Carolina Ribeiro Santana

Ao contrário do que vem sendo difundido nos últimos anos, por determinados setores ligados à exploração econômica predatória do meio ambiente, a demarcação de terras indígenas não ocorre de modo frequente e, tampouco, configura um procedimento facilitado.
Em que pese o direito territorial indígena ser originário, trata-se de processo administrativo que exige da União a observância a quatro requisitos constitucionais para que possa reconhecer uma terra como tradicionalmente ocupada por indígenas: i) deve ser por eles habitada em caráter permanente, ii) utilizada para suas atividades produtivas, iii) ser imprescindível à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem estar e iv)  ser necessária a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Não obstante as exigências constitucionais já existentes, a Suprema Corte enunciou a então denominada tese do marco temporal, ou tese do fato indígena, segundo a qual restringiu-se o direito à demarcação territorial apenas aos indígenas que estivessem em posse de suas terras na exata data da promulgação de nossa mais recente Carta Magna. Erigiu-se, portanto, exigência adicional ao caráter tradicional de ocupação da terra, qual seja, a presença dela na exata data de 5 de outubro de 1988.
O ministro Ayres Britto, responsável pela lavra do Acórdão da Petição nº 3.388, ocasião em que a tese ganhou maior destaque, afirma que, embora a proposição não seja concepção sua, ele a acolheu avaliando dois pontos primordiais: i) ela teria sido um propósito já presente em nossa Assembleia Nacional Constituinte, e ii) a reinterpretação do texto normativo por ele levada a efeito teria sido realizada em conformidade com o todo da Constituição <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Em outras palavras, segundo o ministro relator, a ideia de um marco temporal vinculando a demarcação das terras à ocupação indígena em 5 de outubro de 1988 já estaria presente quando da gênese da norma, teria sido uma ideia debatida pelos constituintes de 1987/1988, razão capaz, portanto, de autorizar a sua reinterpretação, segundo ele, feita em harmonia e consonância com conjunto das normas constitucionais.
A tese não é absoluta e comportaria exceções. Para os casos em que se confirme a ausência de posse indígena, na data estipulada, por eles terem sido delas esbulhados, admite-se o afastamento da tese a partir da apresentação de controvérsia possessória judicializada ou de circunstâncias de fato.
A princípio, a tese parece coerente e razoável, dado que fora justificada sua elaboração, bem como enunciaram-se exceções autorizando o seu afastamento, evitando, assim, injustiças e a legitimação de terras obtidas de modo ilegal.
Todavia, à luz do que precede, eu gostaria de apresentar algumas considerações, iniciando, justamente, pelas exceções admitidas pelo STF. Uma análise mais acurada revelará que afastar a tese, quando não impossível, é de dificílima exequibilidade, seja por razões históricas, seja por razões políticas.
A apresentação de circunstâncias de fato (como documentos oficiais ou matérias jornalísticas) como produção de prova em favor dos indígenas, exigiria que a história do latifúndio e dos detentores dos principais meios de comunicação (os narradores dos fatos, portanto) fosse outra em nosso país.
<blockquote class="jota-article__eye">A prática da advocacia indigenista, e os inumeráveis estudos antropológicos, tem demonstrado que, historicamente e via de regra, a expropriação de terras indígenas ou não foi noticiada pelos meios de comunicação ou o foi de modo parcial, em favor dos proprietários.</blockquote>
Ainda ao que tange à apresentação de documentos oficiais é preciso que se considere que por longos 78 anos (de 1910 a 1988) a política indigenista foi integracionista, e que o órgão indigenista era a longa manus do Estado brasileiro responsável por "pacificar" os indígenas e confiná-los em Reservas, abrindo espaço para a expansão da fronteira agrícola <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Quanto à exigência de controvérsia possessória judicializada é preciso rememorar que os indígenas somente passaram a gozar de capacidade postulatória, justamente, em 5 de outubro de 1988, sendo, antes disso, proibidos legalmente de reivindicar judicialmente seus direitos possessórios.
Além disso, o STF já firmou entendimento de que a Constituição de 1988 inaugurou um regime de posse indígena de natureza constitucional. Parece-nos contra-protetiva e incoerente a exigência de controvérsia possessória anterior à 1988, pois irá retroagir o debate sobre a posse indígena para os termos civis.
