Marlon Tomazette

Henrique Arake

Em setembro de 2006, o Conselho Federal da ordem dos Advogados do Brasil editou o Provimento nº 112/06 do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (“Provimento OAB nº 112/06”), dispondo sobre as regras de formação das sociedades de advogado no Brasil. Dentre os vários dispositivos desse Provimento, chama a atenção o art. 4º que disciplina a possibilidade de exclusão extrajudicial de sócio de sociedade de advogados ante a deliberação da maioria do capital social:
Art. 4º A exclusão de sócio pode ser deliberada pela maioria do capital social, mediante alteração contratual, desde que observados os termos e condições expressamente previstos no Contrato Social.
Parágrafo único. O pedido de registro e arquivamento de alteração contratual, envolvendo a exclusão de sócio, deve estar instruído com a prova de comunicação feita pessoalmente ao interessado, ou, na sua impossibilidade, por declaração certificada por oficial de registro de títulos e documentos.
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Desde então, não é incomum encontrar a referida previsão nos contratos sociais de diversas sociedades de advocacia pelo País. Com efeito, esse dispositivo permite que os sócios com maior participação no capital social possam controlar melhor a composição do quadro societário e evita a judicialização de questões intra corporis da sociedade.
O que chamou a atenção é o fato de essa disposição ir de encontro ao que está previsto nos arts. 997, I e IV, e 999 do Código Civil (“CC”):
Art. 997. A sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará:
I - nome, nacionalidade, estado civil, profissão e residência dos sócios, se pessoas naturais, e a firma ou a denominação, nacionalidade e sede dos sócios, se jurídicas;
[...]
IV - a quota de cada sócio no capital social, e o modo de realizá-la [...].
Art. 999. As modificações do contrato social, que tenham por objeto matéria indicada no art. 997, dependem do consentimento de todos os sócios; as demais podem ser decididas por maioria absoluta de votos, se o contrato não determinar a necessidade de deliberação unânime.
Como se observa no CC, a composição dos quadros sociais das sociedades simples é uma das matérias previstas no art. 997 do CC, o que, por força do art. 999 do CC, implica na necessidade de deliberação unânime dos sócios para modificação do contrato social nesse sentido.
Desse modo, uma vez que o art. 4º do Provimento OAB 112/06 autoriza que as sociedades de advogado excluam extrajudicialmente um sócio de seus quadros mediante a deliberação da maioria do capital social, questiona-se se esse dispositivo não acaba por violar o art. 999 do CC que demanda deliberação unânime para tal desiderato nas sociedades simples. Para solucionar essa questão, é imperativo que iniciemos a análise a partir da conceituação das sociedades de advogados.
Conceito e enquadramento da sociedade de advogados
Ao contrário das sociedades em geral, não é a sociedade de advogados que exerce a atividade, mas sim seus sócios em nome próprio e com responsabilidade ilimitada. Nesse sentido, o artigo 37, § 1º do Regulamento Geral da OAB estabelece que “[a]s atividades profissionais privativas de advogados são exercidas individualmente, ainda que revertam à sociedade os honorários devidos”. Não por outro motivo, aliás, que as procurações são outorgadas aos advogados da sociedade, podendo-se, contudo, haver menção à sociedade de advogados apenas para evitar discussão quanto à percepção de honorários pela sociedade.
Ora, resta claro que diferentemente do que ocorre nas outras sociedades, a sociedade de advogados não exerce a atividade fim, isto é, ela não exerce a advocacia. Quem advoga (i.e. peticiona, sustenta, recorre) são os advogados (sócios, associados ou advogados).
Nessa perspectiva, pode-se afirmar, sem sombra de dúvida, que a sociedade de advogados é um mero instrumento da atividade que será exercida por seus sócios. “Em nenhuma outra sociedade, dentre as dedicadas aos serviços profissionais é tão caracterizadora do trabalho pessoal dos sócios como a composta por advogados”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Assim, sendo o próprio conceito da sociedade de advogados é diferente, como se depreende do conceito apresentado pelo Dr. Alfredo de Assis Gonçalves Neto:
“Em consequência, a partir da função que a sociedade de advogados visa a preencher, pode-se defini-la como aquela constituída por dois ou mais advogados para lhes permitir ou facilitar o exercício da advocacia em regime de colaboração recíproca, com disciplinamento do expediente e da divisão dos resultados patrimoniais auferidos no atendimento que os advogados a ela vinculados prestam para os clientes”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
O objetivo da sociedade não é prestar serviços de advocacia, mas apenas permitir que os advogados possam exercê-la de “modo mais racional e organizado do que fariam isoladamente”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Em outras palavras, a sociedade de advogados “destina-se a oferecer o apoio material necessário ao exercício da atividade advocatícia”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Ademais, cabe, ainda, afastar as sociedades de advogados do conceito de sociedades empresárias, como determina o artigo 16 do Estatuto da OAB:
