Marcelo Dayrell Vivas

O direito à saúde mental é um tema ainda em construção no campo jurídico. A Reforma Psiquiátrica é um movimento social, surgido no fim dos anos 1970 e consolidado na década de 1980, que visa a mudança da perspectiva de atenção à saúde mental e ao cuidado com as pessoas que possuem transtornos mentais, existindo uma perspectiva ético-jurídica nessa luta.
Se o conceito de saúde já se encontra razoavelmente estabelecido na Saúde Coletiva e o direito à saúde é uma construção jurídica robusta, a saúde mental e o direito à saúde mental ainda carecem de reconhecimento e fortalecimento no âmbito do Direito. A própria Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas passam a se debruçar sobre o tema no campo dos direitos na última década, sendo muito relevante a produção da Relatoria Internacional para o Direito à Saúde, em especial por seu último Relator Dainius Pūras (<a href="https://www.ohchr.org/EN/Issues/Health/Pages/RightToMentalHealth.aspx" target="_blank" rel="noopener noreferrer">link</a>).
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Embora seja um campo em disputa – tal como a Saúde Pública ainda se encontra em disputa -, podemos conceituar saúde mental como um estado de bem-estar mental em que os sujeitos e as coletividades exercem suas habilidades de vida, lidando com situações cotidianas de estresse, em conjunto com sua comunidade e com respeito às diferenças.
Adotar esse conceito significa respeitar as diferenças e reconhecer o lugar da loucura na sociedade. Por essa razão, direito à saúde mental importa reconhecer a cidadania e a subjetividade das pessoas por meio da inclusão da diversidade de vidas, exercitando-se o direito ao (auto-)cuidado e à autodeterminação.
Esses conceitos estão na base do trabalho cotidiano desenvolvido na Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em seu atendimento especializado ao público, em seus Núcleos Especializados e, em no âmbito mais teórico, em seu Grupo de Pesquisa sobre Efetivação do Direito à Saúde na Defensoria Pública.
<blockquote class="jota-article__eye">Toda a atuação da Defensoria Pública na seara do direito à saúde mental foi se desenvolvendo a partir da prática, pautada pela Lei nº 10.216/2001 e pela regulamentação exarada pelo Ministério da Saúde.</blockquote>
Em especial a partir de 2012, houve um aumento expressivo de familiares de pessoas que faziam uso de álcool e outras drogas que buscavam a Defensoria Pública, nos diferentes municípios, pleiteando por atendimento em saúde, em especial internações em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas.
Inicialmente, coube-nos verificar qual o papel da Defensoria Pública no âmbito do direito à saúde e, em especial, no cuidado em saúde mental. Na maior parte dos municípios em que a Defensoria Pública está instalada, fomentou-se a aproximação entre Defensores Públicos, Agentes de Defensoria (psicólogos/as e assistentes sociais) e gestores municipais responsáveis pelos serviços de atenção psicossocial.
Nesse sentido, na grande maioria dos casos que chegava – e ainda chega - 
à Defensoria Pública, não havia indicação médica para internação, mas também a pessoa usuária de álcool e outras drogas e seus familiares não conheciam e não eram atendidos pelos serviços da Rede de Atenção Psicossocial – sejam os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) ou os outros serviços, inclusive as unidades básicas de saúde. Por essa razão, garantir o direito à saúde mental das pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas e de seus familiares passou por garantir que elas fossem atendidas nos serviços públicos especializados e responsáveis por esse cuidado – em geral, por meio de diálogo e parcerias.
Não se ignorava – e ainda não se ignora – que alguns serviços possuem dificuldades para atendimento da demanda ou mesmo para seu funcionamento. Assim, um outro papel que passou a ser desenvolvimento foi o apoio para o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial, seja por meio da participação em Conferências e Conselhos Municipais de Saúde, seja por meio de fluxos administrativos, termos de ajuste de conduta ou ações judiciais, de acordo com o estabelecimento ou não de diálogo entre a Defensoria Pública e as Secretarias de Saúde.
