Andre Bogossian

O livro A pirâmide invertida: a história tática do futebol, do historiador inglês Jonathan Wilson, narra as alterações nas tendências táticas empregadas em equipes de futebol. Em um brevíssimo resumo, o livro mostra como nos primórdios do futebol, na Inglaterra do século 19, as regras do jogo faziam com que as partidas fossem desinteressantes e com poucos gols. A alteração de algumas dessas regras para os padrões que vigoram até hoje levou inicialmente a uma explosão de gols e ao crescimento do esporte no globo.
A obra conta como essas alterações no jogo desencadearam modificações nos padrões táticos vigentes: inicialmente as equipes adotavam formações que possuíam apenas dois jogadores na defesa, alguns no meio do campo e concentravam a maior parte do time de frente. Ao longo do século passado houve a inversão desta relação: as formações passaram a utilizar mais jogadores na defesa e meio campo e poucos (ou nenhum!) jogador no ataque. O resultado, como não poderia deixar de ser, foi a evolução para um futebol mais defensivo e com menos gols que geralmente vemos hoje.  
Pode-se traçar um inusitado paralelo da história contada pelo livro com os recentes decretos federais sobre o setor de <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/saneamento-basico">saneamento básico</a>. O saneamento básico possuiu historicamente a maior defasagem de investimentos quando comparado a outros setores de infraestrutura no Brasil. Disso resultou que quase 35 milhões de pessoas viviam sem água tratada e cerca de 100 milhões não têm acesso à coleta de esgoto[1].
Com as alterações promovidas pelo novo Marco do Saneamento Básico – a <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14026.htm">Lei 14.026/2020</a> e seus decretos regulamentadores (em particular os decretos federais 10.588/2021 e 10.710/2021) –, em menos de dois anos ao menos R$ <a href="https://www.gov.br/pt-br/noticias/transito-e-transportes/2022/03/novo-marco-legal-do-saneamento-permitiu-atracao-de-r-72-2-bilhoes-em-investimentos-para-o-setor">72,2 bilhões em investimentos foram garantidos</a> com os leilões de concessão de serviços realizados sob as regras da nova legislação, sem contar a privatização da Corsan por R$ 4,1 bilhões em dezembro de 2022. Os certames ocorreram nos estados de Alagoas, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Amapá, Rio de Janeiro, além das cidades de Crato (CE) e São Simão (GO). Foram 19,3 milhões de pessoas beneficiadas em 212 municípios, novamente sem contar a desestatização da estatal gaúcha.  
Tendo como objetivo último a universalização dos serviços (isto é, que 99% da população tenha acesso a água tratada e 90% da população tenha acesso a tratamento de esgoto até o fim de 2033), o novo marco se baseou em quatro pilares: 1) a vedação à renovação e ampliação dos instrumentos de prestação dos serviços de saneamento sem licitação; 2) a necessidade de prestação dos serviços em estruturas regionalizadas (agregando diversos municípios ou entre municípios e o respectivo Estado, com o objetivo de obter ganhos de escala e permitir subsídios cruzados); 3) a exigência da comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores (i.e. a capacidade de obter recursos para fazer frente aos investimentos necessários para atingir as metas de universalização); e 4) a atribuição de competências para edição de normas gerais setoriais a uma agência reguladora independente e capacitada (a ANA), normas essas que devem ser seguidas pelas entidades reguladoras locais e regionais. 
Com esses pilares, o movo marco legal criou um ambiente de segurança jurídica, competitividade e sustentabilidade para os serviços de saneamento. Utilizando-se de estratégias regulatórias tradicionais e de soft regulation (como a utilização de incentivos por meio da criação de critérios para alocação de recursos federais), as alterações promovidas pelo novo marco fomentaram investimentos e tornaram crível o cenário de universalização do acesso a água tratada e esgotamento sanitário no país, assim como a alteração das regras sobre impedimento levou a uma proliferação de gols e adeptos ao futebol. 
Entretanto, os decretos federais 11.466, 11.467 e 11.468, de 5 de abril de 2023, causaram grande apreensão no setor de saneamento básico por não estarem aderentes aos pilares do novo marco descritos acima. 
Em primeiro lugar, o <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11466.htm">Decreto 11.466</a> pretendeu dar sobrevida a situações irregulares e que sequer possuem um contrato formalizado ou cujo contrato não segue os ditames da legislação. Tal perenização de situações irregulares foi terminantemente vedada pelo novo marco cujo objetivo é justamente a promoção de competição pelos serviços por meio de procedimentos licitatórios. O novo decreto permite que até o fim de 2025 sejam regularizadas situações irregulares ou precárias, bastando que o instrumento que veicule tal regularização tenha vigência limitada até o fim de 2033 e que o atual prestador comprove sua capacidade econômico-financeira.  
Tal disposição é questionável na medida em que a lei determina que a alteração de contratos vigentes somente pode se dar para a transição de contratos ao novo marco por meio de procedimentos competitivos, não permitindo que situações irregulares ou precárias sejam regularizadas sem licitação. 
Também chama atenção no <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Decreto/D11467.htm">Decreto 11.467</a> a tentativa de equiparar os casos de prestação direta pelo próprio titular à hipótese de prestação por empresa estatal estadual em municípios integrantes de regiões metropolitanas, aglomerados urbanos ou microrregiões. O decreto pretende permitir que empresas estatais integrantes do respectivo estado possam prestar os serviços nos municípios contidos na respectiva estrutura regional (metropolitana, microrregional ou de aglomeração regional) sem licitação. Sobre esse aspecto, é importante lembrar que o STF, na ADI 1842/RJ, e a Lei 11.445/2007 determinaram que a titularidade na hipótese de regionalização não é apenas do estado ou apenas dos municípios, mas deles em conjunto. A entidade de governança interfederativa não se confunde com entes federativos nela representados. 
Em relação à necessidade de que os prestadores comprovem sua capacidade para realizar os investimentos necessários, o Decreto 11.466 conferiu uma segunda oportunidade, não prevista na lei, para que tal comprovação seja realizada. Nesse sentido, aqueles prestadores que não se submeteram ou que foram reprovados anteriormente terão até 31 de dezembro de 2023 para requerer nova avaliação. Já as empresas estatais em processos de desestatização terão o mesmo prazo para que seu controlador faça o respectivo requerimento, sendo que a autorização legislativa para a desestatização deve ser conferida até 31 de março de 2024 e o processo deve ser concluído até 31 de dezembro de 2024. 
Por fim, o <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11468.htm">Decreto 11.468</a> atribui à Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades a competência de “definir diretrizes para a elaboração das normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico”. Ainda que não se trate de violação direta e explícita aos termos do novo marco, essa atribuição de competência à administração federal direta pode significar o esvaziamento daquela importante função regulatória conferida pela lei à <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ana">Agência Nacional de Águas</a>. 
Assim como no futebol houve um movimento de inversão da pirâmide tática que causou o recuo de jogadores no campo e menos gols marcados, as novas normas, ao promoverem uma tentativa de inversão dos valores do novo marco, trazem o risco de recuo nos investimentos setoriais e, consequentemente, de que menos pessoas tenham água potável e esgoto coletado em suas casas.
<hr />
[1] Segundo indicadores de 2020 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS).  Fonte: Agência Senado, <a href="https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/03/estudo-aponta-que-falta-de-saneamento-prejudica-mais-de-130-milhoes-de-brasileiros">https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/03/estudo-aponta-que-falta-de-saneamento-prejudica-mais-de-130-milhoes-de-brasileiros</a>.

marco legal do saneamento

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JOTA

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