Após a perda da eficácia, em 1º de junho, da Medida Provisória 1.156/2023, que determinava a extinção da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), a recriação do órgão vinculado ao Ministério da Saúde entrou num limbo que se arrasta desde então. A solução negociada diretamente com líderes do Centrão, grupo liderado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), foi recriar a entidade com uma estrutura remodelada, uma nova Funasa. A negociação garantirá a ampliação do bloco na estrutura do governo, além da condução de um orçamento superior a R$ 1 bilhão. Questões essenciais como o desenho da nova estrutura, o ministério ao qual será vinculada, sua função primordial, no entanto, seguem sem respostas, pelo menos publicamente.
O prazo para que essas e outras dúvidas sejam sanadas foi prorrogado para o dia 14 de setembro. Na proposta enviada ao Congresso pela gestão federal, as competências realizadas pela Funasa seriam repartidas entre o Ministério da Saúde, quanto ao exercício da vigilância sanitária em saúde e ambiente, e o Ministério das Cidades, que assumiria as demais atribuições. Os convênios e contratos da Funasa passariam a ser exercidos por uma instituição financeira, neste caso, a Caixa Econômica Federal.
A proposta final de reestruturação e modernização da Funasa constará no relatório da Comissão de Reestruturação criada por meio da Portaria 3.744 em 14 de julho de 2023 exclusivamente para a tarefa. O grupo de trabalho é composto por servidores do Ministério da Gestão e tem como convidados representantes da Casa Civil, da própria Funasa, do Ministério da Saúde, do Ministério das Cidades e da Advocacia-Geral da União, além três especialistas indicados pela Secretaria de Relações Institucionais (SRI). O prazo inicial para a finalização dos trabalhos era de até 30 dias.
A Funasa surgiu por força de decreto em abril de 1991, resultado da fusão de vários segmentos da área de saúde, dentre as quais a Fundação Serviços de Saúde Pública (Fsesp) e a Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam). As entidades integradas à Funasa atuavam diretamente na prevenção e combate às doenças, na educação em saúde, na atenção à saúde de populações carentes, enfaticamente nas regiões Norte e Nordeste, no saneamento básico e no combate e controle de endemias, além de pesquisas voltadas para a saúde.
Professor da Fundação Getúlio Vargas, o médico sanitarista Adriano Massuda explica que com o avanço do SUS, as ações de saúde pública, inicialmente realizadas pela Funasa, foram sendo descentralizadas a Estados e municípios, reduzindo a importância do órgão no âmbito do Ministério da Saúde.
“A Funasa foi ficando com o papel cada vez mais restrito e o que ela tinha de função no final do ano passado era apenas realização de obras de saneamento básico em município de menos de 50 mil habitantes. Essa é uma ação até questionável se é uma ação de saúde. São ações mais de urbanização. O entendimento é de que o que ela estava fazendo poderia ser incorporado ao Ministério das Cidades”, diz Massuda ao explicar o principal argumento do GT de Saúde do Gabinete de Transição Governamental ao recomendar a extinção do órgão. Massuda esteve como co-relator do grupo de trabalho.
Em sua avaliação, do ponto de vista da saúde, não há sentido em recriar a Funasa com a mesma funcionalidade prévia a extinção. Em se mantendo tal função, o mais aceitável e coerente é de que ela passe a integrar o Ministério das Cidades, pasta voltada ao saneamento urbano.
“É preciso recriar com uma nova função, identificando ações de saúde pública que o Brasil precisa, que precisem ser realizadas pelo governo federal e tendo em vista aquelas que Estados e municípios não estão dando conta de realizar”, diz. “É cada vez menor a necessidade de existir uma entidade como a Funasa, na medida em que se tem um sistema de saúde descentralizado e Estados e municípios são responsáveis pela execução das ações. Tem que ter uma função clara de saúde pública”, completa.
Histórico
Em 2016, com a aprovação do seu Estatuto, a Funasa assumiu como missão a promoção da saúde pública e inclusão social por meio de ações de saneamento e saúde ambiental. No final de 2022, quando o Gabinete de Transição do governo Lula apresentou o relatório final, a Funasa mantinha sua atuação pouco expressiva, primordialmente nas regiões Norte e Nordeste, com ações voltadas especialmente para populações rurais de municípios com de até 50 mil habitantes ou consórcios municipais de até 150 mil habitantes.
