Marcus Vinicius Furtado Coêlho

Matheus Pimenta de Freitas

Nos últimos tempos, ganhou destaque a discussão sobre a interpretação correta a ser conferida ao art. 142 da Constituição Federal, que assim prevê, in litteris:
<blockquote>Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.</blockquote>
A despeito da clareza do art. 142 da Carta, uma corrente de pensamento parece querer assombrar a democracia brasileira. Acompanhada por uma minoria de juristas e incentivada por parcela barulhenta da sociedade, a corrente passou a defender a ideia de que o referido dispositivo constitucional supostamente atribuiria às Forças Armadas uma espécie de Poder Moderador, de modo a lhe outorgar a possibilidade de intervenção militar em casos de eventuais conflitos entre os Três Poderes da República.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Noticia-se, inclusive, que a referida interpretação do dispositivo constitucional, por pouco, não resultou em <a href="https://piaui.folha.uol.com.br/materia/vou-intervir/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">intervenção militar, com envio de tropas ao STF e destituição de ministros.</a>
Em momentos como este, é preciso ser excessivamente claro: a mencionada leitura do art. 142 da Constituição é absolutamente equivocada. Atribuir às Forças Armadas a função de árbitro dos conflitos entre os Poderes da República é demonstração de uma hermenêutica jurídica enviesada, que se apoia em análise equivocada a respeito da concepção do Poder Moderador e da interferência dos militares no processo político.
Em toda a sua história Constitucional, o Brasil contou com a presença do Poder Moderador apenas em sua primeira Carta, outorgada em 1824.
A experiência com o Poder Moderador foi de tal modo negativa que, quase como em um processo de seleção natural constitucional, nenhuma das outras 06 (seis) constituições que sucederam a de 1824 repetiram a previsão de existência daquele quarto Poder, não obstante terem desenvolvido uma série de mecanismos aptos a resguardar a harmonia e independência entre Executivo, Legislativo e Judiciário.
Desde a proclamação da República e a promulgação da Constituição de 1891, adotou-se o modelo de supremacia constitucional e, consequentemente, os objetivos de estabilização da ordem jurídica e institucional passam a ser garantidos por mecanismos de resolução dos conflitos políticos que assegurem a autoridade suprema da própria Constituição.
Em verdade, se há uma constituição cujos ideais não admitem nem mesmo a conjectura da existência de um suposto Poder Moderador – sobretudo se conferido às Forças Armadas – essa é, especialmente, a Constituição Federal de 1988.
Com efeito, a prioridade conferida pela Carta de 1988 à proteção das garantias individuais reflete clara forma de reação, por parte dos Constituintes, aos penosos anos de ditadura militar, nos quais as violações a direitos individuais eram cotidianas. A interferência das forças armadas sobre os processos políticos na época não se conformava na atuação de um árbitro, supostamente neutro e imparcial, como pressupõe o Poder Moderador, mas na de um poder militar que efetivamente tutelava o poder civil.
A interpretação sistemática das normas constitucionais que considerar também o momento político no qual a Carta foi promulgada, levará à conclusão inequívoca de que, em hipótese alguma, o Constituinte conferiria aos militares qualquer espécie de Poder Moderador que fosse apto a legitimar intervenções em caso de conflito entre os Três Poderes.
Os anais da Assembleia Nacional Constituinte, disponíveis no site do Senado Federal, demonstram que interpretações descabidas como essa que é aqui confrontada, indicam, no mínimo, o desacerto de quem as sustenta.
Nesse sentido, transcrevem-se abaixo trechos dos debates travados na 32ª Reunião Extraordinária da Assembleia Nacional Constituinte, em 06 de novembro de 1987, por parlamentares adeptos às mais variadas correntes ideológicas, a respeito do papel atribuído às Forças Armadas na Constituição que seria então promulgada:[1]
Constituinte Brandão Monteiro
Golpe não se dá, por causa de sistema de governo, golpe se dá pela influência errada, errônea, desde a República, daquilo que o Imperador já queria, que era o poder moderador que, neste País, se forjou em cima do militarismo e não dos militares. (fl. 655)
Constituinte José Genoíno
