Rafael Arruda

Nas últimas semanas, intensos foram e têm sido os debates em torno da regulação das big techs, com críticas severas, por parte da classe política, acerca do caráter opaco da casa de máquinas algorítmica das plataformas digitais. De fato, as coisas não podem continuar como estão, e o <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2256735">PL 2630/2020</a>, pela “garantia da integridade dos sistemas de informação”, conforme assentado por <a href="https://opopular.com.br/videos/professor-de-direito-explica-sobre-a-regulamentac-o-das-plataformas-digitais-veja-entrevista-1.3025532">Gustavo Binenbojm</a>, busca, em alguma medida, organizar as regras do jogo na democracia digital.
Previsto para ir a votação no último dia 2 de maio, o projeto foi retirado de pauta pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), como, aliás, <a href="https://www.jota.info/legislativo/pl-das-fake-news-votacao-na-camara-e-adiada-por-arthur-lira-02052023">informou o JOTA</a>.
Contudo, se é certo que a caixa de algoritmos das plataformas, tais como Twitter, Facebook, YouTube, Google, TikTok e Instagram, dá poucas explicações e promove muitos direcionamentos comportamentais, provocando, no limite, uma deterioração do debate público, nas palavras de Luna Van Brussel Barroso<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, ou o que Reynié, Tchounikine e Delage denominam de um espaço público em decomposição<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, não menos certo é reconhecer que, até com alguma intensidade, a política e os políticos se servem da opacidade algorítmica e da tribalização da vida nas redes sociais para, por meio de uma realidade falseada, obter uma legitimação democrática viciada, em democracia digital abalada.
Não são incomuns, a propósito disso, enquetes realizadas por políticos, integrantes dos Legislativos e dos Executivos, acerca de iniciativas normativas, políticas públicas e medidas administrativas variadas a serem adotadas. Da volta ou não do horário de verão a como encaminhar o voto em deliberações parlamentares importantes, há uma plêiade de assuntos que são submetidos a escrutínio nas redes sociais com bastante constância.
Ao contrário do que a imagem pode sugerir, tem-se a quase completa falácia da e-democracy nas mídias sociais, já que as redes não se guiam pela maior variedade. Sem contar ainda o problema do viés. E não é só isso. Muitos cidadãos não estão presentes nas redes, e mesmo os que ali estão podem nem saber da publicação que veicula uma pesquisa de opinião, seja porque, no período, o usuário se encontrava inativo ou sem acesso à rede social, ou porque o usuário sequer é seguidor do autor da postagem, seja porque, enfim, o algoritmo, matematicamente, não promoveu a chegada daquele conteúdo a determinado(s) usuário(s).
Ora, se as enquetes que se espalham nas redes não gozam do mínimo valor científico, porque políticos insistem em realizá-las em tais ambientes digitais? Porque longe de serem atos comunicacionais, as tais enquetes parecem ser, em verdade, atos estratégicos, o marketing disfarçado de comunicação, um mecanismo para estabelecer forte presença online , com o fim de alargar a sua visibilidade. É a política da influência, do storytelling, com o fim de converter a audiência, os followers, em base eleitoral.
Nessas circunstâncias, parece bem claro que políticos autores de enquetes servem-se dos algoritmos a seu favor, pela singela razão de que as enquetes tendem a revelar quase sempre resultados e preferências similares àqueles adotados ou perseguidos pelo seu autor. Procedimentos assim não gozam de maior legitimidade, a despeito da aparência. Tem-se apenas, conforme Julien Bonnet, professor da Universidade de Montpellier, a miragem do “clicktivism”, a partir de um engajamento político fugaz<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
É a ilusão do reforço da participação política dos cidadãos, encerrados em bolhas cognitivas e de afinidades, fenômeno que o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han denomina de o “looping-do-eu permanente”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. No fim das contas, as redes operam em circuitos fechados e rejeitam o pluralismo. Daí que a mobilização política deflagrada nas plataformas está longe de configurar uma real deliberação democrática. E isso porque, diferentemente do exercício da democracia como aspecto histórico e reiterado, nas redes sociais em geral, como observa Idris Fassassi, da Universidade Panthéon-Assas (Paris II), os usuários só existem “por meio do seu último tweet”<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Por outras palavras, o ritmo frenético da bolha digital em nada se compagina com ideais democráticos. E, como anotam Lotta e Abramovay, embora em outro contexto (o das burocracias no serviço público, mas aqui igualmente válido), se a democracia aprende com os seus erros e se aprimora no debate<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, cabe, então, perguntar: que tipo de debate tem lugar nas redes e mídias sociais?
O ponto relevante é que a comunicação dirigida pelos algoritmos nas plataformas digitais não é livre, nem democrática. Como ressalta Byung-Chul Han, as redes sociais inviabilizam a formação de qualquer mínimo consenso em torno de um projeto de nação, porque a tribalização corrompe o ideal da praça pública. Nas tribos digitais, falta a racionalidade comunicativa<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Ao fim de tudo, parece prevalecer o controle privado sobre a circulação de informações e opiniões<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, aliado à conveniência algorítmica de um comportamento já esperado das redes, a partir daquele que faz uma postagem: empresas exercem poder privado, e isso tem sido convenientemente utilizado por atores políticos que dominam os mecanismos do digital, para falsear o debate público, num jogo de ganha-ganha: plataformas monetizam e determinados usuários conduzem debates, a partir de milhares de likes, comentários, repostagens e por aí vai. Um baita engajamento!
