Camilla Varella

Com a passagem do dia 2 de abril, data em que se celebra mundialmente a “Conscientização do Autismo”, reputamos relevante trazer nossa contribuição ao debate quanto à cobertura, pelas Operadoras de Saúde, do tratamento da pessoa diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Consideramos que uma das grandes discussões no âmbito do direito sanitário da atualidade diz respeito à legalidade da limitação de cobertura, pelas operadoras de saúde, aos tratamentos e eventos previstos no rol da Agência Nacional de Saúde (ANS), com base na sua interpretação taxativa. Este entendimento foi defendido pela ANS por ocasião do julgamento do Resp nº 1.733.013/PR e, mais recentemente, também no âmbito do novo rol publicado por meio da Resolução Normativa 465/2021, em especial seu artigo 2º.
<a href="https://www.jota.info/produtos/saude?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Saude_materias"><img class="aligncenter wp-image-292716 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-saude.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>No caso do indivíduo com TEA observa-se que o tratamento multidisciplinar, comumente prescrito pelos médicos, vem sendo reiteradamente negado pelas operadoras de saúde. A questão ganhou relevo no final de 2020, quando o Presidente da Comissão Gestora de Precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Paulo de Tarso Sanseverino, proferiu despacho submetendo os REsp nºs 1.876.521/SP; 1.876.585/SP; e 1.880962/SP ao rito qualificado dos Recursos Repetitivos.
O TEA, nas palavras do saudoso Professor Dr. Marcos Tomanik Mercadante (EPM/UNIFES)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, nomeia “um grupo que apresenta precocemente atrasos e desvios no desenvolvimento das habilidades sociais e comunicativas e um padrão restrito de interesses.”
Nessa medida a intervenção precoce, intensiva e especializada, angariou consenso na ciência médica como protocolo com eficácia comprovada no trato do TEA. Preconiza José Salomão Schwartzman<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, verdadeira autoridade médica brasileira no tema: “A plasticidade cerebral é a capacidade que o cérebro tem de se modificar frente a estímulos ambientais, e essa habilidade está presente de forma mais acentuada nas fases mais precoces do desenvolvimento. Sabendo disso, estudos científicos indicam que quanto mais cedo for instituída a intervenção, melhores serão os resultados do tratamento”.
<blockquote class="jota-article__eye">A despeito da adesão uníssona dos médicos ao protocolo de tratamento precoce, intensivo e especializado do indivíduo com TEA, as operadoras de saúde têm restringido ou mesmo negado sua cobertura, lançando mão do argumento da taxatividade do rol da ANS, tanto no que se refere à técnica do tratamento como à quantidade de sessões de terapia.</blockquote>
Esquecem, porém, que no caso específico do TEA, além da legislação consumerista, aplicável por força da Súmula STJ 608 e da Lei nº 9.656/98 (Lei dos Planos de Saúde), deverá ser observada a “Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista”, instituída por meio da Lei nº 12.764/12, em especial os artigos 2°, III e 3°, III, “b”, e 5º, que garantem o fornecimento de atendimento multiprofissional e INTEGRAL ao paciente diagnosticado com Autismo.
No que concerne ao tratamento do indivíduo com TEA, defendemos que o rol da ANS não pode ser interpretado de forma taxativa.
Além dos argumentos acima, temos apresentado três principais fundamentos desenvolvidos em parecer elaborado pela advogada especialista em Direito Sanitário Dra. Maria Eugênia Bodra<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, a pedido de nosso escritório, cujo inteiro teor pode ser acessado<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> pelo link <a href="http://www.amaralbodra.com.br/parecer-sobre-a-interpretacao-do-rol-da-ans.asp" target="_blank" rel="noopener noreferrer">http://www.amaralbodra.com.br/parecer-sobre-a-interpretacao-do-rol-da-ans.asp</a> e que ora é resumido nos tópicos abaixo:
