José Eduardo Faria

<blockquote class="jota-article__quote">"A violência é por natureza instrumental; como todos os meios, sempre necessita de orientação e justificação pelos fins que persegue. E o que necessita ser justificado por alguma outra coisa não pode ser a essência de coisa alguma."
<footer class="jota-article__quote-cite">Hannah Arendt, in "Crises da República"</footer>
</blockquote>
Se há um denominador comum na bancada bolsonarista eleita em 2018, além da mediocridade intelectual e da falta de envergadura política, ele é certamente o objetivo de corroer as instituições democráticas, abrindo caminho para um autoritarismo furtivo justificado pelos mais variados pretextos – do combate ao comunismo à afirmação da soberania nacional.
Nestes dois últimos anos, particularmente, essa bancada soi disant patriótica e integrada por “pessoas de bem”, que se apropriaram das cores nacionais, foi pródiga na apresentação de projetos de lei que desestruturam o Estado democrático de Direito e põem em risco a tripartição dos Poderes.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>No que se refere ao Judiciário, por exemplo, as propostas mais absurdas – de autoria de dois deputados do PSL, um do Rio de Janeiro e outra do Distrito Federal – foram: primeiro, a que tipifica como crime de responsabilidade qualquer interpretação não literal da Constituição por parte dos ministros dos tribunais superiores; igualmente, a que tenta reduzir a idade de aposentadoria compulsória da magistratura.
No primeiro caso, a ideia era tolher o princípio do livre julgamento dos ministros, sob a justificativa de conter o “ativismo judicial” e “a hipertrofia do Supremo Tribunal Federal”, evitando com isso que a cúpula da Justiça continuasse invadindo a competência legislativa do Congresso.
“O STF vem alterando o sentido literal da Constituição, usurpando com isso o próprio poder constituinte, que se confunde com a soberania nacional e tem como titular único e exclusivo apenas o povo brasileiro”, afirmou o relator desse projeto, evidenciando seu desconhecimento dos mais elementares conceitos de Hermenêutica Jurídica, Teoria do Estado e Direito Público.
No segundo caso, sob o pretexto de oxigenar o STF, forçando a rotatividade de ministros, a ideia era abrir vagas na Corte, a fim de que Bolsonaro pudesse aparelhá-la com indicados áulicos, curvos e submissos – desses que aceitam “tomar tubaína” ou afirmam que “o Estado é laico, mas as pessoas não são” e que “onde a ciência não explica, a fé traz justificativas”.
Já no que se refere ao Executivo, as propostas apresentadas pela bancada bolsonarista têm por objetivo empoderar o governo, reduzir a dimensão deliberativa da democracia e fragilizar direitos e garantias individuais. Por seu potencial disruptivo, em matéria de segurança do direito, dois projetos de lei – ambos de autoria de um deputado do PSL de Goiás – merecem destaque.
Apresentado no começo do ano, o primeiro projeto (<a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2275484">PL 1074/2021</a>) previa a criação do instituto jurídico da “mobilização nacional”, permitindo ao chefe do Executivo adotar no combate à pandemia medidas autorizadas apenas para situações de guerra.
Entre outras medidas, o projeto conferia a ele o poder de intervir nos processos produtivos industrial e agrícola, requisitar a ocupação de bens e serviços e convocar civis e militares para atuarem no combate à crise de saúde pública. Também permitia que o presidente assumisse o controle das polícias militares estaduais, que sempre foram subordinadas aos governadores.
O segundo projeto de lei (<a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2194587">PL 1595/2019</a>) altera a legislação sobre terrorismo. Entre outros objetivos, todos justificados pelas ideias de “salvar vidas, preservar a capacidade do Estado de tomar decisões e preservar o patrimônio público e privado”, ele prevê a criação de um Comando Conjunto de Operações Especiais e de um Grupo Nacional de Operações Especiais. Como esses órgãos seriam subordinados diretamente ao presidente da República, Bolsonaro teria acesso a informações sigilosas de pessoas e empresas.
