Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">“O duque não pode negar a aplicação da lei. Porque a mercadoria que os estrangeiros têm conosco em Veneza, se for negada, muito impedirá a justiça do seu estado, visto que o comércio e o lucro da cidade consistem naquele de todas as nações.”
<footer class="jota-article__quote-cite">William Shakespeare, "O mercador de Veneza"</footer>
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Em “O mercador de Veneza” (1596-1599), o bardo inglês conta uma história que tem um acidente de navegação e o velho instituto da avaria grossa do direito marítimo em seu cerne. A leitora deverá se lembrar do enredo. Bassanio queria casar-se com a bela Portia, mas lhe faltavam os meios financeiros para pedir a sua mão. Ele decide então solicitar um empréstimo a seu amigo, Antonio, um rico mercador da cidade de Veneza. Antonio, contudo, não contava com dinheiro em espécie, mantendo toda a sua fortuna em mercadorias transportadas em navios ao redor do globo, mas aceita avalizar uma nota de Bassanio, se ele encontrar um credor. Bassiano, assim, levanta recursos com Shylock, que aceita uma garantia de Antonio, não em juros, mas em uma libra da sua própria carne, caso Bassanio não honre a dívida.
E sói acontecer, como era muito comum na época, que os navios de Antonio se perdem no mar e, com eles, a sua mercadoria, que era de fato a sua única fortuna. Antonio, que já não era muito alegre, cai em uma profunda depressão ao se ver não só arruinado financeiramente, mas também condenado à morte por ter de honrar o empréstimo com uma libra de sua própria carne. Antonio, ao final, é salvo pela brilhante atuação de uma jovem advogada. Nada mais direi, para não estragar o prazer da leitora que porventura não conheça a peça.
O fato é que, recentemente, uma revolucionária decisão da Suprema Corte do Reino Unido redefiniu os contornos do velho instituto da avaria grossa, tornando agora muito mais difícil que Antonio marchasse para o tribunal como um boi para o matadouro. Trata-se da decisão do caso CMA CGM Libra <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Os fatos são bastante comuns. Em 17 de maio de 2011, o navio porta-contêineres CMA CGM Libra deixou o porto de Xiamen, na China, com destino a Hong Kong. No dia seguinte, o navio encalhou em um baixio, devido a uma falha prévia no plano de passagem, desenvolvido a partir de cartas náuticas que não apontavam a presença do baixio. A embarcação necessitou de salvamento profissional, ao custo de cerca de US$ 9,5 milhões. Os armadores, então, buscaram ressarcimento de cerca de US$ 13 milhões com os interesses da carga, a título de avaria grossa, instituto de direito marítimo segundo o qual os custos incorridos extraordinariamente para a segurança da viagem são compartilhados proporcionalmente entre o transportador e a carga.
A grande maioria dos donos das cargas aceitaram pagar a sua contribuição. Cerca de 8% dos interesses de carga no caso, contudo, recusaram-se a fazê-lo, o que levou os armadores a iniciar procedimentos judiciais para recuperar cerca de US$ 800 mil deles à título de avaria grossa. O juiz de 1ª instância, Sir Nigel Teare, entendeu que o plano de passagem defeituoso constituía uma quebra, por parte do transportador, da sua obrigação de garantir as condições de navegabilidade da embarcação, consagrada na regra 1ª do artigo III das regras da Haia de 1924. Dessa forma, os interesses da carga não estariam obrigados a contribuir para os gastos incorridos por avaria grossa.
Os armadores recorreram para a Corte de Apelação, sustentando que qualquer negligência do plano de navegação não incorreria em uma quebra da sua obrigação de garantir as condições de navegabilidade da embarcação, mas sim em uma falha de navegação, da qual os armadores estariam isentos, por força da regra 2ª do artigo IV das regras da Haia de 1924, que impõe sobre a tripulação a responsabilidade pela condução da navegação. O ponto dos armadores era o de que a obrigação do transportador se resumiria em prover para a tripulação todas as condições necessárias para uma navegação segura e que, consequentemente, qualquer falha da tripulação na condução das suas operações não poderia ser imputada à negligência do transportador.
Vale lembrar, cara leitora, que no mercado de transporte marítimo normalmente a viagem é realizada por uma cadeia de contratos e subcontratos. É muito comum, por exemplo, que o armador, o dono do navio, afrete a embarcação a uma companhia de transportes, o transportador, que por sua vez poderá contratar uma companhia de navegação, que providenciará a tripulação que irá efetivamente conduzir a embarcação. O mar é todo um mundo.
A Corte de Apelação inglesa, contudo, não se convenceu dos argumentos do armador e manteve a decisão de 1ª instância. Lorde Justice Flaux e Lorde Justice Males concordaram que, no caso em tela, o armador havia se responsabilizado pela carga como transportador e que, portanto, a tripulação agia sempre sob sua responsabilidade como transportadora e não como navegadora. Além disso, a Corte de Apelação rejeitou a distinção de categoria entre atos de transportadora e atos de navegadora, porque a obrigação de desenvolver um plano de navegação seguro e efetivo previamente à viagem não é delegável.
