Bauru, Edipro: 2007. p. 297.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Law and morals – jurisprudencie and ethics. North Caroline Law Review, vol 23, 1945. p. 185-222. Trad. livre. Disponível em <a href="https://scholarship.law.unc.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=https://www.google.com/&amp;httpsredir=1&amp;article=1651&amp;context=nclr&amp;hx003E" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://scholarship.law.unc.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=https://www.google.com/&amp;httpsredir=1&amp;article=1651&amp;context=nclr&amp;hx003E</a>. Acesso em 14.2.2021.

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JOTA

Judiciário não pode criar conceitos abertos e indeterminados quando a lei não o fez

Ainda a questão da impenhorabilidade do salário na execução

Impenhorabilidade: não pode o Judiciário se valer de argumentos pragmáticos para criar conceitos jurídicos indeterminados