Gunther Teubner

O presente texto foi escrito pelo sociólogo e jurista alemão Gunther Teubner e servirá de suporte teórico para as discussões a serem travadas no Webinar “Perspectivas Contemporâneas da Jurisdição Constitucional”, realizado pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) hoje, dia 18/05, a partir das 10h. <a href="https://www.youtube.com/watch?v=TtAy1JV9FEg" target="_blank" rel="noopener noreferrer">A transmissão ocorrerá ao vivo pelo aplicativo Zoom e pelo canal do IDP no Youtube</a> e contará com a liderança do Ministro Gilmar Mendes do Supremo Tribunal Federal. [1]
***
<blockquote class="jota-article__quote">
"A autovalorização das mercadorias é o "sujeito automático" da sociedade, constituído pelos seres humanos através das suas ações quotidianas, mas ao mesmo tempo, sujeitando-os totalmente e tornando-os meros serventes do processo anónimo e inconsciente que está fora do seu controle". 
</blockquote>
Esta é uma citação de um texto de Klaus Kempter para um simpósio realizado pelo Verfassungsblog [2]. Em estilo e terminologia, ela reflete a tradição da obra de Karl Marx, mas em sua essência, não está longe de Niklas Luhmann: o lucro, ou seja, a pressão institucionalizada para criar mais-valia, é o princípio da auto regulação anónima do sistema económico, que possui um caráter autopoético recursivo e centrado em si próprio. 
Esta é uma diferença decisiva. O autor, enquanto um renovado adepto da Wertkritik [3], busca explicar o funcionamento de todas as sociedades modernas. Mas esta é uma totalização equivocada da concepção de valor econômico e de lucro monetário. Ela ignora os desenvolvimentos da teoria social depois de Karl Marx, de Max Weber a Pierre Bourdieu.
O presente texto apresenta seis argumentos que refutam a primazia do lucro econômico nas sociedades capitalistas avançadas e demonstram que o imperativo de criação de mais-valia é em geral uma função dos diversos sistemas autopoiéticos e não um mero produto exclusivo das forças econômicas.
<a href="https://conteudo.jota.info/solucoes-para-crise"><img class="aligncenter wp-image-244441 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-solucoes-para-a-crise-2.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
A consequência desse raciocínio é que a crítica da sociedade capitalista não deveria ser centrada apenas na pressão por mais-valia que ocorre dentro da economia. E também não contestaria apenas a crescente economização de outros âmbitos da vida social, ou seja, a expansão, impulsionada pelos fanáticos neoliberais, do princípio do lucro económico em áreas não económicas da sociedade, que compele todas as atividades sociais a produzir lucro monetário ou, então, ser completamente eliminada. Pelo contrário, uma crítica mais profunda teria de lidar com um tipo diferente de expansão da lógica capitalista em toda a sociedade. 
A minha tese é a seguinte: Para além do lucro econômico, uma multiplicidade de pressões não monetárias de mais-valia é responsável pela produção da dinâmica do capitalismo, em especial pelos seus efeitos destrutivos.
<h3 class="p3">Argumento # 1: Generalização e re-especificação da mais-valia:</h3>
Não só a economia, mas também outros sistemas funcionais forçam cada uma das suas operações a gerar uma mais-valia específica - mas não necessariamente uma mais-valia monetária - para além da sua produção imediata de sentido. A teoria dos campos sociais de Bourdieu generalizou a categoria do capital de Marx e re-especificou diferentes tipos de capital em vários campos sociais.
A mesma generalização e a mesma re-especificação devem ser feitas em relação à categoria de lucro, ou mais-valia, para permitir a identificação de diferentes tipos de produção de mais-valia em vários campos sociais. Na política, por exemplo, a mais-valia não monetária significa que cada decisão política precisa gerar simultaneamente uma mais-valia de poder político para uso futuro. Na ciência, a pesquisa bem-sucedida nas diversas áreas temáticas, orientada para a produção de conhecimento, inclui o imperativo do excedente sob a forma de ganho de reputação. No Direito, os tribunais estão sob a pressão de produzir uma mais-valia normativa, ou seja, uma autoridade persuasiva específica que pode ser generalizada para o futuro, para além da resolução concreta da disputa imediata.
<h3 class="p3">Argumento # 2: Objeto da orientação de mais-valia:</h3>
Os sistemas funcionais gastam energia constantemente para regenerar e aumentar o seu próprio meio de comunicação para além do resultado real da produção. É o excedente do próprio meio de comunicação do sistema - poder, verdade/reputação, dinheiro, normatividade, estilo, fé - que é produzido por meio da aplicação reflexiva a cada operação. Neste processo reflexivo, não apenas as operações usuais de follow-up são tornadas possíveis, mas a própria capacidade de operacionalização do sistema é restaurada ou mesmo aprimorada.