No mesmo sentido, um trabalho relevante se deu nas visitas em comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos. Para além de uma contrariedade com a Lei nº 10.216/2001 e com a regulação encetada pelo Ministério da Saúde, passamos a conhecer os locais para os quais as famílias desejavam internar, à força, seus parentes. A partir dessas visitas, compreendemos que não só tais estabelecimentos contrariam as normas legais e sanitárias, mas também, em sua quase totalidade, significam violações de direitos humanos, graves e repetidas, daqueles que estão ali internados, muitas vezes contra a vontade.
Atualmente, o grupo de pesquisa Efetivação do Direito à Saúde na Defensoria Pública passou a olhar para esse trabalho acumulado por Defensores e Defensoras, psicólogos/as e assistentes sociais da Instituição. O objetivo é organizar protocolos de atendimento, levantar dados de judicialização da saúde mental e refletir como o direito à saúde mental pode ou não estar sendo efetivado e respeitado na Defensoria e por meio do trabalho da Defensoria Pública.
Várias frentes de atuação estão colocadas para a luta por um direito à saúde mental:
- Fiscalização de comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, com a interdição e fechamento dos locais em que há violações de direitos humanos, ao mesmo tempo que se garanta alternativa efetiva de cuidado em saúde mental para aqueles que necessitam;
- Implantação dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial, nos Municípios em que há Defensoria Pública e, em especial, naqueles locais onde não há unidade da Defensoria Pública instalada, com destaque para a necessária reflexão acerca dos municípios de pequeno porte em que o cuidado ainda se coloca como um desafio;
- Garantia de acesso efetivo aos serviços de saúde mental, no tempo necessário, para as famílias e pessoas com transtorno mental, incluindo aquelas que fazem uso problemático de álcool de outras drogas; e
- Universalização do direito à saúde mental como integrante do direito à saúde e parte da efetivação dos direitos humanos para todos e todas.
Algumas vitórias têm sido compartilhadas pela Defensoria Pública em atuações conjuntas com os movimentos sociais, mas que devem ser constantemente revistas, adotadas, aprimoradas. A título de exemplo, citamos o acompanhamento do processo de fechamento dos hospitais psiquiátricos da região de Sorocaba; o fim do convênio do hospital psiquiátrico privado com os Municípios da região do Grande ABC; o estabelecimento de fluxo administrativo de atendimento de casos na Rede de Atenção Psicossocial na Capital; a criação de projeto de apoio psicológico para guardas civis municipais que atuam na região da Cracolândia; a atuação pela não revogação de portarias importantes sobre saúde mental pelo Ministério da Saúde; a ação civil pública sobre internação de adolescentes em comunidades terapêuticas; o acompanhamento do cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Brasil no caso Damião Ximenes, dentre outros casos.
A situação se torna mais grave em momento de pandemia de COVID-19, em que novas organizações e configurações foram necessárias para todas as pessoas. Reorganização familiar e novas dinâmicas de trabalho, assim como isolamento prolongado e distanciamento social, podem ter gerado sofrimento psíquico para muitas pessoas e desorganizado ainda mais pessoas que já padeciam de algum transtorno. O fortalecimento dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial e seu acesso amplo à população se coloca como fundamental para a retomada das dinâmicas de vida – e mesmo das atividades produtivas – com os aprendizados que a pandemia nos trouxe.
Porém, a disputa ainda se coloca no campo político e econômico. Há disputas de saberes e, em especial, disputas por modelos que são mais lucrativos, ainda que não representem um cuidado mais efetivo – antes, pelo contrário. Assim, continuemos e mãos à obra!
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JOTA

Direito à saúde mental passa pelo exercício do direito ao (auto-)cuidado e à autodeterminação

Direito à saúde mental e a Defensoria Pública em São Paulo

Direito à saúde mental passa pelo exercício do direito ao (auto-)cuidado e à autodeterminação