Martha Leão

Paulo Pereira Leite

Em 8 de fevereiro, o plenário do Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/stf">STF</a>) julgou o mérito dos Temas de Repercussão Geral 881 e 885, para fixar a seguinte tese: “As decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo”. Não suficiente, ainda nessa data, os ministros, por apertada maioria de 6 votos a 5, decidiram não modular os efeitos dessa decisão.
O que se discutia, no mérito dos referidos temas, era como resolver o conflito entre uma decisão proferida pelo STF no controle concentrado de constitucionalidade ou sob o regime de repercussão geral (logo, com eficácia erga omnes e efeito vinculante) diante de uma decisão já transitada em julgado, em sentido contrário, no controle difuso de constitucionalidade (logo, com eficácia individual e concreta). Ao não modular os efeitos da tese fixada, determinou-se que a eficácia da coisa julgada tributária teria sido interrompida desde a decisão proferida em caráter geral pelo STF.
Desde então, instaurou-se um debate no país, tanto no âmbito jurídico como fora dele, relativamente à correção da decisão, ainda pendente de publicação e de possíveis Embargos de Declaração. A corrente que defende a decisão tomada pelo STF baseia-se, de maneira bastante persuasiva, na construção de que o contribuinte que confiou na permanência dos efeitos da sua coisa julgada tributária, mesmo diante da posição contrária definida pelo STF, teria realizado uma aposta. Nesse sentido, tanto a manifestação do ministro Luís Roberto Barroso: “A insegurança jurídica foi criada pela decisão de, mesmo depois da orientação do Supremo de que o tributo era devido, continuar a não pagá-lo ou a não provisionar. (...) A partir do momento em que o Supremo diz que o tributo é devido, quem não pagou ou provisionou fez uma aposta”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>; como a manifestação do ministro Gilmar Mendes: “Se há insegurança, ela foi gestada por quem se colocou em risco (...).”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
As duas manifestações traçam, portanto, um paralelo entre realizar uma aposta e ter confiado na manutenção dos efeitos de uma decisão judicial transitada em julgado. Mas a confiança depositada na coisa julgada tributária pode ser equiparada a uma aposta? A resposta é negativa. Segundo o Houaiss, o termo aposta é definido como “palpite de apostador em jogo do qual não participa e cujo resultado não conhece”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. E a decisão judicial transitada em julgado? Aceitando a analogia no sentido de que o processo seria, nesse caso, um jogo, a confiança depositada em seu resultado seria um palpite, em jogo do qual o contribuinte participa e cujo resultado conhece – exatamente em sentido contrário aos elementos definitórios de uma aposta!
Mais do que isso: a confiança depositada na manutenção dos seus efeitos não decorreria apenas do fato de que aquele jogo, do qual ele era parte legítima, já tinha sido encerrado, mas também do próprio reconhecimento expresso de que essa situação (o “jogo já jogado”) configura verdadeiro direito fundamental prescrito pela Constituição (artigo 5º,  inciso XXXVI) e que a interpretação vigente nos Tribunais Superiores do país, até o julgamento de mérito dos Temas 881 e 885 pelo STF, referendavam essa interpretação.
Três fatos são suficientes a demonstrar isso. Primeiro: em 2011, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou o Tema Repetitivo 340, definindo a seguinte tese: “O fato de o Supremo Tribunal Federal posteriormente manifestar-se em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada pode alterar a relação jurídica estabilizada pela coisa julgada, sob pena de negar validade ao próprio controle difuso de constitucionalidade".
Segundo: em 2015, o próprio STF julgou o Tema de Repercussão Geral 733, fixando a seguinte tese, de modo unânime pelo seu tribunal pleno: “A decisão do STF declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou rescisão das decisões anteriores que tenham adotado entendimento diferente. Para que tal ocorra, será indispensável a interposição de recurso próprio ou, se for o caso, a propositura de ação rescisória própria, nos termos do art. 485 do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cpc">CPC</a>, observado o respectivo prazo decadencial (art. 495)”.