Além disso, se essa dinâmica for estabelecida como critério de auto regulação, então as várias pressões para formação da mais-valia tornam-se a força motriz dos imperativos de expansão na sociedade moderna. A simples noção de maximização da produção não contempla um ponto central desse raciocínio: o aumento do meio de comunicação do sistema funcional é a pressão dominante em cada atividade.
<h3 class="p3">Argumento # 3: Por que meio da comunicação?</h3>
A contribuição especial dos meios da comunicação consiste em criar os motivos de aceitação de uma comunicação, superando a resistência direta. Por que se devem aceitar afirmações altamente improváveis de estudiosos eruditos? Por que se deve obedecer a ordens inconvenientes de líderes autoproclamados? Por que se deve seguir normas que não são do seu próprio interesse? Por que se deve aceitar reivindicações de propriedade exclusiva? 
Os meios da comunicação são meios de sucesso (ao contrário dos meios de difusão, como a oralidade, a escrita, a impressão, a digitalidade), na medida em que aqueles exercem uma força motivadora quase irresistível, o que torna a aceitação de uma comunicação altamente provável nos casos em que a rejeição poderia ocorrer. 
O esmagador poder motivacional dos meios da comunicação é o motor da dinâmica das sociedades capitalistas. E o “turbo” desse motor é a orientação para a mais-valia. O constante aumento da força motivacional do meio de comunicação especializado acelera a dinâmica interna de vários sistemas funcionais. Valores como esses não são responsáveis pela aceleração, são regras de preferência que dão apenas direção aos processos. A própria aceleração ocorre quando são criadas pressões para as múltiplas formas de mais-valia.
<h3 class="p3">Argumento # 4: A orientação da mais-valia é uma matriz anônima, não individual:</h3>
O poder motivacional dos meios da comunicação não deve ser equiparado a estados mentais dos indivíduos. Ao invés disso, os processos sociais firmemente institucionalizados são orientados para a produção de mais-valia com unidades de sucesso que medem a realização dos objetivos internos, sejam elas acompanhadas ou não pela ganância individual por poder, dinheiro ou reputação. 
O que "realmente motiva" as pessoas não é o mesmo que o motivo sistêmico estabelecido pelo meio da comunicação, que é o principal alvo da orientação de excedentes socialmente estabelecidos. Há uma clara divisão entre os processos psíquicos e sociais e cada um deles é responsável pela criação de sentido próprio. Esta separação entre os processos comunicativos na sociedade e os processos psíquicos na consciência individual é crucial para compreender a dinâmica da orientação para a mais-valia. 
Mas existe uma afinidade eletiva entre processos psíquicos e estruturas sociais, entre a ganância individual e as pressões por mais-valia social. Afinal, os fundos especulativos fascinam e atraem personalidades gananciosas. As múltiplas pressões de excedentes são as "jaulas de ferro da escravidão do futuro" de Max Weber, nas quais os indivíduos estão presos.
<h3 class="p3">Argumento # 5: Ambivalência excessiva:</h3>
O sucesso das pressões por mais-valia é responsável pelas forças imensamente produtivas desatadas no capitalismo. Elas demonstram uma ambivalência excessiva: imensa produtividade e seu lado negro destrutivo. Como a pressão do lucro monetário na economia, as pressões não monetárias pela mais-valia também têm os seus lados negros. 
As tendências destrutivas e autodestrutivas, corretamente atribuídas por Marx à maximização implacável do lucro na economia, multiplicaram-se nas pressões de mais-valia não monetárias de outras áreas da vida, que estão trabalhando de forma igualmente intensa. 
A crescente discrepância entre o sucesso produtivo do meio da comunicação e seus efeitos destrutivos leva a todo tipo de disfuncionalidades. Dentro de cada sistema social, na política, na economia, no direito, na ciência e na tecnologia, a maximização implacável da mais-valia torna-se quase um vício coletivo, ou seja, a repetição e multiplicação de um comportamento social auto-destrutivo, apesar do profundo conhecimento dos seus efeitos nocivos. 
E, nas suas relações externas, a expansão colonizadora dos sistemas extrai a sua mais-valia específica de outros domínios da sociedade. Os processos de globalização da economia, de politização, de cientifização, de jurisdificação ocorrem, mesmo simultaneamente, com consequências desastrosas para a ecologia no sentido mais amplo, ou seja, para o mundo natural, para a sociedade e para os indivíduos.
<h3 class="p3">Argumento # 6: Contra-estratégias:</h3>
