Pareceres jurídicos sobre a mais recente proposta de Termo de Compromisso de Ajuste de Conduta (TCAC) da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) com a Hapvida expõem brechas quanto à garantia de cumprimento das finalidades centrais do acordo: reparar danos aos beneficiários e evitar a reincidência de condutas inadequadas. O conteúdo indica que a exigência de investimento no combate à Covid-19, uma cláusula divulgada pela Diretoria de Fiscalização como condição adicional ao modelo tradicional de TCAC, justificou uma excepcionalidade que deverá ser avaliada de forma criteriosa pela diretoria colegiada.
Um dos aspectos mais “inovadores” é que a minuta considera para fins de cumprimento os investimentos feitos pela empresa a partir de março de 2020, marco do início da pandemia. Na prática, caso o documento seja aprovado dessa forma, a Hapvida não precisará sequer desembolsar o valor equivalente às multas dos processos sancionadores suspensos, cerca de R$ 12 milhões, para ter como contrapartida obrigações mais brandas se comparadas ao modelo usual. Isso porque, de acordo com dados da própria empresa, esses investimentos já foram feito ao longo da pandemia.
A proposta teve votação iniciada pela diretoria colegiada no dia 21 de julho e recebeu a aprovação do relator, diretor Maurício Nunes, substituto na Diretoria de Fiscalização (Difis). O diretor Bruno Martins Rodrigues pediu vista, seguida de diligência. A análise mais recente da Procuradoria Federal junto à ANS, datada de 13 de outubro, foi originada justamente de questionamentos do substituto da Diretoria de Gestão. Nela, a unidade recomenda a vedação de reconhecimento de investimentos retroativos com base em entendimento firmado pelo Tribunal de Contas da União (TCU).
O JOTA vinha tentando obter a documentação relativa a essa deliberação pública desde o dia 23 de julho e só conseguiu acesso parcial após a Controladoria-Geral da União (CGU), penúltima instância recursal no âmbito da Lei de Acesso à Informação, ter determinado o envio pela ANS, com restrições.
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Os pareceres jurídicos do procurador federal Alexandre Gomes Gonçalves sobre a proposta, de 23 de março e de 13 de outubro de 2021, não estavam entre os documentos compartilhados pela agência. A reportagem, porém, conseguiu acessá-los no sistema da Advocacia-Geral da União (AGU). Os dois documentos já haviam sido aprovados pelo procurador-chefe junto à ANS, Daniel Junqueira de Souza Tostes.
Já no parecer de março, são elencados pontos de atenção em relação ao TCAC. De acordo com o relato do procurador, o acordo pode resultar na suspensão de 171 processos administrativos sancionadores, relativos a seis tipos de infração previstas na RN nº 124, de março de 2006, a serem apuradas. Desse total, 127 correspondem ao art. 77, que dispõe sobre o descumprimento da cobertura prevista em lei. O valor total das multas, se comprovadas as irregularidades, superaria R$ 12,4 milhões.
Apesar de haver previsão para o agrupamento excepcional, a critério da Difis, de infrações referentes a tipificações sancionadoras distintas, o conjunto fez com que o procurador destacasse a necessidade de avaliação criteriosa dos efeitos do TCAC devido à sua proporção.
“Note-se que se trata de medida excepcional e que portanto demanda ampla justificativa, sobretudo no processo em epígrafe que reúne uma quantidade significativa de processos sancionadores e também condutas variadas dentro do mesmo tipo infracional. Além disso, diante da gravidade das condutas apuradas, da necessidade de previsão de inúmeras obrigações para ajuste das diversas condutas infracionais reunidas no mesmo TCAC e, principalmente, do alto valor das sanções pecuniárias que serão suspensas (R$ 12.432.400,00 – doze milhões, quatrocentos e trinta e dois mil e quatrocentos reais), há que ser ponderado se as multas previstas no Termo, que neste caso tiveram que se limitar a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), por força do art. 29, §2º, II da Lei nº 9.656, de 1998 são proporcionais e adequadas para compelir o compromissário a cumprir as obrigações e se o critério ora adotado é o que melhor resguarda os superiores interesses da ANS na celebração do presente TCAC”, escreve.