A respeito de ter sido o marco temporal um propósito constitucional, a análise dos Anais da Assembleia Nacional Constituinte não revela qualquer vestígio de intenção de estabelecimento de um marco, seja em 5 de outubro de 1988, seja em qualquer outra data, para a realização de demarcação de terras indígenas <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
O próprio relator da subcomissão que tratou das questões indígenas, Alceni Guerra, afirma que o tema jamais figurou entre os debates constituintes <a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, e não há que se confundir tal debate com a discussão sobre imemorialidade, ocorrida durante as reuniões do Plenário da Constituinte.
O próprio Supremo parece não ter encontrado consenso a respeito de todas essas contradições, razão pela qual fora suscitada repercussão geral no RE nº 10173635.
Seria interessante que a Corte considerasse a análise histórica e política do caso em comento e avaliasse que, se a existência de um suposto propósito constitucional foi capaz de sustentar a reinterpretação da norma para restringir-lhe a eficácia, a via inversa apresenta-se igualmente possível: é a ausência de tal propósito que deve pautar a hermenêutica. Se vontade constitucional houve, trata-se de desígnio de resguardo, incapaz de ensejar o retrocesso e a limitação da demarcação territorial.
Ademais, a própria interpretação conforme à Constituição deveria ter impedido que se chegasse ao resultado alcançado. A linguagem utilizada pelo constituinte é reveladora de suas escolhas protetivas: inalienabilidade, imprescritibilidade, indisponibilidade.
Observe-se que a Constituição afirma que são reconhecidos aos índios as terras que tradicionalmente ocupam. O "reconhecer" para o Direito é diferente do outorgar, do conceder. O conceder obedece à lógica do doravante, o reconhecer, que foi a linguagem da Constituição, obedece à lógica temporal do desde sempre.
Logo, não há que se falar em proteção somente a partir da data da promulgação da Constituição. Por fim, atente-se para o fato de que, além do direito coletivo, a Constituição garante a cada indígena, seu direito individual à terra <a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Evidente que não se está aqui sugerindo que as discussões da Assembleia Nacional Constituinte são capazes de cercear a liberdade de interpretação do magistrado diante do caso concreto. O conteúdo significante do enunciado normativo, por ser genérico, impessoal e abstrato, rende ensejo, não raro, a mais de uma interpretação.
Porém, a existência da polissemia dos textos jurídicos, a multissignificatividade do discurso normativo jamais poderá resultar em interpretação diametralmente oposta ao intuito constituinte. Se a intenção era protetiva, a reinterpretação da norma não pode ocasionar desproteção.
Os debates realizados na Assembleia Nacional Constituinte devem ser o primeiro limite semântico na aplicabilidade das normas constitucionais a respeito dos direitos territoriais indígenas, especialmente por terem sido escritas, pela primeira vez na história, junto com os indígenas.
O marco dos direitos territoriais indígenas é, de fato, a Constituição de 1988, mas tal marco é protetivo. A leitura dos Anais não deixa dúvidas disso. E esse nosso marco é fundador não apenas da estrutura do Estado, mas também agregador das pessoas em torno de uma comunidade de princípios.
O tempo e a temporalidade não nos devem apagar a lembrança de seu processo de origem, que não pode ser ignorado por aqueles que se propõem a interpretar a Constituição. Mais do que um poder homogêneo a experiência constituinte é permeada pelas clivagens sociais que a integram e isso segue vivo na sociedade após o encerramento dessa experiência.
O processo político-jurídico pelo qual o compromisso constitucional foi estabelecido pode nos ajudar a densificar as interpretações que vêm sendo feitas dos dispositivos constitucionais e, quiçá, transpor uma onda cíclica de constante reinterpretação casuística dos direitos territoriais indígenas permeada pela influência de anseios sociais momentâneos e interesses político pouco republicanos.
Veja-se, portanto, que não bastasse o processo administrativo ser complexo e longo, exigindo atos de três instâncias do Poder Executivo <a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> e a possibilidade de judicialização do processo demarcatório a qualquer tempo, os indígenas enfrentam agora uma tese jurídica construída sobre premissas equivocadas.
