Veridiana Parahyba Campos

Sou uma pesquisadora relativamente nova. Tenho 37 anos agora. Nascida numa classe social privilegiada, já aos 32, tive possibilidade de ser cientista social formada e diplomada com um doutorado em sociologia. Toda essa formação foi feita em uma universidade pública e de referência e, graças ao apoio financeiro dos orgãos de fomento à pesquisa (CAPES e CNPQ), pude segui-la sem ter que abrir mão dos estudos para ingressar num trabalho qualquer que provesse meu sustento.
Hoje em dia, trabalho num departamento de pesquisa de uma instituição com muita expertise no assunto. Um dos raros centros de pesquisa humana que não são parte de uma universidade. Somando toda minha caminhada, digamos que estou em contato com o “pesquisar” há uns 15 ou 16 anos; já na graduação, fui aluna PIBIC<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Ainda que me considere em formação (talvez para sempre), eu digo: pesquisar, concordando com a perspectiva de Richard Sennet<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, é uma artesania. E nessa artesania, a vontade e a experiência são componentes tão ou mais fundamentais quanto uma boa formação teórica e metodológica.
O GPEIA (Grupo de Pesquisa e Estudos de Inclusão na Academia) e sua pesquisa sobre aquilo que ficou nomeado de “currículo oculto” da SanFran (posso ser íntima?) são a prova de como a pesquisa se faz pesquisando, tal qual a caminhada se faz caminhando. Com um grupo de 22 pesquisadoras (mais 1 pesquisador), em diversos níveis de formação, essa equipe bastante jovem se dispôs a enfrentar um problema de pesquisa historicamente tratado como “desnecessário/falso/delirante/irrelevante etc.”: a desigualdade de gênero na formação em direito.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico" target="_blank" rel="noopener noreferrer"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Pioneiramente, a pesquisa Interações de gênero nas salas de aula da Faculdade de Direito da USP: um currículo oculto?<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> trouxe dados bastante concretos, que confirmaram a hipótese de que a desigualdade de gênero permeia a formação em direito. Vale aqui apresentar três dados inferidos pela mesma e que sustentam tal conclusão: i) as aulas expositivas não promovem um espaço propício para discussão; ii) poucos/limitados/restritos espaços de debate sobre as questões de gênero em aula; iii) tratamento “neutro” (des-gendrado<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>) aos exemplos e temáticas abordados na construção do conhecimento.
Esses dados, por si, já seriam riqueza suficiente para justificar o investimento nessa pesquisa. Entretanto, para além dos dados “fresquinhos”, como toda boa pesquisa, a "Interações..." produziu também pesquisadoras e, o pior (ou o melhor?), produziu novas perguntas de pesquisa. Ainda que mereçam reconhecimento, esses achados de pesquisa não resolvem o problema do currículo oculto. Isso porque fazer ciência é um eterno looping; assim que alguma resposta parece apontar embaçada no horizonte, cem outras perguntas claríssimas surgiram junto.
Nesse sentido, achados científicos consistentes tendem a suscitar novas pesquisas que tentarão embasar frentes de ação contra problemas, que se tornam mais circunscritos e definidos a partir de cada dado inferido. E, assim, um passinho a mais vai sendo dado no campo da ciência. Há séculos, é esse o funcionamento; lentamente, passinhos de vários pesquisadores e pesquisadoras, por todo o mundo, sugerem caminhos na investigação e resolução dos problemas.
Soube pela equipe do GPEIA que, das 23 pessoas da largada, sobraram 13 na chegada. Fato esperado e recorrente no campo acadêmico. Pesquisar é uma atividade trabalhosa, que demanda tempo e infinitas reuniões, especialmente quando a tônica se pretende coletiva (como foi no caso delas). Não é fácil lidar coletivamente com dados, produzir análises em conjunto e dividir responsabilidades de forma horizontal. Sobretudo de forma não reembolsada.
Além do mais, é importante que reconheçamos essa lacuna de nossas formações, seja em direito, em sociologia ou em educação. Aprendemos os pontos do bordado da pesquisa nos bancos acadêmicos, mas não aprendemos o que fazer quando embaraça ou desfia a linha, quando a agulha enferruja, quando há muita agulha para pouco ponto ou muito ponto para pouca linha etc. É na costura, “on time”, que esses enlinhados se apresentam; e nós seguimos bordando, apesar deles. E bordando melhor, a cada nó desfeito (ou feito?).
Enfim, a ciência é um pesquisar entrelaçado no outro, com uma teoria sugerindo o desenho a ser montado. Só que o arremate final nunca chega, ainda que, no amanhã, ele com certeza esteja mais perto que no hoje.
------------------------------------
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Programa de Iniciação Científica. É a primeira experiência que um/a aluna/a pode ter na graduação de participação em pesquisa, tutorado/a por um/a professor/a. É considerada a “porta de entrada” no fazer científico.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> SENNETT, Richard. O artífice. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. 364 p.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> NEDER CEREZETTI et al, Interações de gênero nas salas de aula da Faculdade de Direito da USP: um currículo oculto?, São Paulo, Cátedra UNESCO de Direito à Educação/Universidade de São Paulo (USP), 2019, disponível em<a href="https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000367420.locale=en">https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000367420.locale=en</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Àqueles/as que não estão familiarizados/as com o termo, o “desgendramento”, um neologismo feminista, diz respeito à não consideração dos aspectos de gênero. Assim, concebe um ser humano supostamente “neutro”, “genérico”, o que não existe no mundo real. Na verdade,  processos de atribuição de gênero começam antes do nascimento, nas barrigas das mães, ao se definir se um bebê macho ou fêmea será menino ou menina e ao dar-lhe um nome próprio condizente com essa expectativa. O processo de gendramento segue por toda vida, sendo mais fortemente apresentado na infância e na adolescência.

ttt (1)

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

A ciência é um pesquisar entrelaçado no outro, com uma teoria sugerindo o desenho a ser montado

Bordando uma pesquisa: o caminho coletivo, lento e eficaz da ciência

A ciência é um pesquisar entrelaçado no outro, com uma teoria sugerindo o desenho a ser montado