O autor também destaca a ausência, entre as obrigações propostas à Hapvida, do compromisso de não ser condenada pelo mesmo tipo infrativo durante a vigência do acordo, o que foi, segundo ele, adotado em casos análogos.
De acordo com o descrito por Alexandre Gomes Gonçalves, para todas as infrações em apuração, foram estabelecidas apenas obrigações de manutenção de metas de desempenho não resolvidas, com base na taxa de Notificação de Intermediação Preliminar (NIP) sem resolução. Além disso, desde que a empresa pague o valor fixado, de até R$ 100 mil para cada tipo infrativo, não haverá descumprimento do TCAC caso as metas não sejam atingidas.
“Com efeito, considerando: a) o quantitativo expressivo de processos administrativos sancionadores instaurados para apurar condutas infrativas da operadora, sobretudo nas infrações tipificadas no art.77 da RN 124, de 2006 que denotam indícios de práticas infrativas reiteradas da operadora, b) O valor expressivo de multas dos processos administrativos sancionadores que serão suspensos com a celebração do TCAC; c) a previsão legal de cessação das prática de atividades ou atos objetos da apuração – art.29, § 1º inciso I da Lei 9.656/98; d) a finalidade almejada pelo Termos de desestimular a operadora a incorrer em futuras transgressões da avença e da legislação regulatória; e) Que não está sendo estabelecida redução das metas de desempenho da compromissária no indicador Taxa NIP não resolvidas para as respectivas condutas infrativas, o que pode inclusive acarretar um novo pedido de TCAC no futuro para as mesmas infrações, que pode revelar a inutilidade do TCAC; orienta-se novamente que a análise de conveniência e oportunidade de celebração do Termo seja realizada de forma rigorosa, de forma que as obrigações assumidas pela Compromissária, além de corrigir as práticas infrativas apuradas, inclusive indenizando os prejuízos, também tenham finalidade prospectiva de forma que desestimulem a reiteração das práticas infrativas apuradas nos processos administrativos sancionadores”, elenca.
Além disso, chama a atenção do procurador federal o fato de que a Hapvida tenha a obrigação de pagar R$ 16 mil por cada beneficiário prejudicado que não tiver sido comunicado sobre o termo ou que não receber as quantias relativas aos danos causados.
“Nestes casos, ou seja, em que não haverá a restituição ou indenização para o beneficiário, que acredita-se ser o interesse primário na celebração do TCAC, deve ser avaliada a pertinência de celebração do TCAC, já que subsistirão, além do pagamento estipulado, que acredita-se ser inferior ao valor da multa prevista no processo sancionador, apenas as obrigações regulatórias”, diz o parecer.
Combate à Covid
Na cláusula complementar, que trata do investimento no combate à Covid-19, são descritos os seguintes valores de investimento, conforme o parecer: R$ 2,3 milhões em equipamentos de proteção individual; R$ 4,4 milhões em equipamentos hospitalares; R$ 5 milhões na ampliação de leitos hospitalares; R$ 497 mil na construção ou reforma de unidades ambulatoriais ou hospitalares.
O termo determina que a Hapvida deverá demonstrar que os investimentos ultrapassam as despesas normais implementadas em razão do acordo. E finaliza: “Serão considerados para fins de comprovação do cumprimento da obrigação prevista no caput desta Cláusula todos os investimentos realizados pela COMPROMISSÁRIA a partir de 20/03/2020, data em que foi publicado o Decreto Legislativo nº 6, de 2020, que reconheceu o estado de calamidade pública no Brasil”.
A possibilidade de elaboração do TCAC com a previsão desse investimento adicional começou a ser avaliada no primeiro semestre de 2020.
