André de Vasconcelos Dias

Uma das principais causas de inelegibilidade introduzidas pela chamada “Lei da Ficha Limpa” está prevista no art. 1º, I, “l”, da LC 64/90, que dispõe serem inelegíveis “os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena”. 
Desde os primeiros casos concretos que lhe foram submetidos, o Tribunal Superior Eleitoral, interpretando art. 1º, I, “l”, da LC 64/90, formou sólida jurisprudência – amplamente majoritária até os dias de hoje – no sentido de que são cumulativos os requisitos do ato doloso, da lesão ao patrimônio público e do enriquecimento ilícito, porém assentando que este último pode ser do próprio agente público ou de terceiro, de modo que os atos ilícitos capitulados ou no art. 9º ou no art. 10 da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), quando convergentes os indigitados requisitos, são aptos e suficientes à incidência da causa de inelegibilidade do candidato.
Em 20/09/2012, no julgamento REsp Eleitoral n° 275-582012.6.26.0110, o TSE fixou a tese de que “o ato doloso de improbidade administrativa pode implicar o enriquecimento ilícito tanto do próprio agente, mediante proveito pessoal, quanto de terceiros por ele beneficiados”. No voto condutor do Relator Min. Arnaldo Versiani, consta que, “a inelegibilidade da alínea “l” pode ser consequência de condenação tanto pelo art. 9º, quanto pelo art. 10 da Lei 8.429/92”. Podem colacionar-se diversos precedentes ulteriores nos quais a Corte de Cúpula da Justiça Eleitoral, deparando-se com acórdãos condenatórios colegiados que haviam enquadrado a conduta do candidato no art. 10 da LIA, reconheceu a inelegibilidade em mercê do prejuízo ao erário e do enriquecimento ilícito de terceiros (v.g., Agr no Resp Eleitoral n° 194-40.2012.6.19.0196, j. 08/11/2012; Resp Eleitoral n° 78-55.2012.6.24.0047, j. 11/11/2012; Agr no Resp Eleitoral nº N° 32-42. 2012.6.06.0120, Rel. p. acórdão Min. Rosa Weber, j. 14/02/2013).
Em casos isolados, o TSE proferiu acórdãos cujas ementas sugerem a adoção de tese diversa – qual seja, que somente a condenação colegiada que assentasse expressa e concomitantemente a incidência dos arts. 9º e 10 da LIA teria o condão de atrair a inelegibilidade vertente. A leitura atenta do inteiro teor dos acórdãos, no entanto, parece infirmar esta conclusão. Trata-se, em verdade, do conhecido fenômeno da “jurisprudência das ementas”, em que os tribunais decidem sob fundamentos múltiplos e a partir de substratos fático-probatório distintos, mas os relatores consignam nas ementas dos arestos suas próprias posições jurídicas pessoais, não raro não encampadas por seus pares. Assim, p.ex., na ementa do Agr no RO n° 2812-95.2014.6.26.0000, consignou-se que “para fazer incidir a inelegibilidade referida no art. 10, inciso 1, alínea l da LC n° 64/1990, é imprescindível que a conduta ilícita implique, cumulativamente, dano ao erário e enriquecimento ilícito, nos termos descritos nos art. 9º e 10 da Lei n°8.429/1992, respectivamente”, raciocínio que reflete o entendimento jurídico do relator (Min. Gilmar Mendes [1]). Entretanto, o caso concreto não envolvia enriquecimento ilícito de quem quer que fosse – nem do agente público, nem de terceiros.
Os julgados mais recentes do Tribunal Superior Eleitoral, aliás, revelam não ter havido inflexão jurisprudencial.  No dia 22/10/2014, o TSE julgou o RO nº 1408-04.2014.6.19.000, segundo o qual o recorrente fora condenado pelo TJ/RJ como incurso exclusivamente na “figura típica” do art. 10 da Lei 8.429/92. De acordo com a relatora Min. Maria Thereza de Assis Moura, era possível extrair, dos fundamentos do acórdão, o enriquecimento ilícito, tendo sido decidido: “deve-se indeferir o registro de candidatura se, a partir da análise das condenações, for possível constatar que a Justiça Comum reconheceu a presença cumulativa de prejuízo ao erário e enriquecimento ilícito decorrentes de ato doloso de improbidade administrativa, ainda que não conste expressamente na parte dispositiva da decisão condenatória”. Reafirmou-se a tese em 22/09/2015, no julgamento do Agr no AI nº 1897-69.2014.6.00.0000. Outrossim, noutro caso de condenação “apenas” no art. 10 da LIA, o TSE, sob a relatoria do Min. Luiz Fux, deliberou que “A análise da configuração in concrecto da prática de enriquecimento ilícito pode ser realizada pela Justiça Eleitoral, a partir do exame da fundamentação do decisum condenatório, ainda que tal reconhecimento não tenha constado expressamente do dispositivo daquele pronunciamento judicial” (Agr no RO N° 223-44.2014.622.0000, j. 17/12/2014).
