Camila Torres Cesar

Flavio Roberto Batista

Regina Stela Corrêa Vieira

Sheila Neder Cerezetti

O debate sobre o ensino jurídico transcende os bancos acadêmicos quando é chamado a dar conta de preocupações que superam a formatação do esperado “perfil do egresso”, aspecto tradicionalmente contido nos projetos pedagógicos de todos os cursos universitários.
Em um curso precipuamente destinado à atuação prática profissional, como o jurídico, o aumento da diversidade de seu público, com o ingresso cada vez maior de estudantes pertencentes a grupos oprimidos, provoca a necessidade de pensar a participação dessas pessoas no mercado de trabalho após a formatura.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Em 2021, a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) recebeu 49,7% de calouras e calouros oriundos de escolas públicas. Graças à reserva de vagas, adotada progressivamente desde 2015 para estudantes de escolas públicas, incluídos estudantes autodeclaradas(os) pretas(os), pardas(os) ou indígenas (PPI) de 2018 em diante, finalmente vemos as Arcadas no caminho para a democratização do acesso e maior diversidade. Ainda estamos muito distantes, entretanto, de ver a mesma diversidade refletida nas carreiras jurídicas e, especialmente, nas grandes bancas advocatícias.
É nesse contexto que surgiu a proposta do Projeto Incluir Direito, buscando intervir no nascedouro do problema da ausência de diversidade nas grandes bancas: a contratação para estágio. O Projeto pretende atribuir a participantes vantagens competitivas na participação em processos seletivos de estágio nos escritórios de advocacia patrocinadores, vinculados ao Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (CESA).
A FDUSP, por meio de sua Comissão de Graduação, participou como interveniente no convênio firmado entre o CESA e a Fundação Arcadas para a implantação do Projeto, que consiste em proposta socioeducacional destinada a discentes autodeclaradas(os) negras(os) (pretas/os e pardas/os) ingressantes na FDUSP pela reserva de vaga PPI via FUVEST ou SISU e regularmente matriculadas/os entre o 3º e o 8º semestres da graduação.
O Projeto tem por objetivo oferecer capacitação profissional e preparar discentes para a participação nos processos seletivos de estágio de estudantes nos escritórios de advocacia patrocinadores do projeto.
Mais concretamente, discentes (i) participam de oficinas de formação, que promovem o desenvolvimento de competências fundamentais ao perfil das vagas de estágio, (ii) usufruem, durante o período do projeto, de curso de língua estrangeira, (iii) recebem acompanhamento (mentoring) de profissionais designados pelo CESA, de modo a potencializar e direcionar as experiências, com vistas a aumentar a chance de sucesso nas seleções dos escritórios associados e subsequente evolução da carreira, e (iv) obtêm auxílio para a aquisição de trajes sociais para entrevistas de seleção.
Encerrada com sucesso a primeira edição, foi possível fazer um balanço da iniciativa e identificar potencialidades e necessidades de aprimoramento. Em pesquisa realizada junto às pessoas participantes, constatou-se unanimemente a satisfação com o Projeto e o entendimento de que, de fato, tratou-se de rica oportunidade de formação e desenvolvimento pessoal e profissional.
As dificuldades iniciais, naturais diante do ineditismo da iniciativa e pelo contexto da pandemia da Covid-19, que exigiu interações virtuais, foram superadas com a atuação conjunta da coordenação e da presidência do CESA.
A primeira edição, que começou com 16 estudantes, terminou com o integral envolvimento de 13 delas/es. As três desistências (uma das quais sequer iniciou o projeto) estavam, de alguma maneira, relacionadas a questões de permanência. Trata-se de relevante ponto de atenção para as edições futuras, eventualmente com destinações prioritárias de bolsas, como a do projeto “Adote um aluno”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Nesse sentido, vale ressaltar a importância da Casa do Estudante para essa turma, pois, dentre as/os participantes, cinco residem na moradia estudantil do XI de Agosto, tão fundamental para quem se encontra em situação de vulnerabilidade econômica e que contam com esse espaço de acolhida no centro de São Paulo.
Por sugestão das próprias pessoas participantes, a iniciativa foi também credenciada como projeto de extensão, integrando-se plenamente ao currículo universitário da FDUSP. Viu-se, assim, o reconhecimento institucional de que as atividades ali desempenhadas integram o núcleo da formação discente, garantindo que o tempo dedicado às formações se converta também em créditos curriculares.
De início, a oportunidade do estágio e de frequentar um curso de idiomas com bolsa integral foram os critérios que mais atraíram a atenção de estudantes, mas, ao final, a maioria relatou mudança nas trajetórias profissionais e pessoais em decorrência da influência da experiência promovida pelo Projeto.
<blockquote class="jota-article__eye">Certamente, o ponto de maior destaque no Projeto foram as oficinas de formação, ministradas por corpo docente marcado pela diversidade racial e de gênero.</blockquote>
Foram oferecidos quatro módulos, todos com foco na atuação profissional em grandes bancas advocatícias e a vivência de pessoas negras no mundo corporativo. Temas como comunicação estratégica, direito e relações raciais, vivência corporativa e preparação para a mentoria foram abordados ao longo de um semestre. Apesar das limitações do formato virtual, as aulas receberam boa avaliação.