É evidente, sr. presidente, que, se estamos consagrando a organização democrática da sociedade, o direito de manifestação, de resistência aos abusos das autoridades, do dissenso, da divergência e da explicitação da luta entre partes opostas, não podemos colocar o poder militar como árbitro para resolver esses conflitos. (fl. 1892)
Constituinte Fernando Henrique Cardoso
Todos sabemos que a doutrina das intervenções frequentes e a tentativa de transformar as Forças Armadas em Poder Moderador acabou por gerar, no Brasil, uma situação de permanente suspeita entre a sociedade e as Forças Armadas.
O texto do Constituinte Bernardo Cabral, desde a primeira formulação até à segunda, na verdade, o que buscou e busca é romper com essa tradição. (fl. 1892)
Constituinte Relator, Bernardo Cabral
Sr. presidente, não me quero perder no lado da emoção porque quem lê o texto constitucional vê, no seu conjunto de normas, uma afirmação do poder político legitimamente constituído. Não há, em nenhum instante, sr. presidente, dentro do art. 160 [que deu origem ao atual art. 142], quem deixe de vislumbrar que ali foram eliminados todos os resquícios da chamada tutela militar, que ouvi ainda há pouco.
[...]Por esta razão até é que vejo ser esta a melhor oportunidade – desvinculado de qualquer revanchismo – para mostrar que as Forças Armadas, neste texto, estão subordinadas ao poder civil. (fl. 1895)
Constituinte Lysâneas Maciel
O período de transição do autoritarismo para a democracia ora em curso e a consolidação do regime democrático pressupõem que medidas sejam tomadas para neutralizar os fatores que têm conduzido as Forças Armadas ao papel de árbitro da crise e à tutela da sociedade civil.
Este objetivo será alcançado quando todos os segmentos sociais, particularmente o dos militares, se compenetrarem de que os conflitos ocorrentes no processo político deverão ser resolvidos exclusivamente através de recursos oferecidos pelas franquias democráticas e do ordenamento jurídico, sem interferências estranhas e indesejáveis no cenário político. (fls. 1897 e 1898)
Como se nota, resta inequívoco o consenso que fora estabelecido entre os Constituintes no sentido de que não compete às Forças Armadas o papel de moderador de conflitos entre os Três Poderes, de modo que, quando esses viessem a ocorrer, as respectivas soluções deveriam se dar mediante a aplicação dos mecanismos democráticos de freios e contrapesos, e não a partir de interferências militares, externas à tríade.
A Carta de 1988 manteve a destinação constitucional das Forças Armadas, enquanto instituições projetadas à defesa da Pátria, no âmbito externo, e à manutenção da lei no âmbito interno. Interpretar as funções e as competências das Forças Armadas dentro dos marcos democráticos e do império da lei é postura que valoriza a importante missão constitucional que desempenham como garantes materiais da subsistência da República e de suas instituições.
Em verdade, soa contraditório pretender que a própria Constituição Federal, a qual tem como alicerce básico a ideia de independência e harmonia entre os Três Poderes, tenha conferido um hipotético Poder Moderador às Forças Armadas, que se posicionam, nos termos literais da Carta “sob a autoridade suprema” do chefe do Executivo. Essa cadeia de comando não abre nenhum espaço para se alçar as Forças Armadas de cumpridoras da lei à condição de intérpretes e fiadoras da própria legalidade.
Admitir interpretação dessa natureza significaria afirmar a extinção de todos os mecanismos de freios e contrapesos, incluindo o controle de constitucionalidade de normas. Com efeito, bastaria que a Presidência da República discordasse de uma decisão do STF que declarasse inconstitucional determinado ato normativo, por exemplo, para que recorresse sob a justificativa de eventual usurpação de competência por parte da Corte Constitucional. A competência para julgar o recurso seria então das Forças Armadas, que, por sua vez, subordinam-se ao presidente da República, ou seja, ao próprio recorrente.
<blockquote class="jota-article__eye">Não é difícil perceber que se instalaria no país uma grande confusão, absolutamente inconstitucional e perigosa, que iria de encontro a tudo que está literalmente previsto no texto da Carta.</blockquote>
A ideia de intervenção militar constitucional se incompatibiliza com o próprio cerne da separação dos poderes, opondo-se ao princípio fundamental de que os meios de defesa, em matéria de repartição de competências e de estabelecimento de freios e contrapesos, devam ser sempre proporcionais aos perigos de ataque. Reconhecer às Forças Armadas o papel de interventor é medida que põe em gravíssimo risco toda a estrutura básica de um sistema democrático.
