Rodrigo Leme

O título deste artigo faz alusão ao livro do professor Yochai Benkler chamado The Penguin and the Leviathan: how cooperation thiumphs over self interest. Em suma, parte da contribuição do professor de Harvard por meio da presente obra foi de fazer um paralelo interessante entre a visão de humanidade trazida à tona por Thomas Hobbes, fundada em um governo hierárquico com soberania absoluta, e o Penguin, famoso símbolo do software Linux, que representaria a pedra angular do cooperativismo (potencializado pela internet<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>). O objetivo do autor é de demonstrar que o mundo de hoje não pode mais ser representado, apenas, pelos tentáculos rígidos do Estado, guiados pela mão invisível do mercado, e que a sociedade da informação tem que se dar conta que a horizontalidade e cooperação nas relações sociais e (ou) econômicas seria uma realidade incontestável da sociedade da informação.
Esse não é o momento de aprofundar a discussão sobre os commons<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, afinal de contas, o tema é da mais alta complexidade. A citação do livro acima visa, tão somente, posicionar o leitor no contexto de um tema bastante atual que é a formação das dualidades (e de como isso influencia o posicionamento dos direitos autorais na era digital). A dicotomia entre velho e novo é bastante substancial quando se discute a propriedade intelectual na era digital. Esta, forjada no momento histórico da modernidade, representaria uma estrutura de coerção e permissão que, para alguns, seria refratária ao modelo de sociedade construído sob os pilares da rede. O novo, nesse sentido, se traduziria como sendo um modelo em que o acesso à cultura e a colaboração ditaria os rumos da sociedade.
Antes do recrudescimento da internet, os ataques ao núcleo da permissão em relação a esses bens imateriais eram bastante diminutos. Isso se deu, em grande medida, pela dificuldade de reprodução em grande escala (e com qualidade) dos suportes físicos que armazenavam as obras. Pierre Levy, no contexto da informação digitalizada, lembra que ela pode ser processada automaticamente, com grau de precisão quase absoluto, muito rapidamente e em grande escala quantitativa<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. O movimento da digitalização, assim, eliminou diversas barreiras ao acesso a conteúdos protegidos, por exemplo, por direitos autorais (filmes, músicas, jogos eletrônicos, software, etc). Esse fato, na verdade, já não é novidade para ninguém. A grande questão é: quais as reais consequências disso? Como manter as bases da propriedade intelectual, especialmente do direito autoral, num cenário como esse?
Algumas inquietações surgem quando se avalia a problemática sob esse viés. Caso essa dicotomia seja, de fato, verdadeira, ela invariavelmente leva a conclusão, tomando em consideração a tese dos defensores do “novo”, que as bases robustas da propriedade intelectual não se coadunam com o ciberespaço (num sentido de superação). É bem verdade que autores como Lawrence Lessig<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> vão apresentar certas soluções que tendem à harmonia. Um dos exemplos é a própria licença Creative Commons<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Porém, neste caso, o bem intelectual distribui-se quase que como integrante do domínio público. Existem ressalvas importantes em relação a essa ferramenta como pilar de harmonização entre propriedade intelectual e a rede<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Importante frisar, contudo, que para que essa superação ocorra, o movimento dever ser abrupto de modo a criar um novo paradigma (no sentido conferido por Thomas Kuhn<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>), ou mesmo, fazendo uma analogia à inovação, se desenvolver de forma destrutiva (vide a destruição criativa de Schumpeter). A dualidade entre velho ou tradicional (Leviathan) e o novo ou moderno (Penguin) nem sempre é suficiente para explicar a realidade como posta, especialmente no contexto dito pós moderno. Por isso, no título, o “entre”, que direciona para a visão de síntese em relação ao debate. O Wikipedia, ferramenta fabulosa que denota um dos maiores progressos da rede, não obstante (por meio da concorrência de mercado) ter eliminado a demanda por enciclopédias (sejam físicas ou virtuais, vide o falecido Encarta da Microsoft), por inúmeras razões, não incitou um movimento generalizado de modo a traduzir a obsolescência da propriedade intelectual na era virtual. Esta ainda se mostra como sendo fundamental na economia de mercado da sociedade da informação. A demanda pelos bens culturais produzidos pelos grandes players da indústria do entretenimento não apenas ainda existe, como cresce em muitos aspectos. E a propriedade intelectual, nesse contexto, se mostra fundamental para a recuperação do investimento e do incentivo para a criação.
Nessa linha de raciocínio, tem-se que a dicotomia que enseja(ria) essa “superação” não traduz a realidade de forma contundente, exigindo, assim, que busquemos entender como uma eventual harmonia poderia se construir. Para uma intelecção precisa daquilo que se pretende dizer, talvez seja oportuno trabalhar com a sempre útil dialética tradicional: tese, antítese e síntese.