Lorde Justice Haddon-Cave, por sua vez, teceu a interessante observação de que a regra 1ª do artigo III estabelece uma demarcação temporal – e não categórica - para a transferência do risco. O magistrado esclareceu que “os signatários da Convenção concordaram em dividir a alocação de risco para aventuras de carga marítima em dois regimes separados. O primeiro regime impõe aos transportadores o dever não delegável de exercer a devida diligência para garantir que o navio esteja em condições de navegabilidade 'antes e no início da viagem' (artigo III, regra 1). O segundo regime isenta os transportadores de responsabilidade por perdas ou danos causados por erros da tripulação ou dos empregados 'na navegação ou na gestão do navio' posteriormente, ou seja, durante a viagem (artigo IV regra 2 a)”.
Foi dada, contudo, permissão aos armadores para apelar para a Suprema Corte do Reino Unido. O relator do caso, Lorde Hamblen, frisou, ab initio, que o dever de garantir as condições de navegabilidade da embarcação é uma obrigação fundamental de todos os contratos de transporte marítimo. A definição da extensão dessa obrigação deve ser promovida no contexto do instrumental normativo da Organização Marítima Internacional (OMI), que adotou, pela Resolução A893(21)/1999, as suas “Diretrizes para o Planejamento de Viagem”, que reconhecem a necessidade de um plano de passagem para “todas as embarcações envolvidas em viagens internacionais”.
Os objetivos do desenvolvimento do plano de passagem e de sua constante monitoração são os de garantir a segurança da vida nos oceanos, a eficiência da navegação e a proteção do meio ambiente. “Dada a 'importância essencial' do planejamento de passagem para a 'segurança ... da navegação'”, determinou Lorde Hamblen que, “aplicando-se o teste do armador prudente, uma embarcação provavelmente não estará em condições de navegação se começar a viagem sem um plano de passagem ou se o fizer com um plano de passagem defeituoso que ponha em perigo a segurança da embarcação”.
A Suprema Corte, assim, em decisão unânime, rejeitou a apelação dos armadores e reafirmou as decisões das instâncias precedentes. Lorde Hamblen foi peremptório ao rejeitar a distinção de categorias entre atos de transportadora e atos de navegadora. O magistrado, além disso, não deixou margens a dúvidas ao afirmar que “o transportador é responsável por uma falha no exercício da devida diligência por parte do comandante e dos oficiais de convés de sua embarcação na preparação de um plano de passagem para a viagem da embarcação. O fato de a navegação ser de responsabilidade do comandante e envolver o exercício, por parte do comandante e dos oficiais de convés, de suas habilidades e julgamentos especializados não faz diferença alguma”.
A decisão no caso CMA CGM Libra tem um impacto enorme para o comércio internacional. Vale lembrar, cara leitora, que segundo dados da OCDE cerca de 90% de todo o comércio mundial é transportado por via marítima. A decisão da Suprema Corte do Reino Unido ofereceu um esclarecimento importante sobre a interpretação do texto de uma Convenção Internacional, no caso as regras de Haia de 1924, que, junto com as regras da Haia-Visby, foram ratificadas por mais de 95 países. Em outras palavras, a referida decisão afeta todos os contratos de transporte marítimo em escala mundial.
De mais imediato, para os operadores do comércio internacional, a decisão amplia o escopo de responsabilidades do armador/transportador, recomendando, por parte dos interesses da carga e das seguradoras, uma análise mais cuidadosa e aprofundada de pedidos de contribuição por avaria grossa. Já para os armadores/transportadores, a decisão aponta para uma tendência internacional de aumento do ônus da responsabilidade pela segurança da navegação e pela preservação do meio ambiente marítimo, recomendando uma profunda revisão de seus procedimentos internos de compliance e due dilligence.
Em um olhar para o futuro, no qual se divisa um comércio internacional operado por embarcações autônomas, a decisão do caso CMA CGM Libra aponta para uma tendência de concentração da responsabilidade jurídica da aventura nos ombros do armador/transportador. Uma verdadeira revolução do paradigma estabelecido há mais de cinco séculos, na Era das Grandes Navegações. A decisão talvez animasse Antonio um pouco. Ele ainda deveria uma libra de sua carne para Shylock, mas provavelmente não teria perdido tudo no mar. A caravela balança, mas não para.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1] </a>Alize 1954 and another (Appellants) v Allianz Elementar Versicherungs AG and others (Respondents) [2021] UKSC 51

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JOTA

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Uma esperança para o triste mercador de Veneza

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