Além disso, os agentes policiais seriam beneficiados com a figura jurídica do excludente de ilicitude, o que lhes permitiria não serem punidos por matar alguém na tentativa de “resguardar a vida de vítima, em perigo real ou iminente, causado pela ação terrorista, ainda que o resultado, por erro escusável na execução, seja diferente do desejado”.
Na prática, sob o pretexto de combater o terrorismo, esse projeto cria uma polícia política imune a controles legais e um sistema paralelo de segurança pública. E, na mesma linha da proposta do instituto jurídico da “mobilização nacional”, que afrontava o princípio do federalismo, abre caminho para a supressão da autoridade e das prerrogativas dos Executivos estaduais, ao autorizar o emprego das polícias militares em ações sigilosas sem autorização dos governadores.
Por fim, recorrendo a conceitos vagos e abertos, o projeto permite que a tipificação do crime de terrorismo seja aplicável a manifestações públicas, a atos de protesto e a ações dos movimentos sociais. Ou seja, ao propor um Estado policialesco, o projeto colide frontalmente com o artigo 1º da Constituição, segundo o qual a República Federativa do Brasil “constitui-se em Estado democrático de Direito”, com “Poderes independentes e harmônicos entre si”.
Essa é uma das características mais preocupantes da atual legislatura. A chamada pequena política congressual sempre foi confundida com práticas “franciscanas” de dar para receber e com concessões fisiológicas feitas aos parlamentares do baixo clero, em troca de sua fidelidade ao governo. O que está se vendo agora é que essa pequena política mudou com a chegada da bancada bolsonarista, tornando-se mais ladina, mais cínica, mais hipócrita e, principalmente, mais perigosa.
O desmanche das instituições – sutil, mas promovido em plena luz do dia – revela um método próximo ao visto na ascensão do nacional-socialismo, na primeira metade do século 20 na Alemanha. Trata-se da utilização da ordem jurídica em vigor e do processo legislativo democrático para chegar ao poder e, uma vez nele, miná-los, governando sem se submeter ao Legislativo e sem aceitar decisões judiciais contrárias aos seus interesses. Em outras palavras, o método implica usar as regras democráticas com base nas quais se elegeram para tentar manter-se no poder, eliminando padrões normativos que eram configurados da política legislativa do regime democrático.
Lembrando a afirmação de Hannah Arendt de que a ação política é sinônimo de liberdade e reflexo da condição plural dos homens, é inadmissível esse tipo de prática da bancada bolsonarista, que recorre à política para tentar restringir ao máximo o espaço da liberdade e impor o absolutismo, que é antipolítico por princípio. É inaceitável o uso das regras do Estado de Direito e do processo legislativo democrático para concentrar poderes nas mãos de um governo desumanizante, como foi evidenciado pelo negacionismo científico em plena pandemia. De um governo autocrata que diz ser preferível perder a vida do que perder a liberdade, deixando de lado – por conveniência e por ignorância – que a liberdade existe apenas onde a condição plural do homem não seja desprezada ou desqualificada.
Esse é, em suma, o perigo da pequena política que tomou conta do Congresso após a chegada da bancada bolsonarista eleita em 2018: o uso reiterado do direito contra o direito, rompendo com isso o modelo republicano de esfera pública, em cujo âmbito o que está em primeiro plano são processos comunicativos que contribuem para a formação e transformação de opiniões, interesses e identidades dos cidadãos.
Por isso, diante da inspiração autoritária e policialesca das propostas dessa bancada, não se pode esquecer o que dizia Hannah Arendt há mais de meio século. A violência sempre pode destruir o poder constituído. Do cano de um fuzil pode até nascer uma ordem mais eficiente, resultando na mais perfeita e instantânea obediência. No entanto, o que nunca vai nascer daí é o poder legítimo das democracias deliberativas – dizia ela.

o jurista bolsonarista

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JOTA

Projetos de inspiração autoritária e policialesca da bancada bolsonarista promovem desmanche institucional

A pequena política do bolsonarismo e a corrosão da democracia

Projetos de inspiração autoritária e policialesca da bancada bolsonarista promovem desmanche das instituições sutil, mas à luz do dia