Seria supor que a Constituição contivesse cláusula de suicídio. Ou que os Constituintes tivessem escondido dentro dela, um verdadeiro Cavalo de Troia, apto a futuramente destruí-la.
Cumpre-nos, aqui, rememorar o mito de Ulisses.
O Canto XII da Odisseia narra que, após a Guerra de Troia, na rota marítima de volta para casa, Ulisses, ciente de que seu navio passaria pelo rochedo das sereias – cujo canto enfeitiçava os homens – ordena a seus marinheiros que vedassem com cera os respectivos ouvidos e que o amarrassem ao mastro da embarcação.
Durante a passagem pelo rochedo, amarrado, Ulisses ouve o canto das sereias e por ele é enfeitiçado, perdendo completamente a razão. Roga a seus marinheiros, então, que o soltassem das amarras para que pudesse se atirar nas águas em direção às sereias. No entanto, com os ouvidos vedados pela cera, os marinheiros não o conseguem ouvir e, portanto, não cumprem a sua ordem. Por essa razão, Ulisses consegue sobreviver à perigosa tentação e pode, assim, seguir viagem em segurança.
Assim como o herói grego sabia que enfrentaria o perigoso canto das sereias, os Constituintes tinham ciência de que a trajetória democrática brasileira não seria livre de obstáculos desafiadores. Semelhantemente ao que fez o protagonista da Odisseia ao se amarrar ao mastro do navio, os Constituintes também previram diversos mecanismos de autocontenção, para que os detentores do Poder não se desviassem e prejudicassem a evolução democrática do país.
Em tempos de normalidade os .mecanismos de freios e contrapesos são adequados e suficientes para solucionar eventuais conflitos entre os Poderes e, no caso de ameaça mais graves à estabilidade institucional, a Constituição autoriza o recurso a  instrumentos excepcionais, como é o caso do estado de sítio e da intervenção federal, por meio de procedimentos e regras de competências que também são claramente estabelecidas pelo próprio texto constitucional. Em nenhum desses mecanismos é dado às Forças Armadas atuar como uma instância decisória suprema localizada acima dos demais poderes, ou seja, como uma espécie de Poder Moderador.
Há de se esclarecer que a redação do art. 142, caput, da Constituição Federal não apenas reconhece os poderes e as funções das Forças Armadas, como também limita-os diante de excessos. Como instituição que detém o poder das armas, agem sob o comando das autoridades competentes e nas hipóteses legalmente autorizadas. Removidos tais limites, expõe-se a ordem jurídica e política à negação da missão constitucional das forças militares.
Não se questiona que o Brasil atravessa, no presente momento, um rochedo repleto de sereias. Com efeito, a crise sanitária da Covid-19, que desencadeou, a nível global, uma severa crise econômica, também intensificou, especialmente no Brasil, os efeitos de uma grave crise político-institucional.
Por mais penosa que seja a situação, é preciso que mantenhamos Ulisses amarrado ao mastro do navio. Em outras palavras: é estritamente necessário que sigamos, a rigor, as normas constitucionais e os procedimentos democráticos. É justamente em meio à crise que se tem a oportunidade de confirmar a solidez das instituições.
Portanto, não obstante a gravidade do momento e a angústia para que a crise se solucione com brevidade, é preciso enfatizar: o art. 142 da Constituição Federal de 1988 não admite interpretações criacionistas e nem atribui às Forças Armadas qualquer espécie de Poder Moderador. O que o dispositivo confere às Forças Armadas é o papel de proteger os Três Poderes de inimigos externos à tríade. Simples assim.
Com otimismo, espera-se que o Brasil possa resistir ao canto das sereias e, assim como Ulisses, na Odisseia, consiga seguir a sua trajetória democrática em segurança.
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[1] Disponível em: &lt;<a href="http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/sistema.pdf">www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/sistema.pdf</a>&gt;. Acesso em 26 de junho de 2020.

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JOTA

Uma leitura sobre o art. 142 da Constituição Federal

É preciso conter Ulisses, há sereias na água

Uma leitura sobre o art. 142 da Constituição Federal