Marcela Melichar Suassuna

Mariana Capela Lombardi Moreto

O advento do <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm">Código de Processo Civil de 2015</a> (CPC15) gerou, no sistema processual brasileiro, algumas profundas e relevantes alterações, distanciando-se da essência mais formalista e com maior rigor processual que pautava, em grande medida, o Código de Processo Civil anterior e, por muitas vezes, a própria jurisprudência dos tribunais.
Ao contrário do seu antecessor, o CPC15 primou pela maior flexibilidade do processo e, com isso, maior prestígio à liberdade das formas e à busca pela finalidade do ato processual, que se sobrepõem, em regra, a um rigor formal excessivo. Noutro giro, também abriu azo para a criação e adoção de soluções processuais menos rígidas – e, por vezes, até mesmo criativas –, pelos litigantes e pelo magistrado, para conferir maior eficiência e celeridade ao processo.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias"><img class="aligncenter cta-tributos size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/cta-jota-pro-tributos.png" width="688" height="688" /></a>
Dentro desse contexto, insere-se o artigo 139 do CPC15, o qual discorre sobre os poderes, deveres e responsabilidades do juiz, contendo algumas diretrizes para a condução do processo pelo magistrado. Em particular, o inciso IV do referido artigo 139 prevê que o juiz ficará incumbido, se for o caso, de "determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária".
A opção do legislador em deixar de indicar um rol de medidas das quais poderia se valer o juiz para assegurar o cumprimento da ordem judicial, preferindo deixar a questão mais aberta, permitiu que os litigantes passassem a formular requerimentos para a adoção de medidas executivas certamente menos ortodoxas  – daí porque admitidas como medidas executivas atípicas – do que as que eram usualmente abordadas no CPC73, o que inclui, por exemplo, a apreensão de documentos pessoais, como carteira nacional de habilitação (CNH) ou passaporte das partes requeridas em processos de execução.
Instados a julgar esses pedidos de apreensão de documentos e outros requerimentos análogos, os tribunais passaram a enfrentar o tema, por vezes deferindo tais ordens de apreensão,<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> porém, em maior escala, indeferindo os pedidos formulados,<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> por se entender que poderiam violar direitos fundamentais, especialmente a liberdade de ir e vir dos indivíduos. O posicionamento contrário, contudo, encontrou importante eco de alguns tribunais e doutrinadores, defendendo que tais medidas, embora drásticas, atribuem maior efetividade ao processo executivo.
Representativo desse entendimento favorável à adoção de medidas executivas atípicas que incluem algumas restrições de direitos, abordando também a sua constitucionalidade, é bastante elucidativa a doutrina de Azevedo e Garjardoni:
“(...) no plano pragmático, desconsidera-se que há diversas medidas no ordenamento jurídico que tipicamente se equiparam ou apresentam maior intensidade em termos de restrição de direitos fundamentais do que as medidas executivas atípicas. Basta pensar nas hipóteses de despejo forçado, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, ou mesmo nas medidas protetivas para proteção do patrimônio de grupos vulneráveis (mulheres, idosos, crianças e adolescentes etc.). Há, ainda, inúmeras medidas administrativas coercitivas, adotadas em razão do interesse público, decorrentes de relações fiscais, aduaneiras, urbanísticas ou de trânsito, as quais, embora representem restrições a direitos fundamentais, não carregam a pecha da inconstitucionalidade.” (AZEVEDO, Júlio Camargo de; GAJARDONI, Fernando da Fonseca. <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/um-novo-capitulo-na-historia-das-medidas-executivas-atipicas-11062018">Um novo capítulo na história das medidas executivas atípicas</a>).
Foi nesse ensejo que o Partido dos Trabalhadores (PT) ajuizou, em 2018, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), autuada sob o no 5.941, perante o Supremo Tribunal Federal (STF), questionando a constitucionalidade do artigo 139, inciso IV, do CPC15 justamente por viabilizar a tomada de medidas executivas que poderiam em tese afrontar princípios e normas previstos na Constituição Federal, como a suspensão do direito de dirigir, apreensão de CNH e/ou de passaporte, proibição de participação de concurso ou de licitação públicos, entre outras.
A ADI, que conta com pedido cautelar, foi distribuída para a relatoria do ministro Luiz Fux, que, ao recebê-la, admitiu, em decisão monocrática, que a matéria versada possui grande relevância, apresentando especial significado para a ordem social e a segurança jurídica, submetendo-a, assim, ao procedimento especial previsto no artigo 12 da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9868.htm">Lei 9.868/2009</a>, sendo que a expectativa é que o caso seja em breve julgado pelo Plenário do STF.
<blockquote class="jota-article__eye">Embora não se descarte que o CPC15, de fato, permita a adoção de medidas executivas mais amplas e que a execução, em regra, deve ocorrer no interesse do credor, a garantia do cumprimento da ordem judicial não pode servir como instrumento de abusividade por parte do credor.</blockquote>
A efetividade do processo executivo deve ser buscada com parcimônia e sopesando-a, naturalmente, com a prevalência de certos direitos individuais básicos. Não se pode olvidar que o artigo 789 do CPC15 estabelece que o devedor “responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei”.
E é dessa maneira que tem se posicionado majoritariamente a jurisprudência dos nossos tribunais. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se admitiu que o “sistema processual civil prevê meios executivos para o cumprimento de dívida no âmbito de processo executivo, desde que aplicados subsidiariamente e observados os princípios do contraditório, da razoabilidade e da celeridade processual” e no sentido de “não constituir aprioristicamente ameaça ao direito de ir e vir a possibilidade de aplicação das restrições advindas do artigo 139, inc. IV, do CPC/2015” (REsp 1804024/MG, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 17/08/2021, DJe 20/08/2021).