a) O primeiro faz uma análise do teor da Lei nº 9.656/98 no tocante à criação do Plano Referência, suas inclusões e exclusões, e da Lei nº 9.961/2000, especialmente do seu artigo 4º, que trata da competência da ANS para instituir o Rol de procedimentos e eventos que constituirão a referência básica de cobertura. Tais leis em conjunto com as Resoluções da ANS editadas desde 1998, formam um arcabouço normativo em evolução que longe de se apresentar como um bloco monolítico e taxativo, sempre pretendeu aperfeiçoar os contornos dos limites máximo e mínimo para cobertura de tratamentos e procedimentos, permitindo reflexão e avanço, diante das limitações trazidas pelos casos concretos. Ainda que no Resp nº733.013/PR, e agora pela primeira vez em uma Resolução Normativa - RN 465/2021, a ANS tenha defendido expressamente a interpretação taxativa do Rol, o parecer aponta que tanto o arcabouço normativo que trata do Rol (Leis nºs 9.656/98, 9.961/2000 e Resoluções sobre o Rol), como a regulação específica para os portadores de TEA demonstram a fragilidade desta posição.
b) O segundo ressalta que os argumentos trazidos acima e a regulação específica da ANS sobre o TEA devem ser examinados à luz do princípio da democracia sanitária e, sobre isso, apontam-se os limites da participação democrática que ainda caracterizam o processo de atualização do Rol.
c) Por fim, o terceiro questiona a utilidade prática da adoção de uma interpretação taxativa do Rol da ANS, no âmbito do direito sanitário. Para isso, examina-se decisão paradigmática proferida no âmbito do direito tributário onde a interpretação taxativa está há muito consolidada. Destaca-se que a decisão examinada é relevante na medida em que demonstra como o conceito da taxatividade é desafiado mesmo lá, no direito tributário, quando o objeto de discussão envolve a tributação de produto relevante para a saúde. A partir daí, constata-se o enorme desafio ou a quase impossibilidade de se aplicar a interpretação taxativa no âmbito do direito sanitário, onde a proteção da vida e da saúde ocorre de modo direto.
Dito isso, não se conclui, no entanto, que todas as análises ou decisões da ANS sejam limitadas ou meramente exemplificativas. Pelo contrário. Conclui-se apenas que não é possível interpretar todo o rol da ANS de forma taxativa. De outro lado, fica claro que os contornos dos limites máximo e mínimo do Rol já foram e devem continuar sendo aperfeiçoados, por meio de um processo democrático cujo aprimoramento também está em curso, especialmente no que toca ao tratamento do indivíduo com TEA. A interpretação e a atualização do rol da ANS não podem simplesmente desconsiderar o direito de assistência integral à saúde dos Autistas, previsto na Lei nº 12.764/12, dentre outros requisitos legais e democráticos.
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O episódio 54 do podcast Sem Precedentes discute o julgamento da 2ª Turma do STF, que decidiu que Moro foi parcial em suas decisões no caso do tríplex do Guarujá contra Lula. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=Xm3qid_RRA4
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “Autismo e o Cérebro Social”, MERCADANTE, Marcos Tomanik. Ed. Segmento Farma, 2009, p. 17 (grifos nossos)
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> “Cem Dúvidas Sobre o Autismo”, SCHWARTZMAN, José Salomão. Ed. Menon, 2018, p. 80/81 (grifos nossos)
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Advogada. Pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas em Direito Sanitário da USP – Cepedisa USP. Doutora em Direitos Humanos pela USP. LLM em Saúde Global e Instituições Internacionais pela Universidade de Georgetown (Washington DC/EUA) e pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais e de Desenvolvimento - IHEID (Genebra/Suíça). Mestre em Direito Comercial pela PUC/SP.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Em razão da importância do tema e com o fim de preservar clientes e casos específicos, Varella Guimarães Advogados e Amaral Bodra Advogados resolveram disponibilizar o referido parecer no site <a href="http://www.amaralbodra.com.br" target="_blank" rel="noopener noreferrer">www.amaralbodra.com.br</a> Para acesso direto, clique em <a href="http://www.amaralbodra.com.br/parecer-sobre-a-interpretacao-do-rol-da-ans.asp" target="_blank" rel="noopener noreferrer">http://www.amaralbodra.com.br/parecer-sobre-a-interpretacao-do-rol-da-ans.asp</a>

ANS | Foto: Divulgação

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JOTA

Sobre a limitação de cobertura, pelas operadoras de saúde, aos tratamentos previstos no rol da ANS

Análise da taxatividade do rol da ANS: o caso do Transtorno do Espectro Autista

Análise da legalidade da limitação de cobertura, pelas Operadoras de Saúde, aos tratamentos e eventos previstos no Rol da ANS