A análise criteriosa do art. 1º, I, “l”, da Lei Complementar nº 64/94, seja na perspectiva dogmática, seja na perspectiva hermenêutica, conduz à inexorável conclusão de que tanto o enriquecimento ilícito quanto o dano ao patrimônio público, para além de dados empíricos, são conceitos jurídicos que não se atrelam, necessariamente, às figuras “típicas” previstas na Lei 8.429/92, e que, uma vez reconhecidos no acórdão condenatório – ou aferíveis na fundamentação respectiva –, a par do elemento anímico intencional, consubstanciam a causa de inelegibilidade em foco.
A tese restritiva da dupla tipificação (arts. 9º e 10 da LIA) erigiu-se sob o equívoco da nomenclatura adotada em nas seções do Capítulo II da Lei nº 8.429/92, e não resiste a uma interpretação sistemática e teleológica acerca dos conceitos jurídicos de patrimônio público e de enriquecimento ilícito, não vinculados aos “tipos” de improbidade, conclusão que se reforça pela jurisprudência do próprio TSE, que, chamado a interpretar o art. 1º, I, “e”, 1, da LC nº 64/90, vem entendendo que o conceito de administração pública é amplo, e os crimes em seu detrimento não se resumem aqueles expressamente intitulados como tais no Título IX do Código Penal (v.g., REsp Eleitoral nº 129-22.2012.6.16.016, j. 04/10/2012; Agr no Resp Eleitoral n° 466-13.2012.6.26.0140).
No plano dogmático, a tese da dupla tipificação labora em aporia, ao partir da falsa premissa de que um único ato ilícito pode carrear o efetivo enquadramento da conduta do agente em mais de um “tipo” sancionador, em colisão frontal com o axioma do ne bis in idem. Constitui princípio basilar de Direito Sancionatório que um único ato ilícito não pode dar ensejo ao enquadramento do agente em múltiplos “tipos”, e a suposta antinomia se resolve pela teoria do concurso aparente de normas (princípios da consunção, da especialidade, da subsidiariedade, dentre outros) [2,3,4]. A fortiori, salvante crassa atecnia jurídica, não há espaço à dupla condenação pelo mesmo fato. Tal seria equivalente a, na esfera penal, condenar como incurso nos tipos penais de porte e disparo de arma de fogo, lesão corporal e homicídio o agente que comete um assassinato com tiros de pistola.
O art. 12, incisos I e II, da Lei nº 8.429/92, esboroa a tese da dupla tipificação, eis que os preceitos secundários de ambos os “tipos” de improbidade administrativa (arts. 9º e 10 da LIA) cominam o ressarcimento integral ao erário e a perda dos valores que conformam o enriquecimento ilícito, a demonstrar que, numa perspectiva sistêmica, cada um dos referidos “tipos” de improbidade é apto, por si só, a adimplir os requisitos cumulativos do art. 1º, I, “l”, da LC nº 64/90. Sobre este ponto, observou argutamente o Min. Marco Aurélio: “em termos de sanção, o artigo 12 da referida Lei versa, quanto ao artigo 10, não apenas o ressarcimento integral do dano, mas também a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio. A figura típica, então, alcança o dano, a lesão em si, exigida para chegar-se à inelegibilidade, presentes o elemento subjetivo - a intenção, o dolo - como também o enriquecimento ilícito. Por isso, não estabeleço, tendo em conta a Lei Complementar n° 64/1990, distinção no tocante ao enquadramento dos fatos, se no artigo 9º ou no artigo 10 da Lei de Improbidade” (Resp Eleitoral n° 78-55.2012.6.24.0047).
Decerto, nem todo ato “tipificado” no art. 9º da LIA redundará em efetivo prejuízo ao erário, assim como nem todo ato “tipificado” no art. 10 da mesma Lei resultará em benefício de terceiros. Todavia, em determinados casos concretos, o ato de improbidade administrativa formalmente capitulado num ou noutro dispositivo congregará ambos os requisitos, de que são exemplos, abstratamente previstos, os incisos IV, XI e XII do art. 9º e os incisos I, II, IV, V, XII, XIII e XVI do art. 10 da Lei nº 8.429/92. O inciso XII deste último dispositivo não poderia ser mais eloquente: “permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente”.