Como as constituições devem lidar com a ambivalência excessiva da produção de mais-valia ubíqua? Deve-se pensar em restrições às formas de mais-valia? Talvez devamos cogitar mudanças na distribuição de lucros? Deve-se instituir formas de coletivização da geração não-monetária de lucro? Ou ainda podemos cogitar de libertação da pressão da sociedade para a maximização do lucro? 
Se é verdade que a compulsão para direcionar a mais-valia está estruturalmente enraizada em toda a sociedade, embora de formas diferentes, não parece ser suficiente para resolver o problema que se tome uma decisão constitucional a favor ou contra a economia movida orientada pelo lucro.
As esperanças de abolição da propriedade privada e de eliminação da orientação do lucro monetário são em vão. As tendências destrutivas de maximização da mais-valia não monetária em outros sistemas, especialmente na ciência, tecnologia, direito e, naturalmente, na política, permaneceriam completamente inalteradas.
A forma como as constituições lidam com as diversas formas de mais-valia social teria de ser concebida com mais cuidado do que qualquer estratégia de simples proibição. A inspiração poderia vir de uma reformulação do famoso movimento duplo de Karl Polanyi, da história do desembarque e do re-embarque da economia. 
Os elementos mais fascinantes da teoria de Karl Polanyi são as três mercadorias falsas (ou fictícias) e o que ele chama de modos não mercantis de integração econômica. As falsas mercadorias - terra, trabalho e dinheiro - são para Polanyi os locais onde o excesso de produção monetária esbarra na realidade dos atores políticos coletivos. Para Polanyi, os sindicatos e bancos centrais foram as novas instituições coletivas que tendiam a contrariar a desintegração da economia.
Mas, afinal, é possível identificar equivalentes a mercadorias falsas em áreas sociais que são impulsionadas pela mais-valia não monetária? Seria como identificar falsas pressões por mais-valia – que, a seu modo, obstruiriam o interesse público. Identificá-las revelaria os locais onde a relação antagônica entre orientação por mais-valia e igualitarismo democrático conduziria a conflitos insolúveis. 
O desafio para o futuro seria identificar as falsas pressões por mais-valia nos vários domínios sociais. A imaginação institucional seria necessária para substituí-los por instituições não orientadas por esse valor. Na política, o grande exemplo histórico tem sido as minorias que foram reprimidas num regime baseado em falsas pressões por excesso de poder. Como resposta, os Tribunais Constitucionais, ou seja, instituições não majoritárias que são relativamente independentes da política, têm avançado os direitos constitucionais para a proteção das minorias. 
No futuro, direitos fundamentais "horizontais" poderiam desempenhar um papel decisivo quando as falsas pressões pela mais-valia violassem a integridade da vida individual ou a dinâmica institucional no mundo digital, nas organizações econômicas, nos meios de comunicação social e em outros domínios sociais. 
Em particular, na ciência e na medicina, onde novos desenvolvimentos biotecnológicos aumentam as pressões por mais-valia que ameaçam os interesses dos pacientes humanos e dos animais, as instituições não orientadas por esse valor poderiam contrabalançar as pressões combinadas da reputação profissional e do lucro econômico. 
Um exemplo promissor é a ICANN, entidade responsável pela governança da Internet, que tenta neutralizar as pressões por mais-valia derivadas de interesses econômicos, tecnológicos, científicos e políticos. A ICANN faz isso ao se transformar em uma organização sem fins lucrativos e não estatal, legitimada por uma constituição de terceiros interessados (stakeholder constitution).
&nbsp;
&nbsp;
------------------------------------------------------------
 [1] O presente texto corresponde a uma tradução feita pelo Ministro Gilmar Mendes e pelos professores Ricardo Campos (Docente assistente na Universidade de Frankfurt) e Victor Fernandes (Professor do IDP) de artigo publicado originalmente no Verfassungsblog, em 3 de maio de 2020. Disponível em: <a href="https://verfassungsblog.de/the-constitution-of-non-monetary-surplus-values" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://verfassungsblog.de/the-constitution-of-non-monetary-surplus-values</a>. 
 [2] Disponível em: <a href="https://verfassungsblog.de/conclusion-to-the-symposium-constitutions-of-value/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://verfassungsblog.de/conclusion-to-the-symposium-constitutions-of-value/</a>
 [3] A Wertkritik corresponde a um campo teórico pós-marxista que segue a tradição da Escola de Frankfurt e a crítica social desenvolvida por Max Horkheimer.

money-515058_1920

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Seis argumentos que refutam a primazia do lucro econômico nas sociedades capitalistas avançadas

A constituição de mais-valias não econômicas

Seis argumentos que refutam a primazia do lucro econômico nas sociedades capitalistas avançadas