E, terceiro: mais recentemente, são reiteradas as decisões do plenário do STF no sentido de aplicação de sua Súmula 343, na interpretação atribuída no julgamento do Tema 136 de Repercussão Geral, no sentido de que “não cabe ação rescisória quando o julgado estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo à época da formalização do acórdão rescindendo, ainda que ocorra posterior superação do precedente”, como nas recentes Ações Rescisórias 2844 (Tribunal Pleno, min. Ricardo Lewandowski, 08/04/2022) e 2297 (Tribunal Pleno, min. Edson Fachin, 21/05/2021), nas quais se decidiu pelo descabimento de ação rescisória em relações jurídico-tributárias exatamente pela preservação da garantia constitucional da coisa julgada em detrimento da isonomia e uniformização da jurisprudência.
Essas decisões, proferidas em caráter geral e com eficácia vinculante para o Poder Judiciário, pelos dois principais Tribunais Superiores do país evidenciam o cenário jurídico e fático da conduta adotada pelo contribuinte ao confiar na manutenção dos efeitos da coisa julgada tributária. Em 2023, de modo inaugural, o STF alterou o seu próprio entendimento para asseverar que o conflito entre o controle concentrado e o controle difuso de constitucionalidade se resolveria pela automática cessação dos efeitos da coisa julgada tributária. É um fato objetivo que o próprio tribunal entendia de modo diferente antes dessa decisão – tanto é que foi necessário julgar, uma vez mais, por seu plenário e com novo reconhecimento de repercussão geral, a mesma matéria, para fixar uma tese nova, não se valendo, por exemplo do instituto da reafirmação de jurisprudência em repercussão geral.
Essa decisão inédita, que afasta os próprios mecanismos institucionais de restrição de efeitos de decisões transitadas em julgado (a saber, as ações rescisórias e revisionais, estas últimas os instrumentos processuais adequados para afastar os efeitos futuros de situação já julgada, tendo em vista a mudança do cenário fático ou de direito), jamais poderia ser objeto de antecipação ou previsão por parte do contribuinte, considerando que o próprio STF ratificava a manutenção da coisa julgada exatamente nesse tipo de cenário.
O contribuinte, portanto, não pode ser equiparado a um apostador de risco, que coloca todas as suas fichas da roleta no número 9 vermelho considerando o palpite de que o jogo, do qual ele não participa e cujo resultado ainda não conhece, será encerrado com a bolinha branca exatamente nesse número. O processo judicial transitado em julgado era um jogo jogado e finalizado, com a participação efetiva do contribuinte e da Fazenda Pública, resultado conhecido e efeitos reiteradamente assegurados pela Constituição, pelo CPC, pelo STJ e pelo STF.
Logo, tentar equiparar o exercício da confiança depositada pelo contribuinte nesse cenário a uma aposta significa, na prática, negar o estado de respeitabilidade prescrito pela segurança jurídica para o cidadão-contribuinte, para protegê-lo do engano, da frustração, da surpresa e da arbitrariedade na transição do passado ao presente e do presente ao futuro.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> Embora não seja um apostador, o contribuinte que confiou na coisa julgada tributária encontra-se hoje, certamente, derrotado.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=502140&amp;ori=1">https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=502140&amp;ori=1</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> MENDES, Gilmar. ’Quem contratou a insegurança jurídica”? <a href="https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2023/02/quem-contratou-a-inseguranca-juridica.ghtml">https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2023/02/quem-contratou-a-inseguranca-juridica.ghtml</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 103.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 6ª ed. São Paulo: Malheiros/Jus Podivm, 2021, p. 737.

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JOTA

Embora não seja um apostador, contribuinte que confiou na coisa julgada encontra-se, certamente, derrotado

A confiança depositada na coisa julgada tributária foi uma aposta?

Embora não seja um apostador, contribuinte que confiou na coisa julgada tributária encontra-se, certamente, derrotado