A tese
A propriedade intelectual foi forjada na modernidade sendo potencializada pela revolução burguesa que enxergou na proteção rígida da propriedade (aqui incluída a propriedade intelectual) um escudo contra os mandos e desmandos do Estado absolutista. Durante muito tempo a noção de propriedade ficou intocada. No mundo “físico” uma das mais importantes ameaças foi o próprio comunismo. No âmbito imaterial (objeto desse breve texto), a internet. Segundo Slavoj Zizek, aliás, esta auxiliaria na reprodução de uma espécie de comunismo 2.0: a própria natureza da World Wide Web parece ser comunista, tendendo ao livre fluxo de dados – CDs e DVDs estão aos poucos desaparecendo, milhões de pessoas simplesmente baixam músicas e vídeos, quase sempre de graça. É por isso que o establishment empresarial se emprenha numa luta desesperada para impor sobre sesse fluxo a forma da propriedade privada mediante a aplicação das leis de propriedade intelectual<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>. 
 Nesse contexto, o poder dominante tendeu, naturalmente, a visualizar a solução dentro do núcleo da propriedade intelectual, com foco nos direitos autorais (área mais afetada pela digitalização). Em outras palavras, os esforços do tal (neo?) establishment empresarial foi no sentido de buscar tornar a proteção mais robusta, tentando-se ampliar o leque de restrições, agora, manifestadas no ciberespaço. Ou seja, o objetivo foi, de alguma forma, fazer crer que o ambiente digital em nada mudaria as bases da propriedade intelectual em geral, e dos direitos autorais em particular. A aplicação desses direitos apenas se manifestaria em outro ambiente, sendo as violações, independentemente de qualquer argumento, punidas da mesma forma. A ascensão desses argumentos atingiu ápices como o desenvolvimento dos falecidos projetos SOPA e PIPA<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> e da própria Lei Hadopi na França, que zela por uma abordagem rigorosa que pode, até, resultar na suspensão ao acesso à internet por parte do infrator.
A antítese
A propriedade intelectual passou a ser vista, para alguns autores, com o símbolo de algo já superado e, até certo ponto, um tanto quanto démodé. O discurso crítico a esses direitos ultrapassou o campo unicamente jurídico e passou a incorporar, entre outras coisas, aspectos sociológicos e econômicos. Do ponto de vista do primeiro, por exemplo, destaca-se a própria ideia de cooperação como forma de viabilização de uma nova estrutura social e econômica que não se resumiria num sonho utópico, mas em pesquisas rigorosas das ciências comportamentais<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>. Em relação ao segundo (aspecto econômico), a digitalização eliminaria um conceito econômico básico que é a noção de escassez (levando em conta as próprias características de Levy sobre a digitalização, se estaria lidando, dessa forma, com bens não escassos).
Nessa linha, passou-se a considerar a disseminação inadvertida na rede dos bens (culturais?) protegidos por direitos autorais como algo intrínseco à própria formação da internet, que zela, justamente, pelo compartilhamento e cooperação. Buscou-se provar, com exemplos como o Wikipedia, que o processo em si mudou<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>, demonstrando que nem sempre os incentivos que emanam da velha economia de mercado servem para explicar as motivações humanas na construção de conhecimento e cultura (calcada no livre acesso por parte da comunidade global). Esse mesmo acesso livre deveria ser preservado no caso dos bens produzidos pelo poder empresarial. Distante, em princípio, de buscar soluções de adaptação entre os direitos autorais e a rede, adeptos da “cultura livre” iniciaram uma outra cruzada, mas contra qualquer forma de controle (ou com um patamar absolutamente mínimo). A noção de contrato de licenciamento de software baseado em copyleft, talvez seja um dos melhores exemplos de como a doutrina aqui representada pela antítese fricciona contra os elementos do copyright. 
A síntese (?)
Atingimos, aqui, o ponto alto do debate. Por estar-se discutindo elementos de cunho subjetivo, não podemos afirmar de forma categórica que já vivenciamos o momento de síntese. Por outro lado, e com base nas premissas aqui exploradas, pensamos existir elementos que, ao menos, possam servir de ferramentário para que atinjamos esse patamar.
Antes, uma questão prejudicial. Pensa-se que a propriedade intelectual é fundamental na economia de mercado (também no ambiente digital), mas ela não está imune a gradativa diminuição de importância por atos do próprio mercado. Se um movimento semelhante ao que aconteceu com as enciclopédias ocorrer nos mercados de filme e música<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>, por exemplo, a propriedade perde parte da sua razão de ser (pelo menos da forma como usualmente a conhecemos). Como sustentar a propriedade intelectual se num futuro próximo for possível produzir filmes de alta qualidade (usando o YouTube, por exemplo), em que o modelo de negócio se baseie, justamente, no compartilhamento? É um pouco do que vemos na própria indústria de software. Mas frise-se: nesse exemplo, um tanto quanto radical, a perda da importância da propriedade intelectual surge como um novo direcionamento de mercado, não por imposições doutrinárias, etc.
