Luciano Benetti Timm

Jacqueline Salmen Raffoul

Francisco Silva Jr

Em julho, foi publicado o Decreto nº 11.150/2022, que regulamentou o mínimo existencial. Segundo o decreto, a finalidade seria “preservar e não comprometer o mínimo existencial para fins de prevenção, tratamento e conciliação de maneira administrativa ou judicial as situações de superendividamento em dívidas relacionadas ao consumo"<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
A regulamentação decorre da recente alteração no Código de Defesa do Consumidor (CDC), ocasionada pela Lei 14.181/2021, a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-do-superendividamento">Lei do Superendividamento</a>, que acrescentou o artigo 54-A e outros dispositivos sobre a prevenção e o tratamento ao superendividamento no CDC.
Apesar das alterações no CDC, a Lei do Superendividamento não definiu o que seria “mínimo existencial” de forma precisa. Por isso, o Decreto nº 11.150/2022 buscou regulamentar o tema, dentre outros pontos, a saber: 1) a definição de superendividamento; 2) a fixação do valor do mínimo existencial; 3) a delimitação de quais dívidas serão alcançadas pela proteção e; 4) os incentivos e garantias para aqueles que buscarem a conciliação de tais dívidas.
No tocante à definição de superendividamento, o Decreto nº 11.150/2022 considera que se trata da “impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural e de boa fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer o seu mínimo existencial”.
Em tais casos, deve ser preservado o mínimo existencial da renda mensal do consumidor. Segundo o Decreto nº 11.150/2022, o valor do mínimo existencial será de 25% do salário mínimo vigente, o que equivale a RS 303. O Conselho Monetário Nacional é responsável pela atualização do mencionado valor.
Muito se discutiu anteriormente à publicação do referido decreto qual seria o melhor critério para a fixação do mínimo existencial, pois o tema é permeado por um debate costumeiramente mais ideológico e até político, do que propriamente embasado em dados e pesquisa quantitativa. A Senacon merece todos os créditos por ter ensejado um debate amplo, democrático e baseado em evidências que resultou no referido decreto.
É importante observar que o Decreto nº 11.150/2022 é explícito sobre o que deve ser excluído da aferição do mínimo existencial. Nos termos do artigo 4º, os itens a seguir não serão computados:
"I — as parcelas das dívidas:
a)relativos a financiamento e refinanciamento imobiliário; 
b) decorrentes de empréstimos e financiamentos com garantias reais; 
c) decorrentes de contratos de crédito garantidos por meio de fiança ou com aval; 
d) decorrentes de operações de crédito rural; 
e) contratados para o financiamento da atividade empreendedora ou produtiva, inclusive aquelas subsidiadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); 
f) anteriormente renegociados na forma do disposto no Capítulo V do Título III da Lei 8078 de 199; 
g) de tributos e despesas condominiais vinculadas a imóveis e móveis de propriedade do consumidor; 
h) decorrentes de operação de crédito consignado regido por lei específica; e 
i) decorrentes de operações de crédito com antecipação, desconto e cessão, inclusive fiduciária, de saldos financeiros, de créditos e de direitos constituídos ou a constituir, inclusive por meio de endosso ou empenho de títulos ou outros instrumentos representativos;
II – os limites de crédito não utilizados associados a conta de pagamento pós-paga; e
III — os limites disponíveis não utilizados de cheque especial e de linhas de crédito pré-aprovadas".
O Decreto nº 11.150/2022 propõe, ainda, incentivos e garantias para aqueles que buscarem a conciliação por vias administrativas ou judiciais. Com isso, busca-se preservar as garantias e as formas de pagamento originariamente pactuadas nestes acordos, incentivando assim a autocomposição das partes.
Nesse sentido, recentemente o Conselho Nacional de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cnj">CNJ</a>) publicou cartilha sobre o tratamento dos temas de superendividamento, estimulando a etapa preliminar da conciliação coletiva, para somente então, em caso de ausência de acordo, de uma fase judicial que pode ensejar a revisão contratual.
Por fim, o Decreto nº 11.150/2022 entrará em vigência em 27 de outubro de 2022, entretanto já é possível notar movimentações jurídicas da Defensoria Pública<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> e do Ministério Público Federal<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, que já se posicionaram contrários à fixação do valor correspondente ao mínimo existencial. Inclusive, não se está descartada uma judicialização do tema, como tem sido corriqueiro na política pública brasileira.
A grande questão, nesse tema, é que a política pública seja desenhada com base em evidências e que juristas – na já conhecida metáfora que bem espelha os dilemas de macro justiça versus a micro justiça – consigam “enxergar a floresta e não apenas a árvore”. Muitas vezes o que se vê, infelizmente, em algumas discussões judiciais consumeristas, é o juiz argumentando como se consumidor fosse, mas ele deveria pensar, sobretudo, como regulador, considerando os efeitos de suas decisões sobre a coletividade e não apenas para a parte em disputa (“spill over effect”). Nesse diapasão, o critério decisório da autoridade pública deve ser o “devagar”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, isto é, aquele pragmático que faz contas com base em evidências, analogamente ao que se vê entre os médicos que discutem vacinas<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> BRASIL. DECRETO Nº 11.150, DE 26 DE JULHO DE 2022. Disponível em &lt;<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/decreto/D11150.htm">http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/decreto/D11150.htm</a>&gt;. Acesso em 5 ago 2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO CEARÁ. Condege aponta que decreto do mínimo existencial não possui “validade, juridicidade e eficácia”. Disponível em &lt;<a href="https://www.defensoria.ce.def.br/noticia/notacondegeminimoexistencial/">https://www.defensoria.ce.def.br/noticia/notacondegeminimoexistencial/</a>&gt; . Acesso em 10 ago 2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/mpf-pede-revisao-de-decreto-presidencial-que-regulamentou-lei-do-superendividamento">http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/mpf-pede-revisao-de-decreto-presidencial-que-regulamentou-lei-do-superendividamento</a>.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Alusão aqui ao sistema 1 ou sistema cerebral decisório devagar, racional, tal como descrito por Kahnemann; ou sistema decisório pragmático profundo de Joshua Greene. Sobre esse tema, já tratamos aqui no Jota: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-da-abde/direito-e-economia-desmistificados-parte-ii-18102018">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-da-abde/direito-e-economia-desmistificados-parte-ii-18102018</a> e <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-da-abde/direito-e-neurociencia-por-que-uma-opcao-pelo-pragmatismo-profundo-15052020">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-da-abde/direito-e-neurociencia-por-que-uma-opcao-pelo-pragmatismo-profundo-15052020</a>.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Sobre o pragmatismo jurídico e a necessidade de se levar a realidade a sério, o CNJ organizou evento: <a href="https://www.youtube.com/watch?v=1mCr_jLmKBM">https://www.youtube.com/watch?v=1mCr_jLmKBM</a>

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JOTA

O que se vê é o juiz argumentando como se consumidor fosse, mas ele deveria pensar como regulador

A regulamentação do superendividamento pelo Decreto 11.150/22

Decreto n° 11.150/2022 e mínimo existencial: muitas vezes o juiz argumenta como se consumidor fosse, mas ele deveria pensar como regulador