Ainda na fase de elaboração do texto, uma troca de e-mails obtida via LAI mostra, apesar de conter dados tarjados, que a Difis preparou um modelo com obrigações mais brandas em decorrência do formato inovador: “Conforme combinado, segue a tabela com as possíveis obrigações a serem usadas no TCAC da Covid-19. Deve ser salientado que tais obrigações servem de norte para o TCAC em questão, mas para um TCAC convencional seriam usadas não apenas as obrigações constantes no documento em anexo, como outras”, diz a mensagem.
Em nota enviada pela ANS no dia 2 de setembro em resposta a uma matéria sobre o tema publicada no site do JOTA, a reguladora apresentou um posicionamento que diverge da procuradoria.
“Assim, a única novidade em relação ao TCAC em questão em relação aos demais Termos celebrados pela ANS nos últimos 6 anos é a realização de investimentos pela operadora para enfrentamento da pandemia da COVID-19, que, conforme mencionado, é uma cláusula complementar, que não afasta as obrigações primárias objeto do Termo que são as de cessar, corrigir e indenizar as condutas em apuração nos processos sancionadores”, informou um trecho da nota, cuja íntegra foi anexada na publicação.
Em setembro de 2021, pouco mais de um mês depois da reunião de diretoria colegiada em que o tema começou a ser votado, a Hapvida divulgou um comunicado de imprensa que descreve um movimento de desmobilização de leitos para Covid-19, dando a entender que no momento atual a empresa não necessita de qualquer investimento adicional no enfrentamento à pandemia para atender adequadamente aos beneficiários.
“O Sistema Hapvida iniciou um processo de desmobilização e caminha para a normalização operacional: o número de leitos dedicados a casos de Covid-19 já foi reduzido em mais de 90% (cerca de 100 leitos atualmente versus 1.652 leitos de máxima entre março e abril de 2021). Além do valor total de R$ 220 milhões destinado para o enfrentamento da pandemia, R$ 62 milhões foram utilizados para contratações de seis mil profissionais da saúde. O restante foi alocado investimentos com foco na melhoria contínua da rede hospitalar e no melhor atendimento dos nossos clientes”, diz o conteúdo.
Após pedir o adiamento da votação no dia 21 de julho, o diretor Bruno Rodrigues endereçou questões específicas à Procuradoria Federal Junto à ANS, entre elas a possibilidade de firmar TCAC contendo obrigações já cumpridas.
O procurador recomendou a revisão desse trecho do TCAC para vedar investimentos retroativos, uma vez que essa previsão contraria a determinação expedida pelo TCU no item 9.4.6. do Acórdão 2121/2017, que diz: “em atenção à decisão do Conselho Diretor da Anatel nos termos da Análise nº 68/2017, não admita como compromissos adicionais em TAC as ações, atividades e investimentos que já tenham sido realizados pelas operadoras ou que estejam em andamento no momento da assinatura do instrumento, com vistas a garantir o interesse público do ajuste e a sua efetividade (seção VII.3.6 do voto condutor deste acórdão)”.
No parecer do dia 13 de outubro, a Procuradoria Federal junto à ANS destaca ainda que, em análise feita em 2020, “rechaçou a possibilidade de se firmar um Termo de Compromisso de Ajuste de Conduta apenas com obrigações em investimentos por parte das operadoras para o combate da pandemia”. Nesse sentido, para que haja legalidade no acordo, devem ser incluídas obrigações capazes de cessar e corrigir as irregularidades em apuração.
Ressarcimento ao SUS
O diretor substituto Bruno Rodrigues também questionou a viabilidade de celebração de TCAC com operadora que não tem ressarcido ao SUS e que recentemente cumpriu outro termo com infrações tipificadas no mesmo dispositivo, o que evidenciaria a manutenção do comportamento.
Em resposta, o procurador federal informou que caberá à diretoria colegiada da ANS a avaliação sobre valores subjetivos negativos que não estejam explícitos na norma em vigor (RN 372/2015).
