José Augusto Dias de Castro

Marco Aurélio Antas Torronteguy

O Brasil possui um dos sistemas de saúde mais complexos do mundo. A intrincada divisão de competências entre governos de diferentes esferas e o caráter universal e igualitário de sua cobertura fazem de seu custeio e de sua gestão um desafio monumental, e comumente encarado de forma precária.
Ante as típicas limitações estatais, a Constituição estabelece que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, e assim tem sido: o aporte de recursos, conhecimento e tecnologias privadas sempre foi fundamental à construção da saúde brasileira. Mas, no desenho de políticas públicas, é fundamental avaliar se estamos aproveitando de forma adequada o potencial da colaboração público-privada neste campo, em especial no campo industrial.
O lançamento do novo PAC é uma ótima oportunidade para este debate. Anunciado com imensa pompa, é a grande aposta do governo federal para dinamizar o crescimento e melhorar a vida da população. Ele chama atenção pelos valores: há previsão de R$ 1,7 trilhão em investimentos, sendo R$ 1,4 trilhão até o final de 2026. Um naco relevante desse valor vai para o eixo da saúde, destinatário de R$ 30,6 bilhões em recursos públicos. Cerca de um terço dessa quantia (R$ 8,9 bilhões) está destinado ao aprimoramento do complexo industrial da saúde. Não é por acaso: a pandemia da Covid-19 encontrou o país altamente dependente de itens importados. Em vários momentos o Brasil se viu diante do desabastecimento de medicamentos e outros produtos importantes para a saúde.
A reação mais instintiva a tais situações é a criação de uma política industrial estatizante, que soa mais segura, mas que deve ser avaliada com parcimônia. Veja-se a política das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/pdps">PDPs</a>), que trouxe bons ensinamentos. Instituídas em 2009 pelo Ministério da Saúde, as PDPs entre instituições públicas e empresas privadas buscavam promover a produção pública nacional de fármacos, por meio de contratação que previa a transferência da tecnologia de farmacêuticas para órgãos ligados ao governo, em troca de um contrato de fornecimento exclusivo até que a transferência da tecnologia fosse concluída.
Com isso, ao final do processo o país teria condições de produzir itens relevantes para a segurança sanitária, sob controle do Estado. Todavia, o que se verificou em muitos dos casos foram atrasos monumentais nos processos de transferência e na instalação da capacidade fabril, com a consequente defasagem da tecnologia que estava sendo adquirida. Ao final, o quadro de dependência estrangeira se viu inalterado, piorado em função da ausência de concorrência para determinados produtos, com imenso dispêndio de recursos públicos. Sem contar as denúncias de irregularidades analisadas pelo TCU e pela CGU em suas auditorias.
Outro exemplo que traz boas reflexões é a política de produção de hemoderivados. Viu-se na criação da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/hemobras">Hemobrás</a>, estatal ligada ao Ministério da Saúde, a solução para a dependência externa de hemoderivados. Criada em 2005, a estatal possui hoje o monopólio do processamento do plasma humano, matéria-prima fundamental para medicamentos essenciais como albumina, imunoglobulina e o Fator VIII Recombinante.
Apesar de estar sendo construída desde 2010, a planta de Goiana (PE) ainda não iniciou sua atividade fabril, estando sua operação atual restrita ao recebimento e acondicionamento do plasma recebido Brasil afora. Ou seja: seguimos dependentes integralmente de medicamentos produzidos no exterior, mesmo após quase 20 anos da criação da política pública para hemoderivados. Além disso, ainda restam dúvidas sobre se a capacidade de processamento de 500 mil litros de plasma anual estimada para a Hemobrás será suficiente para atender à demanda nacional. A depender, seguiremos dependentes das importações.
Esses exemplos trazem boas reflexões para este momento em que o governo federal redesenha sua política industrial e a forma de adquirir medicamentos. Primeiro: nem sempre buscar a produção direta pela Administração Pública será a melhor saída. Pode-se pensar em mecanismos de incentivo para que fabricantes produzam localmente, com amarras que privilegiem o abastecimento do SUS e sem necessidade de absorção da tecnologia por um órgão estatal. Há ferramentas regulatórias que podem ser usadas, em vez da política do Estado-produtor.
Segundo, precisamos possibilitar e estimular a entrada de atores privados, usando a regulação para garantir os interesses da população. Voltemos ao caso da Hemobrás: apesar dos atrasos na implementação, trata-se de uma iniciativa importantíssima, porém a estatal precisará de ajuda em sua missão de garantir o suprimento de hemoderivados no Brasil. A <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/152715">PEC 10/2022</a>, atualmente em discussão no Senado, busca atualizar a política para os hemoderivados, abrindo este mercado. É um passo fundamental para garantia do abastecimento nacional desses insumos essenciais.
Terceiro, é da essência de uma boa política de industrialização que ela tenha como premissa o fornecimento à população brasileira de produtos registrados pela <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/anvisa">Anvisa</a>, fiel garantidora da segurança e eficácia de medicamentos e produtos para saúde. O registro sanitário não é mera formalidade, é a conclusão de um rigoroso procedimento técnico conforme os mais altos padrões internacionais.
Portanto, há importante janela de oportunidade aberta para modernizarmos nossa produção industrial no campo da saúde. Precisamos garantir à população brasileira acesso ao que há de mais avançado em tecnologia farmacológica. Somos um dos maiores mercados do mundo, e os volumes que o setor público brasileiro adquire em todas as esferas são capazes de atrair investimentos para todo tipo de indústria farmacêutica. Mas precisamos de arranjos público-privados eficientes. Ganha o poder público, ganham os investidores, mas antes de tudo ganha a população brasileira, o fim primordial de qualquer política pública.

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JOTA

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