
Aprovado pelo Congresso Nacional em 26/4 e sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na última sexta-feira (12/5), o PLN 5/23, que abre crédito de R$ 7,3 bilhões no Orçamento de 2023 para o pagamento do piso da enfermagem, não acabou com o embate em torno dos direitos da categoria. Pelo contrário, a medida parece ter acirrado as tensões: de um lado, entidades que representam enfermeiros e enfermeiras se articulam para que o piso passe a valer; de outro, entidades do setor privado, das santas casas e filantrópicas e de municípios argumentam que os recursos não são suficientes e reclamam medidas, como a desoneração da folhas de salários, para evitar demissões no setor.
O piso da enfermagem foi aprovado pelo Congresso em 2022, mas acabou suspenso pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em setembro do mesmo ano porque o texto não previa a origem dos recursos necessários para arcar com os reajustes no serviço público. Em dezembro, foi promulgada a Emenda Constitucional 127, que seria uma saída do impasse ao liberar o uso de recursos do superávit financeiro de fundos públicos e do Fundo Social para financiar o piso no setor público e nas entidades filantrópicas. No entanto, a forma de distribuição dos valores não havia sido definida. Além disso, a solução foi vista como temporária, uma vez que os valores seriam suficientes por três anos, e não atende o setor privado, o maior empregador da classe.
A aprovação do PLN e a posterior publicação de uma portaria pelo Ministério da Saúde foram a saída encontrada pelo governo para definir o rateio dos recursos previstos pela EC 127. A medida inclui uma nova categoria no Fundo Nacional da Saúde, do Ministério da Saúde, para atender as despesas com o piso nacional de enfermeiros (fixado no valor de R$ 4.750), técnicos de enfermagem (R$ 3.325), auxiliares de enfermagem e parteiras (R$ 2.375).
O grupo de trabalho da Câmara dos Deputados que avaliou o impacto orçamentário da medida previu um aumento total de despesas com folhas de pagamento da ordem de R$ 16,31 bilhões, um valor muito acima dos 7,3 bilhões contemplados pelo PLN, considerando gastos com pessoal de instituições de saúde públicas, privadas e filantrópicas.
Ainda assim, Daniel Menezes, conselheiro do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), considera que a medida responde aos questionamentos do STF — que ainda mantém sua suspensão. “O setor privado, que não é contemplado, teria um aumento de gastos de R$ 5 bilhões e muitos deles já pagam, inclusive, valores próximos do piso. Além disso, trata-se de um segmento que teve muito lucro nos últimos anos, então o impacto seria de uns 2% de seu orçamento”, diz.
De acordo com o conselheiro do Cofen, os recursos estipulados pelo PLN atenderão 80% dos profissionais da categoria. “Mas continuaremos lutando para que caia a suspensão do STF e o piso da enfermagem valha para todos os trabalhadores da enfermagem”, ressalta.
Antônio Britto, diretor executivo da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), reforça que as instituições particulares não têm condições de enfrentar esse impacto orçamentário. “O argumento de que os hospitais privados lucraram mais nos últimos anos faz parecer que todo o setor opera na Avenida Paulista, quando, na verdade, sua maioria é composta de pequenas clínicas e hospitais espalhados nos mais de cinco mil municípios brasileiros”, afirma.
Tanto a Anahp quanto outras instituições da saúde privada consideram que a desoneração da folha de pagamento é uma etapa imprescindível para viabilizar o piso nacional da enfermagem.
Solange Caetano, presidente do Fórum Nacional da Enfermagem (FNE), rebate Britto ao explicar que a maioria dos empregados da enfermagem no país trabalham no setor privado. “Quem mais contrata não são os pequenos hospitais. Existe dono de clínica pequena que trabalha só com um enfermeiro ou técnico de enfermagem. Pode ser que o segmento privado tenha uma redução de lucratividade no primeiro momento, mas depois o próprio mercado se regula”, afirma ela, que destaca ainda que enquanto “planos de saúde e hospitais aumentaram lucro durante o período pandêmico, muitos trabalhadores adoeceram ou perderam a vida.” “Não queremos acabar com o setor, pelo contrário, queremos manter nossos empregos”, ressalta.
Mas não é apenas o setor privado com fins lucrativos que reclama da medida. Mirócles Veras, presidente da Confederação de Santas Casas e Hospitais Filantrópicos (CMB) falou ao JOTA sobre o impacto para as entidades filantrópicas. “A medida não atende às nossas necessidades, porque não é um recurso perene, é um valor estimado apenas para 2023, e nosso cálculo mostra que seriam necessários R$ 7 bilhões apenas para os hospitais filantrópicos. Ainda não está claro como esses recursos chegarão às nossas instituições”, diz. “Daqui a dois anos, como vai ser? O salário desses profissionais não vai poder diminuir, então vamos fazer o quê? Demiti-los?”
A presidente do FNE explica, no entanto, que, a partir do ano que vem, o valor já estará previsto no Orçamento da União para a assistência financeira complementar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. “A previsão da EC 127 era, inicialmente, de cinco anos, em vez de três, para os estados e municípios poderem adequar seus orçamentos e ter autonomia para pagar o piso sem depender do Governo Federal”, esclarece.
Isso não convence o presidente da Confederação Nacional de Municípios (CNM), Paulo Ziulkoski, que reclama de que o valor sancionado não paga sequer um terço do piso dos profissionais da enfermagem que atuam nos municípios. “Além disso, trata-se de recurso somente para 2023, não permanente para uma despesa continuada, não traz regulamentação sobre a forma de distribuição e transferência, e é destinado apenas aos profissionais da atenção especializada, ficando de fora os profissionais da atenção básica, como aqueles que atendem o Estratégia Saúde da Família”, afirma, em nota.
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Estimativas da entidade mostram que o impacto do piso apenas nos Municípios será de R$ 10,5 bilhões em 2022, enquanto é de R$ 3,3 bilhões o valor previsto no PLN para os entes locais. “É justamente a esfera municipal que absorve o maior impacto financeiro com a instituição do piso. Destaca-se que os Municípios possuem em seu quadro mais de 589 mil postos de trabalho da enfermagem e, com a vigência da medida, correm o risco de reduzir 11.849 equipes de atenção básica, desligar mais de 32,5 mil profissionais da enfermagem e, consequentemente, desassistir quase 35 milhões de brasileiros”, continua Ziulkoski.
O presidente da CNM se queixa ainda de que, “como sempre na história do federalismo brasileiro”, sejam criadas novas obrigações para os municípios sem consultá-los antes e sem garantir os recursos necessários para o seu cumprimento. “A CNM vai solicitar novamente que a Corte mantenha a suspensão da efetividade legal do piso até que haja fontes definitivas e sustentáveis de financiamento do piso”, conclui.
Já o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias municipais de Saúde (Consems), as principais entidades que representam estados e municípios, respectivamente, informaram que esperarão a decisão final do STF pra se posicionar.
Enquanto isso, o Cofen, o FEN e outras entidades que representam os profissionais da área se articulam para pressionar o Supremo a derrubar a suspensão, para que o piso da enfermagem alcance todos os trabalhadores. Ainda assim, essa não seria uma vitória definitiva, como explica Solange. “Haverá mais conflitos lá na frente, quando o piso for oficializado, pois muitos empregadores querem que ele seja aplicado de acordo com as horas trabalhadas. Nós entendemos que não deve haver proporcionalidade nesse sentido. Ou seja, outras batalhas jurídicas estão por vir.” E esse embate parece longe do final.