“Se de um lado a ANS autolimitou sua discricionariedade (margem de conformação), ao prever na norma os fatores para o exercício de sua conveniência e oportunidade na celebração do acordo substitutivo, isto é, necessariamente deverá apreciá-los para celebração do ajuste, de outro é preciso ressaltar que não exauriu sua discricionaridade, isto é, no caso concreto poderá elencar outros fatores não previstos na norma, que no entanto, deverão ser devidamente motivados sobretudo quando motivadores da negativa de celebração do Termo requerido pela Operadora”, afirma.
Justificativas da Difis
De acordo com o documento do dia 13 de outubro, quanto à ausência de obrigação de comprometimento a não ser condenada por conduta enquadrada no mesmo tipo infrativo, a Difis informou à Procuradoria Federal junto à ANS que a meta não costuma ser exequível para condutas enquadradas em tipificações com incidência elevada, sobretudo em caso de empresas de grande porte. Segundo a diretoria, a eliminação dessa exigência já é praticada desde 2017.
Sobre a escolha da manutenção da taxa NIP como obrigação, a Difis informou, conforme descrito no referido parecer, que a operadora está mais suscetível a ter uma demanda classificada, uma vez que se trata de procedimento preliminar, com fase reduzida para a produção de provas.
“A elaboração de uma meta de taxa NIP não resolvida com base no desempenho da operadora tem como objetivo manter o seu desempenho, caso ele seja considerado como adequado em comparação com a média de mercado. Caso o desempenho seja considerado como inferior à média de mercado, a medida mais adequada é a propositura de melhoria da taxa para patamar compatível com a média de mercado”, diz a resposta à Proge.
Em relação à excepcionalidade do TCAC, com agrupamento de mais de 170 processos, a Difis justificou que a medida está amparada pelo cenário de pandemia, ainda de acordo com o mesmo documento.
“Pois bem, a adoção excepcional do Termo em questão com diversas condutas está amparada pela atual e emergencial demanda por medidas de enfrentamento à pandemia do COVID-19, permitindo que as operadoras de planos de saúde respondam de maneira mais efetiva às prioridades assistenciais deflagradas pela COVID-19, com a realização e ampliação de investimentos na estrutura para combate ao vírus, além das obrigações de cessação e correção das condutas autuadas nos processos sancionadores incluídos no Termo”, consta no parecer.
ANS
A ANS foi procurada para informar: se a proposta ainda é avaliada; se a diligência solicitada pelo diretor Bruno Martins Rodrigues foi concluída; se há previsão de retomada da votação; se reconhece que o investimento no combate à Covid-19 atenuaria as obrigações da Hapvida; se esse formato de TCAC ainda faz sentido no momento atual; se a ANS mantém a possibilidade de reconhecimento de investimentos retroativos, a partir de março de 2020, para cumprimento da cláusula adicional; se, caso seja aprovado nesse formato, o TCAC será capaz de proporcionar o adequado ressarcimento aos beneficiários e ajustes das condutas relativas aos processos sancionadores.
A agência enviou a seguinte resposta, após a divulgação do conteúdo para os assinantes do PRO Saúde:
Em relação à matéria “Pareceres expõem brechas em negociação entre ANS e Hapvida”, a Agência Nacional de Saúde Suplementar esclarece:
1 – A reportagem menciona “a análise mais recente da Procuradoria Federal junto à ANS datada de 13 de outubro”: importante frisar que o documento acessado pelo Jota não havia sido aprovado pelo Procurador Geral na ANS, tampouco havia sido disponibilizado no processo, não sendo de conhecimento da Agência;
2 – Sobre o parecer jurídico do dia 23 de março de 2021, que a jornalista diz ter tido acesso pelo sistema da Advocacia-Geral da União (AGU), é preciso informar que tal documento está classificado como sigilo empresarial. Por esse motivo, não teve o envio liberado pela Controladoria-Geral da União (CGU), nem poderia ser acessado por outros meios;
3 – Em relação ao andamento do TCAC, a Agência ressalta que só teve acesso ao último parecer da Proge no fim da tarde da última sexta-feira e que tal documento está em análise.
Hapvida