Raquel Scalcon

Paula Sion

Nesta quinta-feira (24/3), o Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/stf">STF</a>) iniciará o julgamento do ARE 848.107, quando terá de definir se o termo inicial para a contagem da prescrição da pretensão executória é (i) o trânsito em julgado para a acusação ou (ii) o trânsito em julgado para "todas as partes" (Tema 788). Trata-se de decisão que afetará um sem-número de casos e que, a depender do seu conteúdo, poderá intensificar um preocupante processo de subtração das possibilidades de consumação da prescrição no Direito Penal.
Fato é que tal causa de extinção de punibilidade ganhou a fama de "geradora de impunidade", e, graças a essa indevida má reputação, tornou-se inimiga da opinião pública. Consequência: seja por iniciativa legislativa, seja por iniciativa das próprias Cortes – e, em regra, ao arrepio da legalidade – a prescrição vem literalmente minguando. Justamente por isso perguntamos: afinal, o que ainda resta dela? E por quanto tempo? Metaforicamente, podemos dizer que a extinção da punibilidade pela prescrição está, ela mesma, “em extinção”. Diante disso, pensamos que é preciso resistir, preservando o pouco que dela ainda dispomos.
Nosso foco de preocupação, agora, é a tese que sairá do julgamento do tema 788 pelo <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a>. Vejamos: qual deve ser o termo inicial para o cômputo da prescrição da pretensão executória? O Código Penal, em seu artigo 112, inc. I, regra pré-Constituição de 1988, afirma que a prescrição, após fixado o teto da pena em concreto (art. 110, CP), começa a correr: "do dia em que transita em julgado a sentença condenatória, para a acusação, ou a que revoga a suspensão condicional da pena ou o livramento condicional". Portanto, a partir do momento em que sabemos (i) qual é o teto da pena em concreto (que poderá, no máximo, ser reduzida via recurso defensivo) e (ii) que não houve nenhum recurso por parte da acusação, começaria então a correr a prescrição da pretensão executória.
Apesar da clareza da dicção do Código, há quem defenda que tal prazo prescricional somente começaria a correr quando do trânsito em julgado para "todas as partes", isto é, para acusação e defesa. O argumento baseia-se em especial na ideia de que, considerando a atual interpretação da Corte Suprema sobre a presunção de inocência, o Estado somente estaria autorizado a efetivamente executar a pena, após o trânsito em julgado para ambas as partes. Portanto, não haveria que se falar em inércia estatal, uma vez que o Estado não estaria "parado", mas sim proibido de iniciar a execução. Dito de outro modo, a extensão dada à presunção de inocência pelo próprio STF traria como efeito rebote, dizem alguns, uma releitura ou harmonização do art. 112, inc. I, do <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm">Código Penal com a Constituição Federal</a>.
Nesse exato sentido é o parecer da PGR, para quem o artigo 112, inc. I, na atual redação, violaria “a proporcionalidade, a isonomia, a razoabilidade e o devido processo legal”. Embora isso não seja dito às claras, do ponto de vista da técnica constitucional, o que se pretende é uma declaração de nulidade parcial (tecnicamente, não recepção parcial) do artigo em discussão, com redução de seu texto, retirando-se a expressão "para a acusação", de tal maneira que o prazo prescricional da pretensão executória comece a correr "do dia em que transita em julgado a sentença condenatória". Implícita estaria, assim, a exigência de que o trânsito se confirmasse para todos os litigantes, para então iniciar o transcurso do prazo.
Não concordamos com essa conclusão por razões jurídicas e práticas. Comecemos com as jurídicas, que são de duas ordens.
Em primeiro lugar, é ardiloso defender que, com a atual extensão dada à presunção de inocência, é preciso reinterpretar o art. 112, inc. I, do Código Penal. Como seria possível que o reconhecimento de um direito fundamental do réu tivesse como consequência a perda de outro, ou seja, gerasse indiretamente o aumento do poder punitivo? No ponto, importante mencionar que a suposta impossibilidade de se executar a pena não decorre simplesmente do manejo de recursos da defesa (todos eles sujeitos a prazos exíguos de interposição), nem da amplitude da presunção de inocência, mas em especial da morosidade de um Poder Judiciário extremamente assoberbado.
Note-se ainda que o mesmo prazo prescricional regido pela pena concretamente aplicada, que incide retroativamente entre a denúncia e a sentença e, atualmente, também entre a sentença e o acórdão (inclusive meramente confirmatório), é reaberto do zero para o Estado, que dispõe de novos longos anos para julgar os recursos nos Tribunais Superiores e, após, dar início ao cumprimento da pena. Ora, a Constituição, em seu artigo 5º, inc. LV, garante a ampla defesa com todos os meios e recursos a ela inerentes, de tal maneira que não pode o acusado ser censurado por exercer seu direito, menos ainda ser tratado como “intencional causador” da prescrição penal. Precisamos buscar outros remédios para o inquestionável excesso de demanda do Poder Judiciário que não a custosa e constante supressão de direitos do réu constitucionalmente consagrados.
Em segundo lugar, o Pacote Anticrime trouxe uma disposição para regular em parte o problema, ao menos quanto aos novos casos (novatio legis in pejus), na medida em que criou a causa suspensiva do art. 116, inc. III, CP. Tal regra determina que a prescrição, antes de passada em julgado a sentença (para ambas as partes), não corre "na pendência de embargos de declaração ou de recursos aos Tribunais Superiores, quando inadmissíveis". Ou seja, se - como muitos alardeiam - a defesa supostamente apresenta recursos com o intuito de atravancar o trânsito em julgado e, assim, obstaculizar o início da execução da pena, impedindo que o Estado exerça sua pretensão, o próprio Código teria agora uma possível solução, ao prever que o prazo prescricional estará suspenso se tais recursos forem, ao final, inadmissíveis. Prazo, esse que, no entanto, continuará a fluir após o período de suspensão. Esta seria, pois, espécie de “penalidade” para recursos considerados protelatórios.
Indicadas previamente as razões jurídicas, passemos agora às razões práticas que desautorizariam a consideração do trânsito em julgado para ambas as partes como marco inicial da prescrição executória. Sem rodeios, sustentamos que é preciso preservar o que ainda resta de prescrição à luz da ratio da sua existência, qual seja: o tempo desbota a história e a memória. É insustentável lidar juridicamente com demandas infindáveis e crimes eternos. Não se pode reconstituir fatos tão antigos, menos ainda deles se defender digna e amplamente. Não há como exigir que pessoas, instituições, empresas guardem todos os documentos, provas e registros do seu passado porventura necessários à sua defesa.
Em síntese, não cabe ao Poder Judiciário se rebelar contra as hipóteses legais de perda do poder estatal de punir. Elas são necessárias à ordem jurídica. Portanto, como alerta a clássica obra de Antoine Garapon, ainda há “crimes que não se podem punir” – e os prescritos certamente estão entre eles.

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JOTA

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