Os indígenas estão desprotegidos, o processo administrativo para a proteção de suas terras é complexo e o STF vem piorando a condição de vulnerabilidade dessas pessoas. Está agora nas mãos da Corte, no RE nº 10173635 retificar a tese do marco temporal ou manter a tradição de que os indígenas não contam mesmo com quase ninguém no Brasil.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Entrevista concedida em 13/05/2019.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Informações detalhadas a respeito da inexequibilidade das exceções admitidas à tese do marco temporal podem ser encontradas no artigo Direitos territoriais indígenas: o STF contra a Constituição (SANTANA, 2018).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Para mais detalhes sobre os Anais da Constituinte e terras indígenas ver Santana, C. e Cardoso, T (2019).
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Entrevista concedida em dezembro de 2018.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Ver Sarmento (2013)
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> uma portaria do presidente da autarquia responsável pelos estudos de identificação e delimitação da terra, a FUNAI; uma portaria do chefe do Ministério ao qual a autarquia é vinculada, o da Justiça e, um decreto de homologação do Presidente da República. Em todas as instâncias a documentação é submetida ao escrutínio de Procuradores Federais e Advogados da União, além de, na primeira instância, haver espaço para a apresentação de contraditório pelos proprietários de imóveis cuja área incida na terra a ser demarcada.
Referências:
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição n°. 3388. Ministro Relator Carlos Ayres Britto, 2009. Disponível em: <a href="http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/pet3388CB.pdf">http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/pet3388CB.pdf </a>.
BRASIL. Diário da Assembleia Nacional Constituinte. Disponível em: <a href="http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/sup53anc01mai1987.pdf#page=179">http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/sup53anc01mai1987.pdf#page=179 </a>
BRITTO, A. Entrevista concedida a Carolina Ribeiro Santana em 13 de maio de 2019.
CUNHA, M. Índios na Constituição. Novos estud. CEBRAP, São Paulo , v. 37, n. 3, p. 429-443, Dec. 2018 . Disponível em &lt;<a href="http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&amp;pid=S010133002018000300429&amp;lng=en&amp;nrm=iso">http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&amp;pid=S010133002018000300429&amp;lng=en&amp;nrm=iso</a>&gt;. Acesso em 09 Fev. 2020.
FERNANDES, F. A Constituição inacabada - vias históricas e significado político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.
GOMES, M. (Org.). A Constituição de 1988, 25 anos: a construção da democracia &amp; liberdade de expressão: o Brasil antes, durante e depois da Constituinte. São Paulo: Instituto Vladimir Herzog, 2013.
GUERRA, A. Entrevista concedida a Carolina Ribeiro Santana em 19 de dezembro de 2018.
KRENAK, Ailton. Para os índios, a presença nos debates da Constituinte significou a redescoberta do Brasil. [29 de julho de 2018] Entrevista concedida à Raquel Torres. Disponível em&lt; <a href="https://outraspalavras.net/outrasaude/nos-debates-da-constituintesindios-redescobriram-o-pais">https://outraspalavras.net/outrasaude/nos-debates-da-constituintesindios-redescobriram-o-pais</a>/&gt;. Acesso em 14 de fev. 2020.
SANTANA, C. R. Direitos territoriais indígenas: o STF contra a Constituição. In: ALCÂNTARA, Gustavo K., MAIA, Luciano M., TINÔCO, Lívia N. (Org.) Índios, direitos originários e territorialidade. Brasília: Editora ANPR, 2018, p. 451 - 479. Disponível em: <a href="http://anpr.org.br/assets/uploads/files/publicacoes/i%20-%20j/indiosPDF.pdf">http://anpr.org.br/assets/uploads/files/publicacoes/i%20-%20j/indiosPDF.pdf</a>
SANTANA, C.R.  e  CARDOSO, T. M. Direitos territoriais indígenas às sombras do passado. Rev. Direito e Práxis. [online]. 2020, vol.11, n.1, pp.89-116.
SARMENTO, D. A PEC 215/00 e as Cláusulas Pétreas. Rio de Janeiro, 2013.
TRIBE, L. H e LANDRY, T.K. Reflections on Constitution-making. Am. UJ Int'l L. &amp; Pol'y, v. 8, p. 627, 1992.

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