Cabe salientar o envolvimento dos coletivos negros de discentes da FDUSP na formatação do Projeto, o que muito contribuiu para a sua adequação às necessidades de seu público-alvo.
Além disso, esse diálogo promoveu a necessária conscientização no sentido de que a aquisição de conhecimentos, em especial sobre relações raciais, não poderia ficar restrita apenas a discentes, mas deveria alcançar os escritórios patrocinadores.
Com efeito, a verdadeira inclusão das/os participantes não prescinde da formação de estruturas capazes de efetivamente integrá-las/os e pavimentar caminhos para o pleno desenvolvimento de suas carreiras.
Por fim, a demonstrar o sucesso do Projeto, todas as pessoas integrantes receberam propostas de contratação pelos escritórios patrocinadores. Mesmo aquelas poucas que optaram por não efetivar a contratação, por motivos pessoais ligados a outros projetos, como o desenvolvimento de atividades de pesquisa ou intercâmbio, deixaram as portas abertas para eventuais contatos ulteriores.
Na outra mão, os escritórios não apenas diversificam seus quadros, como recebem pessoas extremamente competentes, com grande potencial de transformar a realidade ao seu redor.
Para edições futuras, o desafio central é pensar na solução dos principais gargalos verificados no piloto, todos relativos a questões de vulnerabilidade socioeconômica que afetam de forma mais intensa a população negra. Sendo possível garantir acesso a equipamentos e conexão de internet de qualidade, além de uma sólida política de permanência estudantil, a iniciativa certamente terá maior possibilidade de atingir seus objetivos.
O Projeto insere-se no movimento mais amplo de garantir real acesso tanto aos bancos universitários da universidade pública quanto às possibilidades de desenvolvimento de carreira subsequente. Mas, não obstante os avanços recentes, é preciso reconhecer que a reparação histórica da população negra no Largo São Francisco ainda está longe de ser plenamente conquistada.
Com séculos de atraso, a USP concedeu o título de doutor a Luiz Gama – por iniciativa de outra unidade, diga-se –, bem como nomeou uma Sala da Faculdade de Direito com seu nome – honraria disputada naqueles muros. Na contramão, porém, histórias como a de Jacinta Maria de Santana, mulher negra que teve seu corpo embalsamado e mantido no armário do professor de Medicina Forense de 1900 a 1929<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, insistem em assombrar os corredores.
Apesar do pioneirismo de pessoas valorosas como a professora Eunice Aparecida de Jesus Prudente, que, por ocasião de sua aposentadoria, receberá justa homenagem em 17 de agosto próximo, às 12h15, no encerramento dos seminários temáticos “Ensino jurídico no bicentenário da Independência”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, tristemente as Arcadas ainda têm pessoas negras, e particularmente mulheres negras, como exceções em posições de destaque, seguindo com seu quadro docente predominantemente composto por homens brancos.
Iniciativas como o próprio Projeto Incluir Direito e as ações afirmativas com recorte racial adotadas pelo Programa de Pós-Graduação<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> são apenas o início de um longo caminho por trilhar, e trazê-las à luz, como se pretendeu neste breve artigo, é sempre essencial para que a pauta siga avançando e aumentando a velocidade de seu avanço.
É preciso encerrar agradecendo a todos e todas que apoiaram e participaram do Projeto, em especial às e aos estudantes da primeira turma, que confiaram na iniciativa e que foram responsáveis por fazerem nossas manhãs de sábado terem mais sentido.
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}, 3000);
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Trata-se de iniciativa da FDUSP em conjunto com a Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que visa a captar recursos junto a antigos discentes da FADUSP, destinando-os ao fomento da vida estudantil de atuais alunos de graduação. Para mais informações, vide: &lt;https://www.adoteumalunoarcadas.com.br&gt;.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Para mais informações, vide Daniel Salomão Roque, Como a principal faculdade de direito do país violou o corpo de uma mulher negra por 30 anos, 09/04/2021. Disponível em: &lt;<a href="https://ponte.org/principal-faculdade-direito-pais-usp-sao-francisco-violou-corpo-mulher-negra-30-anos-jacinta/">https://ponte.org/principal-faculdade-direito-pais-usp-sao-francisco-violou-corpo-mulher-negra-30-anos-jacinta/</a>&gt;. Em seguida, a FDUSP emitiu nota de repúdio às práticas relatadas no artigo.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Acompanhe na página do youtube da FDUSP, em: &lt;http://EB4.CO/USP&gt;.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Vide a louvável criação do PAF - Programa de Ações Afirmativas a CPG-FD, nos termos da Deliberação CPG-FD/USP n. 2, de 17 de março de 2021, e da Deliberação CPG-FD/USP n. 3, de 28 de abril de 2021.

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JOTA

É preciso reconhecer que a reparação histórica da população negra ainda está longe de ser plenamente conquistada

Ensino jurídico e inclusão: primeira edição do Projeto Incluir Direito na FDUSP

É preciso reconhecer que a reparação histórica da população negra ainda está longe de ser plenamente conquistada