Art. 16.  Não são admitidas a registro nem podem funcionar todas as espécies de sociedades de advogados que apresentem forma ou características de sociedade empresária, que adotem denominação de fantasia, que realizem atividades estranhas à advocacia, que incluam como sócio ou titular de sociedade unipessoal de advocacia pessoa não inscrita como advogado ou totalmente proibida de advogar. <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13247.htm#art2">(Redação dada pela Lei nº 13.247, de 2016)</a>
As sociedades empresárias exercem atividade própria de empresário (art. 982 do Código Civil) que esteja sujeito a registro, vale dizer, elas exercem atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços (“empresa”) e a lei lhes impõe uma obrigação de registro prévio antes de iniciar a exploração dessa atividade.
Não basta o exercício de uma atividade econômica para a qualificação de uma sociedade como empresária, a organização deve ser de fundamental importância, assumindo prevalência sobre a atividade pessoal do sujeito/sócio<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. A organização nada mais é do que a colocação dos meios necessários, coordenados entre si, para a realização de determinado fim<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Um dos critérios que podem ser usados para verificar a predominância da organização é a padronização e objetivação da atividade<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Quanto mais padronizada for a atividade, mais clara fica a condição secundária da atividade intelectual. Outrossim, para o consumidor há uma certa fungibilidade na atividade prestada, isto é, não interessa o prestador, mas apenas o serviço em si.
Como exercício, sugere-se ao leitor que tente se lembrar do nome do seu endocrinologista e do nome do médico que o atendeu na última vez que tenha ido à emergência de um hospital. Certamente, o primeiro nome virá à mente muito mais rápido do que o segundo, pois a predominância da importância do sócio médico titular da clínica é maior do que a de um médico que compõe os quadros de um hospital. Da mesma maneira, a contratação de um advogado, em regra, se dá em razão das suas qualidades pessoais que poderão permitir um bom resultado ao cliente. Nesse caso, não se pode dizer que o advogado seja um empresário, na medida em que a organização assume um papel secundário em relação à atividade pessoal do profissional<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
O artigo 966, parágrafo único, do CC, aliás, afirma que não são empresários aqueles que exercem profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda que com o concurso de auxiliares ou colaboradores. Embora tais atividades também sejam econômicas, isto é, também produzam novas riquezas, é certo que seu tratamento não deve ser dado pelo direito empresarial.
Essa exclusão decorre do papel secundário que a organização assume nessas atividades<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> e não apenas de um caráter histórico e sociológico<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>. Nas atividades não empresariais, o essencial é a atividade pessoal, o que não se coaduna com o conceito de sociedade empresária. As atividades intelectuais são prestadas de forma pessoal e, mesmo com a concorrência de auxiliares, há uma relação de confiança com quem desenvolve a atividade<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Não há como negar a organização que hoje permeia as atividades intelectuais, mas é certo que essa organização não assume papel preponderante, ainda que se recorra ao uso de auxiliares, o personalismo prevalece, no sentido da assunção pessoal do resultado da atividade. Em função disso, chegou-se ao Enunciado 194 da III Jornada de Direito Civil promovida pelo CJF, que afirma que “Os profissionais liberais não são considerados empresários, salvo se a organização dos fatores da produção for mais importante que a atividade pessoal desenvolvida”.
E, ainda que assim não fosse, na dicção do artigo 15 do Estatuto da OAB, os advogados somente podem constituir dois tipos de sociedade para explorar a advocacia: (i) sociedade simples; ou (ii) sociedade unipessoal de advocacia, conforme se vê logo abaixo:
Art. 15. Os advogados podem reunir-se em sociedade simples de prestação de serviços de advocacia ou constituir sociedade unipessoal de advocacia, na forma disciplinada nesta Lei e no regulamento geral. <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13247.htm#art2">(Redação dada pela Lei nº 13.247, de 2016)</a>
Dessa forma, seja pela natureza da atividade advocatícia, seja pela expressa determinação legal, pode-se reconhecer a sociedade de advogados como tipo especial de sociedade simples<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>. Postas essas considerações, há que se discutir, agora, se o Conselho Federal da OAB possui competência para regulamentar as sociedades de advogados em detrimento do quanto dispõe o CC. Mais especificamente, concluiremos nossa exposição discutindo a legalidade do art. 4º do Provimento OAB nº 112/06 e a sujeição das sociedades de advogados ao art. 999 do CC.
