Paulo Octtávio Calháo

Diogo Burilio

Com o objetivo de sanar um déficit orçamentário estimado de R$ 10,4 bilhões, agravado pela queda da arrecadação durante a pandemia da Covid-19, foi promulgada a Lei Estadual n° 17.293, de 15 de outubro de 2020, estabelecendo uma série de medidas de reorganização administrativa e ajustes fiscais para o equilíbrio das contas públicas do estado de São Paulo.
Assim, a Lei Estadual n° 17.293/2020 estabeleceu o corte de despesas mediante a extinção de autarquias, empresas públicas e entidades da administração pública descentralizada, alienação de bens imóveis da Fazenda Estadual, e o aumento da arrecadação, notadamente do ICMS, mediante a revogação ou redução de benefícios e incentivos fiscais como isenção, redução de base de cálculo e crédito outorgado, bem como toda a alíquota fixada em patamar inferior a 18%, para diversos setores econômicos.
<a href="https://conteudo.jota.info/jota-pro-tributos" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>Com a autorização conferida pela Lei Estadual n° 17.293/2020, o Governo do Estado de São Paulo editou os Decretos 65.252, 65.253, 65.254 e 65.255, todos de 15 de outubro de 2020, que resumidamente, trouxeram as seguintes disposições:
<ul>
<li>Instituição do “complemento de alíquota” em 2,4% para as operações internas tributadas a alíquota de 7% e 1,3% para as operações internas tributadas a alíquota de 12%, pelo prazo de 24 meses;</li>
<li>Diminuição do percentual de redução da base de cálculo das operações com equinos puro-sangue, radio chamadas, televisão por assinatura, transporte de leite, embalagens para ovo, implementos e tratores agrícolas, máquinas, aparelhos e equipamentos industriais e produtos da indústria de processamento eletrônico de dados, produtos de condicionamento de ar destinados a construção civil, produtos de couro, queijos, serviços de telefonia fixa a empresas de "call center", lâmpadas de LED, barras de aço, suco de laranja, softwares, insumos agropecuários, rações e adubos, pó de alumínio, refeições coletivas, biodiesel B-100, mercadorias de cobre, areia, dentre outros;</li>
<li>Redução do percentual de crédito outorgado nas operações com lã ou palha de aço ou ferro, malte para a fabricação de cerveja ou chope, acetona, carne e demais produtos comestíveis resultantes do abate de aves, leite longa vida, iogurte, embarcações de recreio, tubos de aço, produtos têxteis, calçados, pás carregadeiras, escavadeiras hidráulicas e retroescavadeiras, máquinas semiautomáticas sem centrifuga, dentro outros</li>
<li>Revogação ou renovação até 31/12/2020 de 58 artigos de isenção do ICMS previstos no Anexo I do RICMS/SP.</li>
</ul>
No entanto, a autorização concedida ao Poder Executivo pelo Lei Estadual n° 17.293/2020 encontra óbice tanto na Constituição Federal quanto na Constituição do Estado de São Paulo, na medida e que ambos os normativos impõem à necessidade de obediência ao princípio da reserva legal tanto para a revogação de incentivos fiscais quanto para a majoração do tributo.
Nesse sentido, o artigo 150, inciso I da Constituição Federal dispõe expressamente a vedação à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios de exigir ou aumentar tributo (por qualquer que seja o mecanismo) sem lei que o estabeleça:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios:
I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
Este princípio constitucional, também consagrado no artigo 163, inciso I da Constituição do Estado de São Paulo, é um dos pilares do Estado Democrático de Direito, consistindo em uma garantia de proteção do patrimônio do particular contra arbitrariedades do Estado. A obrigação do recolhimento do tributo não surge somente da vontade do Estado, sendo necessária sua votação e aprovação pelos representantes eleitos do povo no Poder Legislativo.
Logo, quando a Constituição Federal de 1988 impõe a regra de que aumento de tributo já existente se dê por lei, o que se pretende é limitar a irrestrita majoração da carga tributária sob uma perspectiva plural, mediante discussão pelo Poder Legislativo, não se sujeitando à vontade unilateral do chefe do Poder Executivo. Daí a sua inclusão na Seção II Título VI, Capítulo I da Constituição Federal, que trata das limitações do poder de tributar do Estado.
Por sua vez, a isenção tributária consiste o caminho reverso da tributação no plano da incidência, a qual é exercida legislativamente pelo ente tributante dentro do campo da competência tributária tracejada pelo ordenamento constitucional. O poder de tributar, como emanação da competência tributária, implica também o poder de não tributar, e esta decisão política cabe ao Poder Legislativo, por força do princípio da estrita legalidade em matéria tributária, como limitação do poder do Estado.