Em casos que tais, a definição da capitulação perfaz-se pela aferição da condição ostentada agente público envolvido. Se o enriquecimento ilícito foi próprio, incidirá o art. 9º da LIA; se o locupletamento for de terceiros (agentes privados), incidirá o art. 10 da mesma Lei. Nuances que, para fins eleitorais, são absolutamente irrelevantes, porque ao art. 1º, I, “l”, da LC nº 64/90, em termos axiológicos, repugnam os fatos dolosos do enriquecimento ilícito e do dano ao patrimônio público, independentemente de quem seja o beneficiário do locupletamento. Ou ainda, numa perspectiva mais ampla, ao Direito, em termos deontológicos, ambas as hipóteses são igualmente reprováveis.
Um paralelo com o crime de peculato (art. 312 do Código Penal e art. 1º, I e II, do DL 201/67) subsidia tal conclusão, pois o legislador fixou a equivalência do desvalor da ação e do desvalor do resultado – inclusive em sede de reprovabilidade abstrata (penas cominadas de 02 a 12 anos de reclusão) – entre os atos do agente público de apropriação ou desvio de verbas públicas em proveito próprio (que se enquadram no “tipo” do art. 9º da Lei 8.429/92) e aqueloutros em que o agente público promove o desvio dos recursos públicos em proveito de terceiros (capituláveis no art. 10 da Lei nº 8.429/92).
Cabe observar, por derradeiro, na perspectiva conjuntural do enfrentamento à corrupção, que os instrumentos investigativos postos à disposição dos órgãos e instituições públicos na esfera cível da improbidade administrativa, constitucionalmente e legalmente alheados de técnicas e métodos de apuração mais invasivos (adstritos à esfera penal), revelam-se idôneos à identificação das lesões materiais ao patrimônio público e ao enriquecimento ilícito de terceiros (enquanto beneficiários dos recursos desviados), porém não raro inaptos à comprovação do recebimento de vantagens indevidas pelo agente público (ou da “volta” das verbas por ele transviadas). Neste contexto, a tese restritiva da dupla tipificação expressa no acórdão condenatório para fins de inelegibilidade, a par da absoluta inconsistência jurídica, esvazia por completo a eficácia do art. art. 1º, I, “l”, da LC nº 64/90, carreando generalizada impunidade.
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[1] Interessante notar que o próprio Min. Gilmar Mendes, em outro acórdão de sua relatoria, tenha admitido, no tocante ao enriquecimento ilícito, “que este seja próprio ou de terceiros. Precedentes” (Agr no RO 292-66.2014.6.08.0000). Tal assertiva encerra contradição com a tese jurídica perfilhada pelo douto julgador, haja vista que o enriquecimento ilícito exclusivo de terceiros é próprio dos “tipos” do art. 10 – mas não daqueles do art. 9º – da Lei 8.429/92 .
[2] De acordo com FABIO MEDINA OSÓRIO, “Resulta pacífica a possibilidade de concurso aparente de normas na tipificação da improbidade ou dos ilícitos administrativos stricto sensu. Esse fenômeno não é específico do Direito Penal, embora tenha sido aí, nesse ramo jurídico, o lugar onde o tema foi tratado de modo mais aprofundado”  (DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR. SP, 2009, ed. RT, 3ª ed., p. 331
[3] MARTINS JR, Wallace Paiva. PROBIDADE ADMINISTRATIVA. SP: 2009, Ed. Saraiva, 4ª ed., p. 328.: “Impensável o cúmulo de condenações idênticas, resolvendo-se a questão pelo princípio da especialidade. Assim, se o ato ao mesmo tempo é de prejuízo ao erário e atentado aos princípios da Administração Pública, verificado o primeiro deverão ser infligidas as penalidades concernentes ao mais grave”.
[4] GARCIA, Emerson; PACHECO ALVES, Rogério. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. SP: 2013, Ed. Saraiva, 7ª ed.: “Tratando-se de ato único, entendemos que um único feixe de sanções deve ser aplicado ao agente, ainda que sua conduta, a um só tempo, se subsuma ao disposto nos arts. 9º, 10 e 11. Único o ato, único haverá de ser o feixe de sanções (ne bis in eadem).

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JOTA

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