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O episódio 53 do podcast Sem Precedentes discute ações sobre a Lei de Segurança Nacional, que tem sido usada em inquéritos contra críticos de Bolsonaro. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=1062owtx9o4
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> PEREIRA, Paulo Macedonia. A incomunicabilidade das quotas de sociedades de advogados. Revista Magister de direito civil e processual civil, v. 11, n. 62, p. 92-98, set./out. 2014.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Sociedade de advogados. 6. Ed. São Paulo: Lex, 2015, p. 39.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Sociedade de advogados. 6. Ed. São Paulo: Lex, 2015, p. 40.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> BORBA, José Edwaldo Tavares. Temas de direito comercial. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 69.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> ASCARELLI, Tullio. Corso di diritto commerciale: introduzione e teoria dell’impresa. 3. ed. Milano: Giuffrè, 1962, p. 181; DE CUPIS, Adriano. Istituzioni di diritto privato. Milano: Giuffrè, 1978, v. 3, p. 134.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> VALERI, Giuseppe. Manuale di diritto commerciale. Firenze: Carlo Cya, 1950, v. 1, p. 14.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Das pessoas sujeitas e não sujeitas aos regimes de recuperação de empresas e ao da falência. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 93.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Não iremos adentrar à discussão a respeito das grandes firmas de advocacia que existem no país, pois não é a realidade da maioria dos advogados ou das sociedades de advocacia.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> DE CUPIS, Adriano. Istituzioni di diritto privato. Milano: Giuffrè, 1978, v. 3, p. 134.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Nesse sentido: JAEGER, Pier Giusto; DENOZZA, Francesco. Appunti di diritto commerciale. 5. ed. Milano: Giuffrè, 2000, p. 24.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> VEDOVE, Giampaolo dalle. Nozioni di diritto d’impresa. Padova: CEDAM, 2000, p. 20.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> EIZIRIK, Nelson. O novo Código Civil e as sociedades de advogados.  Revista trimestral de direito civil -RTDC, v. 7, n. 25, p. 271-284, jan./mar. 2006, p. 284.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> Autores: Marlon Tomazette e Henrique Arake. Professores de direito empresarial e membros do Instituto Brasiliense de Direito Empresarial – IADE.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> NUNES, A. J. Avelãs. O direito de exclusão de sócios nas sociedades comerciais. São Paulo: Cultural Paulista, 2001, p. 58; BERTOLDI, Marcelo M. Curso avançado de direito comercial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, v. 1, p. 229.
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> NUNES, A. J. Avelãs. O direito de exclusão de sócios nas sociedades comerciais. São Paulo: Cultural Paulista, 2001, p. 61­‑62.
<a href="#_ftnref16" name="_ftn16">[16]</a> Idem, p. 58.
<a href="#_ftnref17" name="_ftn17">[17]</a>ANDRADE JUNIOR, Átila de Souza Leão. O novo direito societário brasileiro. Brasília: Brasília Jurídica, 1999, p. 122.
<a href="#_ftnref18" name="_ftn18">[18]</a> NUNES, A. J. Avelãs. O direito de exclusão de sócios nas sociedades comerciais. São Paulo: Cultural Paulista, 2001, p. 253; CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 13, p. 323.
<a href="#_ftnref19" name="_ftn19">[19]</a> Enunciado 216 das III Jornadas de Direito Civil do CJF; LORDI, Luigi. Istituzioni di diritto commerciale. Padova: CEDAM, 1943, v. 1, p. 223; MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro. São Paulo: Atlas, 2004, v. 2, p. 160; BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 79; WALD, Arnoldo. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2005, v. XIV, p. 238; VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial. São Paulo: Malheiros, 2006, v. 2, p. 153.
<a href="#_ftnref20" name="_ftn20">[20]</a> ADAMEK, Marcelo Vieira von. Anotações sobre a exclusão de sócios por falta grave no regime do Código Civil, ’ Revista de Direito Mercantil Industrial, Econômico e Financeiro, v. 158, p. 111-134, 2011;  GONÇALVES NETO, Alfredo De Assis. Lições de direito societário, vol. I, 2ª ed. SP: Juarez de Freitas, 2004, n° 54, p. 137; WALD, Arnoldo. Comentários ao novo Código Civil, vol. XIV, RJ: Forense, 2005, n°s 704-706, p. 236; ANDRADE JÚNIOR, Attila De Souza Leão, Comentários ao novo Código Civil, vol. IV − Direito das sociedades, RJ: Forense, 2002, n° 3.6, p. 122; VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial, vol. 2, 2ª ed. SP: Malheiros, 2010, n° 1.12.3.3, p. 165, e n° 3.10.2.1, p. 364. PRICEWATERHOUSECOOPERS, Aspectos relevantes do direito de empresa −coord. Elidie Palma Bifano e Sérgio Roberto de Oliveira Bento, SP: Quartier Latin, 2005; e RIBEIRO, Renato Ventura. Exclusão de sócios nas sociedades anônimas, SP: Quartier Latin, 2005, n° 2.4, p. 189.

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Disposição vai de encontro ao que está previsto nos arts. 997, I e IV, e 999 do Código Civil

Análise do Art. 4º do Provimento nº 112/06 do Conselho Federal da OAB

Disposição vai de encontro ao que está previsto nos arts. 997, I e IV, e 999 do Código Civil