Não por outro motivo, o próprio Código Tributário Nacional (CTN), em seu artigo 178, reafirma que somente a lei pode revogar ou modificar a isenção tributária, sendo incabível a delegação desta competência pelo Poder Legislativo ao Poder Executivo:
Art. 178 - A isenção, salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei, a qualquer tempo, observado o disposto no inciso III do art. 104. <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp24.htm#art13" target="_blank" rel="noopener noreferrer">(Redação dada pela Lei Complementar nº 24, de 1975)</a>
Sendo assim, a instituição ou majoração e tributos somente pode ser realizada por meio de lei em sentido estrito, ato administrativo exclusivo do Poder Legislativo (artigo 150, §1º da CF/88). De mesma sorte, a revogação ou modificação de isenção também deve observar o referido princípio, sendo tal matéria igualmente reservada e privativa ao Poder Legislativo.
A única exceção a esta regra se encontra prevista no art. 153, § 1° da Constituição Federal, que autoriza ao Poder Executivo a alterar as alíquotas do IPI, do IOF, do Imposto de Importação e do Imposto de Exportação, dentro das condições e limites que já se encontram estabelecidos em lei.
<blockquote class="jota-article__eye">Não é necessária uma análise aprofundada da Lei Estadual nº 17.293/2020 para identificar o seu descompasso com o princípio constitucional da estrita legalidade.</blockquote>
Apesar de o texto de seu artigo 22 dispor apenas quanto à delegação ao Poder Executivo da competência para reduzir benefícios fiscais, não restam dúvidas que real intuito foi o aumento de tributos para reequilíbrio das contas públicas, notadamente por “equiparar” a benefício fiscal quaisquer alíquotas fixadas em patamar inferior a 18%. Afinal, a redução (modificação) de incentivos consiste, ao fim e ao cabo, em aumento de tributo, ainda que pela via reflexa.
Portanto, resta claro que a Lei Estadual n° 17.293/2020 extrapolou em muito a sua competência ao delegar ao Poder Executivo paulista amplos poderes para regular a tributação do ICMS no estado de São Paulo, como um verdadeiro “cheque em branco” para aumentar a arrecadação a qualquer custo, em total descompasso à Constituição Federal.
A esse respeito, vale destacar que o Supremo Tribunal Federal já apreciou e rechaçou práticas que almejavam a majoração de tributos por meio de ato editado pelo Poder Executivo, ainda que por mecanismos indiretos (atualizações, bases de cálculo e afins), conforme podemos verificar nas ementas abaixo transcritas:
Recurso extraordinário. 2. Tributário. 3. Legalidade. 4. IPTU. Majoração da base de cálculo. Necessidade de lei em sentido formal. 5. Atualização monetária. Possibilidade. 6. É inconstitucional a majoração do IPTU sem edição de lei em sentido formal, vedada a atualização, por ato do Executivo, em percentual superior aos índices oficiais. 7. Recurso extraordinário não provido.
(RE 648245, relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 01/08/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-038  DIVULG 21-02-2014  PUBLIC 24-02-2014)
TRIBUTO – BASE DE INCIDÊNCIA – PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA. A fixação da base de incidência da contribuição social alusiva ao frete submete-se ao princípio da legalidade. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – FRETE – BASE DE INCIDÊNCIA – PORTARIA – MAJORAÇÃO. Surge conflitante com a Carta da República majorar mediante portaria a base de incidência da contribuição social relativa ao frete. MANDADO DE SEGURANÇA – BALIZAS. No julgamento de processo subjetivo, deve-se observar o pedido formalizado.
(RMS 25476, relator(a): LUIZ FUX, relator(a) p/ Acórdão: MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 22/05/2013, DJe-099  DIVULG 23-05-2014  PUBLIC 26-05-2014 EMENT VOL-02731-01  PP-00001)
