Fernanda Lains

Gabriel Suzano Araújo

Com as recentes discussões sobre a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/reforma-tributaria">reforma tributária</a> temos refletido sobre a transferência do ônus da arrecadação e da fiscalização dos tributos aos contribuintes. Nos parece que a privatização dos serviços de regularização fiscal também está em curso. E, pasmem, já temos um vencedor desse leilão: o contribuinte!
Sim, de acordo com a recém editada <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp208.htm">Lei Complementar 208/2024</a>, o protesto extrajudicial de débitos tributários passa a interromper a prescrição do direito da Fazenda de cobrá-los. Em outras palavras, cabe, exclusivamente, ao contribuinte a regularização do débito ou os altos custos judiciários para contestar o protesto, sem que a Fazenda precise se valer das (talvez, ultrapassadas!) execuções fiscais para levar a cabo suas cobranças.
Se algum ônus há para a regularização de um passivo fiscal ou para a sua contestação, esse acaba de ser totalmente transferido aos contribuintes.
A Lei Complementar 208 fez uma significativa alteração no Código Tributário Nacional (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ctn">CTN</a>) ao incluir no inciso II do artigo 174 o protesto extrajudicial como hipótese de interrupção da prescrição. 
A justificativa do legislador é a de que o protesto extrajudicial se consolidou como meio admitido para promover a cobrança da dívida ativa. Nos termos do disposto no art. 1º da <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9492.htm">Lei 9.492/1997</a> (Lei de Protestos), introduzido pela Lei <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/%5C_ato2011-2014/2012/Lei/L12767.htm">12.767/2012</a>, tornou-se expressa a possibilidade de levar a protesto extrajudicial as certidões de inscrição de débitos em dívida ativa. 
Anteriormente àquela Lei 12.767/2012, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">STJ</a>) definia que “o protesto era o ato formal pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento da obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida”. Por essa razão não admitia o protesto extrajudicial da certidão de dívida ativa. A inscrição de um débito na dívida ativa já pressupunha a sua certeza e liquidez e, portanto, não precisava ser protestada para atingir tais características.
Além disso, outro argumento que reverberava forte no Judiciário era o de que o protesto de dívida ativa não poderia ser realizado pela Fazenda Pública que sempre deteve meio privilegiado de cobrança, a execução fiscal.
O cenário começou a mudar depois da inclusão do parágrafo único ao artigo 1º da Lei 9.492/1997 por aquela Lei de 2012. Permitiu-se que fosse realizado o protesto, não apenas de títulos, mas também das certidões de inscrição de débitos fazendários em dívida ativa.
A mudança da lei provocou a mudança da jurisprudência e o STJ passou a reconhecer o protesto extrajudicial das certidões de dívida ativa. Importante: o protesto extrajudicial da certidão de dívida ativa não interrompia a prescrição do crédito tributário, porquanto o artigo 174 do CTN, em seu parágrafo único, que regulamenta a matéria, não previa tal hipótese. Ou seja, o protesto extrajudicial deveria ser seguido necessariamente, dentro do prazo de prescrição, do ajuizamento da execução fiscal.
Em 2021, quando o Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a>) analisou o <a href="https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=6291425&amp;numeroProcesso=1355208&amp;classeProcesso=RE&amp;numeroTema=1184">Tema 1.184</a>, fixou entendimento no sentido de que o protesto seria a medida mais eficaz para cobrança de dívidas, reduzindo o número de execuções fiscais ao mesmo tempo em que permitiam que os entes públicos cobrassem os débitos de maneira mais eficiente. Era o prelúdio da privatização!
O entendimento do STF parecia fazer sentido em um contexto em que, de acordo com levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cnj">CNJ</a>) (Justiça em Números em 2024), os processos de execução fiscal correspondiam a 31% do total de casos pendentes no Judiciário, e o tempo de tramitação das execuções atingia em média 7 anos e 9 meses.
No entanto, mesmo com o potencial de gerar R$ 26,2 bilhões ao caixa público, as execuções fiscais possuem, em completo contrassenso, a maior taxa de congestionamento do Judiciário (87,8%). Ou seja, de cada cem execuções fiscais que tramitavam no ano de 2023, apenas 12 foram baixadas.
A leitura que fazemos desses números é que, ainda que a Fazenda Pública lançasse mão do prévio protesto extrajudicial das certidões de dívida ativa, como sugeria o STF, a efetiva recuperação dos créditos tributários não acontecia e ainda não acontece.
Os motivos são vários, dentre os quais a ineficiência na busca de patrimônio dos contribuintes que possam fazer frente a esses valores, a ineficácia do sistema fazendário de gestão de processos, a aparente falta de procuradores que deem vazão a esse expressivo número de ações, além da legislação processual que ainda permite a interposição de inúmeros recursos protelatórios.
No entanto, no Brasil, a história se repete. Ao invés de atacarmos o mal pela raiz, preferimos a perpetuação do problema, não sem antes transferi-lo de dono. O problema que antes era da Fazenda Pública agora é do contribuinte! 
Ao incluir o protesto extrajudicial como hipótese de interrupção da prescrição, a Lei Complementar 208 leva esperança aos entes públicos de desafogar os números judiciários alarmantes através do simples não ajuizamento de execuções fiscais. 
Na prática, a protesto extrajudicial da certidão de dívida ativa passa a ser o meio pela qual a Fazenda Pública cobra o contribuinte que permanece na praça como devedor enquanto não baixado o protesto pelo pagamento ou pela declaração, do Judiciário, de que tal cobrança não seria devida.
O protesto interrompe a prescrição e com isso cessa a necessidade de a Fazenda Pública ajuizar execução fiscal para reaver seu crédito. Os atos de constrição de patrimônio (espécie de penhora) podem ser realizados mesmo fora do ambiente da ação de execução que, por fim, nos parece perder o seu sentido de existir.
E que sentido seria esse, então? O mais nobre e assegurado pela Constituição Federal a todas as pessoas físicas e jurídicas: o de um processo justo, o da segurança jurídica! 
A estabilidade das relações jurídicas somente é alcançada num ambiente em que Fazenda Pública e contribuinte podem contrapor os seus direitos em pé de igualdade, recebendo um veredicto que apontará, de forma justa, o quanto devido, se devido e por quem devido. 
No entanto, como já adiantamos no início desse artigo, o acesso ao devido processo legal acaba de ser privatizado. Caberá aos contribuintes acessar, com seus recursos financeiros, o Judiciário para se defender de uma cobrança indevida, permanecendo, nesse meio tempo, com a pecha de devedor, o que, no extremo, poderá inviabilizar suas operações, caso, por exemplo, sejam fornecedores de entes públicos.
Ou seja, ao invés de o Legislativo e o Executivo discutirem medidas capazes de fortalecer a atuação dos órgãos responsáveis pela representação judicial dos entes federativos, tornando-se, assim, mais efetivas as execuções fiscais, meio processual adequado para a cobrança dos débitos tributários e para a defesa dos contribuintes, opta-se pelo fortalecimento dos procedimentos de protesto extrajudicial, método que se mostra eficaz apenas para trazer paz àqueles que entendem ter com isso encerrado sua nobre missão de exigir o que é devido aos cofres públicos.

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JOTA

Lei editada recentemente transfere aos contribuintes ônus da contestação e regularização de um passivo fiscal

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