E que o algoritmo entende como relevante, não pelo conteúdo em si, mas pela movimentação que causa nas redes, não apenas por pessoas reais com contas autênticas, mas, também, por hackers, trolls e bots, todos participando de um debate público que só aparentemente parece verdadeiro. Ao inflar números de participantes de maneira artificial, simulam um poder de opinião que não existe. Importa é domar o algoritmo. Daí que a ampliação dos espaços digitais de manifestação pública torna a internet um campo fértil para diversas formas de abuso, tal como o falseamento da realidade a partir de pesquisas e enquetes conduzidas nas redes. Nessa missão, conforme o já mencionado Bonnet, o direito constitucional tem de se adaptar aos efeitos da revolução digital: ele tenta, há vários anos, apropriar-se do fenômeno para incentivá-la, protegê-la, utilizá-la, fiscalizá-la ou regulá-la<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
Disso tudo decorre, portanto, a importância da regulação em ambiente digital. A tarefa não é fácil para o direito público que, como observa Luís Roberto Barroso quanto ao tema, tem diante de si um desafio crítico, que é o de preservar a integridade da livre manifestação do pensamento em face das ameaças do mundo digital, sem, contudo, interferir irrazoavelmente no seu exercício: a dura tarefa de conter o abuso, sem praticar o abuso<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>. Mais que dilema das redes (numa alusão à série documental de mesmo nome), são dilemas do Estado constitucional contemporâneo, à vista dos direitos que emergem da era digital. Algo ou alguém tem de regular o algoritmo.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1] </a>BARROSO, Luna Van Brussel. Liberdade de expressão e democracia na era digital: o impacto das mídias sociais no mundo contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 20.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2] </a>REYNIÉ, Dominique; TCHOUNIKINE, Mathilde; DELAGE, Victor. Élections, médias et réseaux sociaux: un espace public en décomposition. Disponível em <a href="https://www.fondapol.org/etude/elections-medias-et-reseaux-sociaux-un-espace-public-en-decomposition/">https://www.fondapol.org/etude/elections-medias-et-reseaux-sociaux-un-espace-public-en-decomposition/</a>. Acesso em 10/5/2023.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3] </a>BONNET, Julien. Le numérique: un défi pour le droit constitutionnel. Disponível em <a href="https://www.conseil-constitutionnel.fr/nouveaux-cahiers-du-conseil-constitutionnel/le-numerique-un-defi-pour-le-droit-constitutionnel">https://www.conseil-constitutionnel.fr/nouveaux-cahiers-du-conseil-constitutionnel/le-numerique-un-defi-pour-le-droit-constitutionnel</a>. Acesso em 14/5/2023.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4] </a>HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Tradução de Gabriel S. Philipson. Petrópolis: Vozes, 2022, p. 54.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5] </a>FASSASSI, Idris. Les effets des réseaux sociaux dans les campagnes électorales américaines. Disponível em <a href="https://www.conseil-constitutionnel.fr/nouveaux-cahiers-du-conseil-constitutionnel/les-effets-des-reseaux-sociaux-dans-les-campagnes-electorales-americaines">https://www.conseil-constitutionnel.fr/nouveaux-cahiers-du-conseil-constitutionnel/les-effets-des-reseaux-sociaux-dans-les-campagnes-electorales-americaines</a>. Acesso em 13/5/2023.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6] </a>ABRAMOVAY, Pedro; LOTTA, Gabriela. A democracia equilibrista: políticos e burocratas no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. 19.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7] </a>HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Tradução de Gabriel S. Philipson. Petrópolis: Vozes, 2022, p. 61.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8] </a>BARROSO, Luna Van Brussel. Liberdade de expressão e democracia na era digital: o impacto das mídias sociais no mundo contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 7.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9] </a>BONNET, Julien. Le numérique: un défi pour le droit constitutionnel. Disponível em <a href="https://www.conseil-constitutionnel.fr/nouveaux-cahiers-du-conseil-constitutionnel/le-numerique-un-defi-pour-le-droit-constitutionnel">https://www.conseil-constitutionnel.fr/nouveaux-cahiers-du-conseil-constitutionnel/le-numerique-un-defi-pour-le-droit-constitutionnel</a>. Acesso em 14/5/2023.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10] </a>BARROSO, Luís Roberto. Liberdade de expressão, imprensa e mídias sociais: jurisprudência, direito comparado e novos desafios in. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 25, n. 135, Jan./Abr. 2023, p. 40.

Redes sociais

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JOTA

O extraordinário mundo da realidade falseada

A política, as enquetes em redes sociais e os algoritmos

As coisas não podem continuar como estão, e o PL 2630 busca, em alguma medida, organizar as regras do jogo na democracia digital dos algoritmos