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI ESTADUAL QUE OUTORGA AO PODER EXECUTIVO A PRERROGATIVA DE DISPOR, NORMATIVAMENTE, SOBRE MATÉRIA TRIBUTARIA – DELEGAÇÃO LEGISLATIVA EXTERNA – MATÉRIA DE DIREITO ESTRITO – POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES – PRINCÍPIO DA RESERVA ABSOLUTA DE LEI EM SENTIDO FORMAL – PLAUSIBILIDADE JURÍDICA – CONVENIENCIA DA SUSPENSÃO DE EFICACIA DAS NORMAS LEGAIS IMPUGNADAS – MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. – A essência do direito tributário – respeitados os postulados fixados pela própria Constituição – reside na integral submissão do poder estatal a rule of law. A lei, enquanto manifestação estatal estritamente ajustada aos postulados subordinantes do texto consubstanciado na Carta da República, qualifica-se como decisivo instrumento de garantia constitucional dos contribuintes contra eventuais excessos do Poder Executivo em matéria tributária. (...). A vontade do legislador, que substitui arbitrariamente a lei delegada pela figura da lei ordinária, objetivando, com esse procedimento, transferir ao Poder Executivo o exercício de competência normativa primaria, revela-se irrita e desvestida de qualquer eficácia jurídica no plano constitucional. O Executivo não pode, fundando-se em mera permissão legislativa constante de lei comum, valer-se do regulamento delegado ou autorizado como sucedâneo da lei delegada para o efeito de disciplinar, normativamente, temas sujeitos a reserva constitucional de lei. – Não basta, para que se legitime a atividade estatal, que o Poder Público tenha promulgado um ato legislativo. Impõe-se, antes de mais nada, que o legislador, abstendo-se de agir ultra vires, não haja excedido os limites que condicionam, no plano constitucional, o exercício de sua indisponível prerrogativa de fazer instaurar, em caráter inaugural, a ordem jurídico-normativa. Isso significa dizer que o legislador não pode abdicar de sua competência institucional para permitir que outros órgãos do Estado – como o Poder Executivo – produzam a norma que, por efeito de expressa reserva constitucional, só pode derivar de fonte parlamentar. O legislador, em consequência, não pode deslocar para a esfera institucional de atuação do Poder Executivo – que constitui instância juridicamente inadequada – o exercício do poder de regulação estatal incidente sobre determinadas categorias temáticas – (a) a outorga de isenção fiscal, (b) a redução da base de cálculo tributaria, (c) a concessão de crédito presumido e (d) a prorrogação dos prazos de recolhimento dos tributos –, as quais se acham necessariamente submetidas, em razão de sua própria natureza, ao postulado constitucional da reserva absoluta de lei em sentido formal. – Traduz situação configuradora de ilícito constitucional a outorga parlamentar ao Poder Executivo de prerrogativa jurídica cuja sedes materiae – tendo em vista o sistema constitucional de poderes limitados vigente no Brasil – só pode residir em atos estatais primários editados pelo Poder Legislativo.
(ADI 1296 MC, relator(a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 14/06/1995, DJ 10-08-1995 PP-23554 EMENT VOL-01795-01 PP-00027)
Apesar da vasta jurisprudência favorável, no recente julgamento do RE nº 1.043.313, Tema 939 de repercussão geral, o STF reconheceu a possibilidade da delegação ao Poder Executivo da competência de reduzir e restabelecer as alíquotas da contribuição ao PIS e da Cofins incidentes sobre receitas financeiras.
Em que pese o acórdão do julgamento ainda não tenha sido formalizado, o voto vencedor, proferido pelo ministro relator Dias Toffoli, foi no sentido de reconhecer que a análise da delegação legislativa deve ser enfrentada a partir das particularidades de cada espécie tributária, e justificou sua decisão em um suposto desenvolvimento de função extrafiscal das contribuições, o que autorizaria a sua regulamentação pelo Poder Executivo, dentro de limites estabelecidos na própria lei.
Este precedente, contudo, não pode ser invocado para justificar a delegação a competência para majorar as alíquotas do ICMS pela Lei Estadual nº 17.293/2020, posto que, ainda que a Constituição Federal não tenha trazido qualquer autorização para esta delegação, ao contrário do IPI, IOF e dos impostos aduaneiros, o ICMS não detém de caráter extrafiscal. Aliás, o próprio objetivo da Lei Estadual n° 17.293/2020 foi o reequilíbrio das contas públicas e ajuste fiscal.
Ante ao exposto, os ajustes fiscais promovidos pela Lei Estadual nº 17.293/2020 não subsistem perante a ordem tributária estabelecida pela Constituição Federal, visto que, no ímpeto de aumentar a arrecadação estadual, o Poder Legislativo bandeirante delegou ao Governo do Estado um “cheque em branco” para majorar, direta ou indiretamente, a carga tributária do ICMS em flagrante violação do princípio da legalidade e da separação dos poderes, inerentes ao Estado Democrático de Direito.
<hr />
O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE

sao paulo

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JOTA

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