Laura Clímaco Bemfica de Faria

Pietra Vaz Diógenes da Silva

Não muito tempo atrás, a vida se desenrolava unicamente no espaço físico, onde se concentravam todas as possibilidades da existência humana. Com a revolução das telecomunicações, no entanto, as esferas de vivência analógica e virtual estão cada vez mais integradas, não sendo mais possível discernir seus limites.
De nada adianta cortar os fios do telefone, colocar o celular no modo avião, jogar a Alexa pela janela: os signos da internet já fazem parte de nossas construções enquanto sujeitos.
Esse panorama contemporâneo é objeto de estudo do filósofo italiano Luciano Floridi. O professor de Filosofia e Ética da Informação da Universidade de Oxford é autor de um extenso trabalho científico em que busca desenvolver a compreensão dessa nova realidade, analisando os desafios jurídicos, éticos e políticos desencadeados pelas novas tecnologias de informação e comunicação (TICs).
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a> Em duas de suas principais obras, “The Fourth Revolution: How the Infosphere is Reshaping Human Reality”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e “The Philosophy of Information”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, Floridi apresenta interessantes conceitos, utilizados neste texto para nortear as reflexões propostas.
Atualmente, uma das transformações mais evidentes é a fusão das vivências analógica-offline e online: nunca estamos plenamente desconectados. A isso, o filósofo atribui a denominação “onlife”.
Nessa condição, o “eu” humano (self) é definido como um verdadeiro sistema informacional de alta complexidade, constituído pela consciência, por narrativas ou memórias. O self é influenciado a todo tempo pelas TICs, que coletam nossos dados, apresentam-nos sugestões nas mais diversas interfaces, e modificam nossos gostos e condutas de maneira até mesmo inconsciente.
As mídias sociais, por exemplo, constituíram um novo espaço em que as relações interpessoais se dão. Essas TICs são capazes de modificar nossas relações e de regular as possibilidades de apresentação de si mesmo do indivíduo para o mundo – apresentação esta que é constantemente atualizada.
<blockquote class="jota-article__eye">Dessa forma, mídias sociais também transformam, indiretamente, tanto o modo como o sujeito passa a se enxergar, como ainda acabam por modificar a sua própria identidade pessoal, ou seja, quem ele de fato é.</blockquote>
Floridi destaca que as TICs, com suas inúmeras funções e vasta capilaridade na construção do sujeito, são as tecnologias mais transformadoras com que o ser humano já teve contato. O termo “sociedade da informação” para descrever nossa realidade é insuficiente, pois abarca somente mudanças sociais e econômicas e não compreende a profundidade com que as TICs alteram a nossa própria percepção do mundo, das pessoas e de nós mesmos.
Fazemos parte de um ambiente de simbiose entre as realidades analógica e virtual. Não apenas biosfera, não apenas ciberespaço: vivemos na chamada “infosfera”. O neologismo, cunhado por Floridi, traduz que o aspecto digital da vida não é mais anexo a ela, mas sim parte dela.
E, se a forma de se perceber, de perceber o outro e de perceber a própria realidade se transformou e trouxe consigo mudanças profundas para os sujeitos, há que se considerar os impactos disso no campo da elaboração normativa.
Um fator que merece especial atenção, até mesmo para proporcionar abordagens adequadas em outras  discussões – desde políticas sociais de inclusão digital até as complexas implicações do machine learning –, é o próprio papel da tecnologia ao se fazer a lei. Como a tecnologia tem sido tratada?
Desde que as TICs passaram a ser incorporadas na realidade da elaboração normativa, um universo de possibilidades se abriu para a otimização dos processos de criação das normas.
Os recursos tecnológicos têm auxiliado o diálogo entre os atores envolvidos – o que é essencial para o efetivo contraditório na construção do processo legislativo –, a redação normativa e seu aprimoramento linguístico, o acesso a textos e fontes.
Além disso, a própria avaliação de impacto foi facilitada, seja ela anterior ou posterior ao ato normativo, a partir de uma maior racionalização das fases e dos elementos envolvidos. É possível, por exemplo, analisar o ordenamento jurídico em sua totalidade, o que facilita a verificação da coerência de uma nova proposição normativa em meio a tantas normas já existentes.
Ocorre que as tecnologias da informação já deixaram de ser somente ferramentas. As TICs são bem mais do que recursos úteis que podem ser utilizados para fins diversos. Elas são aparatos programados segundo lógicas específicas para alcançar objetivos próprios e, portanto, não são neutras.
Nesse sentido, é insuficiente reduzir a tecnologia a apenas instrumento que auxilia o legislador na definição do conteúdo da lei. Isso porque, no fim das contas, essa lógica continua tomando como formal algo que é também material. Essa seria, de acordo com Floridi, uma visão instrumentalista, que é um dos erros mais comuns ao se pensar a relação do ser humano com a tecnologia atualmente.
Na prática, a premissa de que as TICs seriam instrumentos que levariam ao maior conhecimento e à ampliação da participação cidadã nos processos decisórios não se verifica necessariamente, e se mostra simplista.
A alta velocidade de propagação de informações falsas nas redes, associada a essa maior fluidez de (re)construção de identidades pessoais pode não só ser decisiva na manipulação de tomada de decisões dos indivíduos (no momento do voto nas eleições, por exemplo), como causar impactos muito mais profundos: o indivíduo pode ter a sua própria percepção identitária afetada pelas TICs.
Surge a vulnerabilidade do sujeito à perda da percepção do real lugar que ocupa na estrutura social e, consequentemente, de quais os projetos políticos que de fato lhe atendem e à comunidade que integra.
Nesse cenário, alterações legislativas mal planejadas, catalisadas por desinformação e fake news que deflagram clamores inflamados nas redes, podem resultar em catástrofes para as políticas públicas.
Assim, é preciso atualizar a legística, pensando nesse novo contexto. Afinal, a elaboração normativa tem como um de seus principais atores os destinatários da norma, e estes são sujeitos em transformação, imersos na nova tônica informacional da realidade.
Muito mais do que hardwares e softwares que auxiliam os legisladores tecnicamente, a tecnologia deve ser considerada em sua inegável complexidade enquanto formadora do self e da realidade.
Em algum ponto entre forma e conteúdo, analógico e digital, online e offline, está a realidade em que estamos inseridos. Se pensar a lei, como preconizado por Delley<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, exige que a situação fática seja analisada, com a definição precisa da realidade vivida e da realidade desejada, então, é de grande importância que todos os atores envolvidos na atividade de elaboração normativa tomem consciência do papel transformador que as TICs desempenham a todo tempo, para que seja possível uma instrução informacional efetiva e responsável do processo legislativo.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> FLORIDI, Luciano. The Fourth Revolution: How the Infosphere is Reshaping Human Reality. 1. ed. Oxford: Oxford University Press, 2014. 264 p. Ainda não possui tradução para a língua portuguesa.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> FLORIDI, Luciano. The Philosophy of Information. 1. ed. Oxford: Oxford University Press, 2013. 405 p. Ainda não possui tradução para a língua portuguesa.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> DELLEY, Jean-Daniel. Pensar a Lei: Introdução a um pensamento metódico. Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, v.7, n. 12, p. 101-143, jan./jun. 2004 Disponível em: &lt;<a href="about:blank">https://www.al.sp.gov.br/StaticFile/ilp/pensar_a_lei_-_jean-daniel_delley.pdf</a>&gt;. Acesso em: 20 de janeiro de 2021.

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JOTA

Uma reflexão sobre a legística na era da tecnologia da informação a partir de conceitos de Luciano Floridi

Antes de mudar a lei, a tecnologia muda o sujeito

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