Partindo-se do pressuposto, então, que a propriedade intelectual continua fundamental no ambiente digital, mas que este novo cenário traz elementos transformadores que impactam diretamente naquela, como pensar numa harmonização que leve a tal síntese? A sua importância também no ambiente digital não significa que ela não deva passar por transformações, sejam de cunho jurídico, ou mesmo, de caráter econômico. Prospectemos algumas delas.
No âmbito econômico, já se nota que o movimento de streaming<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a> nas áreas de música e cinema demonstra que as grandes empresas conseguiram, ao mesmo tempo, preservar os seus bens imateriais e proporcionar ao consumidor um serviço acessível e de qualidade. Testemunha-se uma adaptação nos modelos de negócio tradicionais usando os benefícios da era digital em seu favor.
Já no âmbito jurídico (e político?), o desafio é maior. Ao que tudo indica, de modo geral, a ideia de proteção ainda se baseia num recrudescimento da rigidez das normas, alinhavado com elementos punitivos. Nesse ponto, a convergência se mostra mais complexa. A síntese ou harmonização apenas terá o condão de ocorrer em ponto ótimo quando houver uma reflexão profunda sobre alguns tópicos. Destaca-se, entre outros: a) adequação e amplitude do Fair Use, seja aquele adaptado ao modelo de civil law, ou mesmo, ao da common law, de modo a refletir-se sobre os usos que podem ser considerados justos, especialmente numa era em que tudo possui fácil acesso (absorvendo-se conceitos afetos a matéria de Direito e Economia); b) aprofundamento na discussão sobre o domínio público, sobretudo, fazendo um paralelo entre prazo de proteção Vs facilidade de ganhos por partes das empresas em decorrência das inovações mercantis da era da informação. Ou seja: justifica-se, ainda, um prazo tão extenso num momento em que as empresas possuem formas muito mais eficientes de recuperar o investimento num curto espaço de tempo? Num tempo em que a obsolescência da informação é quase que instantânea?; c) repensar, ainda no contexto do uso, formas de rearranjos nas obras que não tenham intuito de lucro; d) harmonização entre os sistemas americano e europeu de modo a evitar discursos convenientes que atendam a uma situação específica; e) aprofundamento na discussão sobre a responsabilização dos intermediários na rede, que preserve tanto o usuário quanto o criador; f) preservação do acesso à internet; g) reformulação das condutas puníveis na esfera penal, sobretudo, em atividades com intuito de lucro; etc.
Enfim, tais reflexões foram pensadas na semana em que comemoramos mais um dia (26 de abril) em homenagem a propriedade intelectual (na rede). Assim como os trabalhadores da geração X para trás se aperfeiçoaram com as novas tecnologias, a nossa boa e velha propriedade intelectual também deve fazer o mesmo. ______________________________________________________________________
*Este é o terceiro de uma série de cinco artigos escritos para marcar o mês em que se comemora o Dia Mundial da Propriedade Intelectual (World IP Day). A data, 26 de abril, é celebrada anualmente pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO) e reforça a atenção da sociedade para a necessidade de proteção dos direitos imateriais como forma de impulsionar a inovação e a criatividade.
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Vale notar que a discussão sobre o cooperativismo não se resume, apenas, ao mundo digital. Nesse sentido, para quem quiser se aprofundar nesse debate, mas no mundo físico, recomenda-se o livro da autora americana Elinor Ostrom, Governing the Commons. 
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Noção que denota, em resumo, o compartilhamento de conhecimento e (ou) recursos físicos.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> LEVY, Pierre. Cibercultura. p. 52
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Vide as obras: Free Culture e The Future of Ideas. 
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Modelo de licenciamento que, basicamente, resguarda o direito de cópia (sem intuito comercial).
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Tudo se resume à forma de como a ferramenta é explorada junto ao público. Se ela fosse apresentada como uma ferramenta disponível àqueles que tivessem a intenção de disponibilizar a sua obra ao domínio público, a controvérsia seria menor. Contudo, o que se nota, é que ela é disseminada como uma das poucas soluções viáveis à “harmonização”.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Vide a obra Estrutura das Revoluções Científicas.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> ZIZEK, Slavoj. Problema no paraíso: do fim da história ao fim do capitalismo. p. 65.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> <a href="https://pt.wikipedia.org/wiki/Protesto_contra_SOPA_e_PIPA">https://pt.wikipedia.org/wiki/Protesto_contra_SOPA_e_PIPA</a>
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> BENKLER, Yochai. The Penguin and the Leviathan: how cooperation thiumphs over self interest, p. 49.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> LESSIG, Lawrence. Code. p. 243.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Vide: LEMOS, Ronaldo. Tecnobrega: o Pará reinventando o negócio da música.  
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> <a href="http://time.com/4290798/music-industry-gains-spotify-apple-youtube/">http://time.com/4290798/music-industry-gains-spotify-apple-youtube/</a>

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JOTA

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