Taís Penteado

Dimitri Dimoulis

No dia último 1º de novembro, a Suprema Corte dos Estados Unidos ouviu e discutiu os argumentos dos litigantes sobre a lei do Texas que criminaliza o aborto a partir da sexta semana de gestação e promete pagar US$ 10 mil a quem denunciar os profissionais de saúde que atenderam a gestante que decidiu interromper a gravidez <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
O recurso a “caçadores de recompensas” em pleno século 21 foi pensado como um subterfúgio. Sabendo que o ordenamento estadunidense proíbe que agentes estatais persigam as mulheres que exercem seu direito fundamental à privacidade ao interromper a gravidez e quem as auxilia nisso, os gênios jurídicos da direita texana pensaram em prever que apenas os particulares podem iniciar esses processos. Fingindo esquecer que quem autoriza e paga essa atuação é justamente o Estado que deveria respeitar os direitos das mulheres.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
É altamente improvável que a lei do Texas passe ilesa pela Suprema Corte na decisão que será tomada em breve. Mesmo sendo hoje a Corte de clara maioria conservadora (após ter Donald Trump nomeado 3 de seus 9 integrantes), ela dificilmente assumirá a responsabilidade de destruir um fundamento do Estado de Direito e, ao mesmo tempo, fazer uma reviravolta jurisprudencial, abandonando o precedente que defende há cinco décadas e que possui forte consenso social (59% a favor da quase completa descriminalização).
Mas o que está em jogo nos EUA — e isso interessa também ao direito brasileiro que ainda aguarda uma sólida e abrangente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a descriminalização do aborto – é um argumento mais perene na discussão, o biológico.
A “vida” do feto é utilizada como argumento jurídico que permitiria perseguir a gestante que atentaria contra essa “vida”. Muitas leis estaduais nos EUA usam critérios como o batimento cardíaco para ampliar a proibição do aborto. E a própria Suprema Corte adotou uma versão do argumento biológico. Dividiu a gestação em trimestres com o objetivo de restringir a aborto no segundo e de praticamente proibi-lo no terceiro.
O argumento biológico tem uma falsa evidência “natural”, mas na verdade não significa nada. Algo que existe no mundo dos fatos não têm – ou, pelo menos, não deveria ter – consequência normativa necessária. O argumento biológico esconde o fato de que política e direito devem decidir qual forma de vida, a partir de qual marco temporal e de que maneira deve ser protegida. Sem que essa decisão tenha suporte biológico.
Os legisladores que permitem a eutanásia não o fazem porque consideram que a pessoa gravemente enferma não tem vida, mas porque os valores sociais e os objetivos políticos que promovem justificam certa decisão sobre a “vida”. Já outros legisladores punem como homicídio a eutanásia, mas estabelecem a pena de morte como resposta estatal adequada. Sem se preocupar com o que ensina a biologia...
Mesmo assim, decisões judiciais e escritos doutrinários no Brasil referem-se à “vida” do nascituro como se fosse um fato claro e evidente e como se o feto constituísse uma miniatura do ser humano. O STF costuma “ponderar” essa vida com direitos da gestante, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-que-podemos-aprender-com-os-ataques-governamentais-ao-aborto-legal-16062020">descobrindo uma contraposição dos interesses da mulher grávida aos do feto que só existe no universo da mitologia patriarcal</a>.
Entre os usos preocupantes do argumento biológico destacamos recente posicionamento do corregedor-geral do Conselho Regional de Medicina (CRM) no Paraná. Diante da quebra do sigilo médico por agente de saúde que denunciou uma gestante hospitalizada à polícia por interrupção da gravidez, o <a href="https://catarinas.info/a-justificativa-do-hospital-que-denunciou-uma-paciente-por-aborto">corregedor-geral disse</a> que a notificação era correta, pois ocorreu com base no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), já que o feto tinha sido vítima de “violência”.
Um representante oficial da profissão médica no Brasil trata o feto como se fosse uma criança e, implicitamente, entende o aborto como homicídio. Para tanto, adota uma posição religiosa que nenhum ordenamento jurídico incorporou. Raciocínios semelhantes encontramos também em argumentos favoráveis ao aborto. Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54 julgada pelo STF, a ocorrência de troca “oxicarbônica” foi considerada relevante para demarcar a “vida” e, consequentemente, sua tutela jurídica. No HC 124.306, o mesmo tribunal considerou a viabilidade fisiológica do feto fora do útero como critério para proibir o aborto após a 12ª semana.
<blockquote class="jota-article__eye">Em todos os casos, a fisiologia do feto foi transportada para o mundo do direito. A mobilização desse tipo de argumento por todos os lados do debate deve ser vista com suspeita por aqueles que acreditam na legalização do aborto.</blockquote>
Mais do que isso: as argumentações judiciais e legislativas que usam o argumento biológico ocultam o único dado que deveria guiar as políticas sobre a interrupção da gravidez. O aborto voluntário é um problema jurídico (e social) de <a href="https://revistas.ufpr.br/rinc/article/view/69881">igualdade de gênero</a>. Isso não se esgota na afirmação corriqueira de que mulheres engravidam e homens não. O que torna a diferenciação jurídica profunda e decisiva é o fato que a gravidez indesejada ocorre por conta de desigualdades, se mantém – ou termina – por conta de desigualdades e constituem uma forma social de perpetuar desigualdades entre homens e mulheres.
A gravidez indesejada que ocorre por “descuido” é a exceção em um mundo em que mulheres sofrem violências, pressões ou têm pouco ou nenhum acesso a contraceptivos. O risco de uma gravidez indesejada não é biológico. É social. A gravidez é muitas vezes imposta por papéis socialmente atribuídos ou, de maneira mais óbvia, por conta de uma lei que faz com que arquem exclusivamente com as consequências jurídicas de um ato que, ainda que seja consensual, exige a participação ativa dos homens. Uma das consequências dessa lei é o risco de morte para mulheres que recorrem a procedimentos precários de aborto. E, por fim, gravidezes indesejadas não terminam com o nascimento. As mulheres continuam a ser as principais responsáveis pela criação de filhos, com pouco ou nenhum auxílio estatal.
O processo reprodutivo é determinado por assimetrias de poder nas relações interpessoais que culminam em gravidezes indesejadas. A seguir, o processo reprodutivo desigual perpetua as assimetrias de poder. São essas assimetrias que devem guiar a regulamentação do aborto. A igualdade deve traçar a linha, não o batimento cardíaco, a viabilidade ou a troca oxicarbônica.
O ataque frontal aos direitos das mulheres no Texas deve nos ensinar a não recorrer a subterfúgios que propagam grupos conservadores articulados ao redor do mundo, e a não utilizar o argumento biológico que tem o potencial de continuar privando as mulheres de seu direito à igualdade.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Casos: Whole Woman's Health v. Jackson (n. 463 de 2021) e United States v. Texas (n. 588 de 2021). A transcrição das audiências é disponível em: <a href="https://www.supremecourt.gov/oral_arguments/argument_transcripts/2021/21-463_8758.pdf">https://www.supremecourt.gov/oral_arguments/argument_transcripts/2021/21-463_8758.pdf</a> e <a href="https://www.supremecourt.gov/oral_arguments/argument_transcripts/2021/21-588_omjp.pdf">https://www.supremecourt.gov/oral_arguments/argument_transcripts/2021/21-588_omjp.pdf</a>.

aborto texas

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JOTA

Ataque frontal aos direitos das mulheres no Texas deve nos ensinar a não recorrer a subterfúgios que propagam conservadores

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