Merece relevo especial o acórdão, cuja relatoria coube à ministra Nancy Andrighi, no qual se analisou se a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e a retenção do passaporte do devedor são medidas viáveis de serem adotadas pelo juiz condutor do processo executivo, que assentou a jurisprudência dominante das Turmas de Direito Privado do STJ a respeito do tema, admitindo a aplicação das medidas executivas atípicas, porém devendo ser observada razoabilidade, proporcionalidade e adequação.
De um lado, embora “as modernas regras de processo, ainda respaldadas pela busca da efetividade jurisdicional, em nenhuma circunstância poderão se distanciar dos ditames constitucionais, apenas sendo possível a implementação de comandos não discricionários ou que restrinjam direitos individuais de forma razoável”, de outro, “[a] adoção de meios executivos atípicos é cabível desde que, verificando-se a existência de indícios de que o devedor possua patrimônio expropriável, tais medidas sejam adotadas de modo subsidiário, por meio de decisão que contenha fundamentação adequada às especificidades da hipótese concreta, com observância do contraditório substancial e do postulado da proporcionalidade” (REsp 1788950/MT, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/04/2019, DJe 26/04/2019).
O entendimento do STJ, em suma, parece defender que a adoção de medidas executivas que poderiam levar à limitação de algumas liberdades somente pode ser adotada caso se afigure razoável e proporcional no caso dos autos e se ela, de fato, conferir maior efetividade ao cumprimento da obrigação. Por exemplo, se uma pessoa mantém dívida vultosa, bilionária, que não conseguiria pagar de forma célere, por conta do numerário exorbitante, faria sentido apreender seu passaporte? Ou essa apreensão pode ser usada de maneira abusiva e com cunho vexatório?
<blockquote class="jota-article__eye">Além disso, deve-se primar que o cumprimento de obrigações pecuniárias seja, em regra, perscrutado por meio de medidas de mesma natureza, ou seja, também pecuniárias, como as medidas executivas típicas, de penhora, arrematação, alienação, entre outras.</blockquote>
No limite, a adoção de medidas restritivas de direitos poderia ser mais facilmente defendida em casos envolvendo bem maior, como em execução de alimentos, no qual se permite a prisão do devedor de alimentos. A apreensão de documentos pessoais e restrição de alguns direitos, como participação em concursos públicos, poderia ser compreendida, inclusive, como forma menos onerosa ao devedor – como alternativa à prisão civil – para dar eficácia à decisão judicial no caso de execução de alimentos.
De toda forma, voltando à linha-mestra, acerca do julgamento da ADI 5941, deve-se ter em conta que o texto do CPC15 que autoriza as medidas executivas atípicas parece ser propositalmente amplo, o qual, porém, deve ser interpretado com todas as balizas eventualmente aplicáveis ao caso concreto, sobretudo se envolverem restrição de direitos. Esse é, aliás, um dos papéis primordiais da jurisprudência, que serve de fonte para delimitar o alcance do texto legal, frente a várias possíveis interpretações.
Isso tudo leva à inexorável conclusão – ao ver destas autoras – que os dispositivos legais mencionados como violadores da Constituição na ADI não são, por si só, inconstitucionais. Pelo contrário, eles revelam a opção do legislador de afastar as amarras do rigor formal excessivo e da taxatividade no texto legal para permitir que soluções mais eficientes sejam aplicadas, com o fim de assegurar maior efetividade ao processo judicial, sobretudo na fase executiva. É a interpretação desses artigos, pelos tribunais e pelos operadores do Direito, que deve seguir os preceitos constitucionais, a fim de evitar que, em prol do processo executivo, sejam feridos, de forma indevida e abusiva, os direitos individuais.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Como elucida Dellore em publicação sobre o tema, o primeiro acórdão que autorizou a adoção de medida executiva atípica de apreensão de CNH foi proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em caso de execução de alimentos, na qual se concluiu que “[t]rata-se de providência tendente a assegurar efetividade à decisão que condenou o devedor ao pagamento de pensão, e que se justifica plenamente, porque a situação enfrentada é de natureza singular, já que, não obstante todas as providências adotadas pela parte credora, não houve êxito na cobrança dos alimentos devidos, tudo indicando que o executado tem condições de contribuir com alimentos, mas opta por deixar a prole passar necessidades” (HC 0431358-49.2016.8.21.7000, 8ª Câmara Cível, Des Ricardo Moreira Lins Pastl.), tendo sido admitida a restrição ao direito de dirigir (DELLORE, Luiz. NCPC: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/ncpc-atipicidade-de-medidas-executivas-ja-e-realidade-17042017">Atipicidade de medidas executivas já é realidade</a>)
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Nesse sentido: “Decisão que determinou a apreensão do passaporte e a suspensão da CNH do executado, até que efetue o pagamento do débito exequendo, fundamento no art. 139, IV, do NCPC (…). Medidas impostas que restringem a liberdade pessoal e o direito de locomoção do paciente Inteligência do art. 5o, XV, da CF – Limites da responsabilidade patrimonial do devedor que se mantêm circunscritos ao comando do art. 789, do NCPC – Impossibilidade de se impor medidas que extrapolem os limites da razoabilidade e da proporcionalidade.” (TJSP, HC 2183713-85.2016.8.26.0000, Relator Des. Marcos Ramos, 30ª Câmara Direito Privado, j. 29/03/2017).

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JOTA

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