Entre os convênios estão construção de banheiros em residências, assim como reforma de casas ainda erguidas em taipa, perfuração de poços e instalação de cisternas, além de aquisição de equipamentos como caminhões compactadores para coleta de lixo e outras ações sanitárias de controle da doença de chagas e combate ao Aedes aegypti. Além da estrutura central em Brasília, a Funasa com superintendências estaduais.
A mais recente definição orçamentária para Funasa foi de R$ 1,16 bilhão. O montante é distribuído nas seguintes áreas: Programa de Gestão e Manutenção do Poder Executivo (R$ 343.748.932 ); Cumprimento de sentenças judiciais (R$ 381.895.645 ); Saneamento Básico (R$ 356.575.315 ); Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Saúde (R$ 5.360.002); Gestão e Organização do SUS (R$ 22.713.411) e Vigilância em Saúde (R$ 51.839.702).
A Funasa permaneceu fora do quadro da administração federal entre os dias 24 de janeiro, data em que passou a ter efeito as cláusulas da MP 1.156, e 1º de junho.
Contudo, há algum tempo pesa sobre a Funasa um histórico de problemas relacionados à execução de contratos, denúncias de fraudes e superfaturamento em convênios. Em 2019, um relatório da Controladoria- Geral da União (CGU) apontou graves irregularidades praticadas pelo órgão na contratação de consultorias internacionais e contratos de patrocínio no ano de 2018.
As irregularidades vão desde a ausência de justificativas para a contratação de consultoria para a execução de atividades típicas da Administração até a contratação de consultores com vínculos direto de parentesco com servidores da própria Funasa. Somadas, as ações suspeitas geraram despesa de R$ 4,3 milhões.
Em 2020, o relatório de Auditoria Interna da Funasa sobre o exercício de 2019 também detectou irregulares. Desta vez foram detectadas fragilidades quanto ao pagamento de diárias e passagens e a execução de atividades dos consultores em viagens. De 136 viagens analisadas pela auditoria, em 42 deslocamentos, que totalizou montante superior a R$ 92 mil, verificou-se que as descrições que que constaram nos relatórios não possuam correlação o produto executado.
Há ainda casos mais antigos. Em 2012, documentos obtidos pelo jornal O Globo apontou a existência de desvio de recursos da Funasa e do Ministério da Saúde em nove dos 34 distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis).
As fraudes estavam concentradas no serviço de abastecimento de combustível de barcos e veículos, compra de alimentos e pagamento por horas de voo para o deslocamento de pacientes, médicos e insumos. De acordo com a publicação, apenas o contrato nacional de combustível, firmado entre a Funasa e a Ticket Serviços S/A, pagou, nos últimos 4 anos, R$ 142,5 milhões nos 26 estados e no Distrito Federal. O documento fora elaborado por fiscais e gestores da Saúde ao longo de 2011.
Expectativas silenciosas
Tanto o governo, por meio do Ministério da Gestão, responsável pela coordenação do grupo de trabalho, quanto o próprio Centrão tem evitado manifestações públicas sobre a matéria. Esta reportagem fez contato reiteradas vezes com a pasta, mas sem sucesso quanto ao andamento das discussões ou pontos já pacificados.
Por duas semanas, houve também repetidas tentativas de entrevista com o deputado Danilo Forte (União Brasil/CE), um dos principais mobilizadores da reativação do órgão na Câmara e provável nome a assumir a presidência da nova Funasa, tão logo seja finalizada a reestruturação. O parlamentar não conseguiu priorizar o assunto em sua agenda. Forte já esteve à frente da Funasa de 2007 a 2010.
Em 20 julho, o governo nomeou como presidente interino da Funasa o servidor federal Alexandre Ribeiro Motta, que atuou como diretor-geral da Subsecretaria de Planejamento, Orçamento e Administração do Ministério da Fazenda durante o governo Dilma Rousseff (PT). Entre 2011 e 2016, o servidor foi diretor-superintendente da Escola de Administração Fazendária (ESAF). Até a nomeação para coordenar a Comissão de Reestruturação da Funasa, permaneceu como diretor de Programas em Compras e Contratações Públicas, que é vinculado ao Ministério da Gestão.
Apesar de ter um presidente em exercício, não se sabe, até o momento, dentro da estrutura do governo, quem responde pelo órgão. Em último contato com o Ministério da Gestão, esta reportagem solicitou a descrição da agenda pública de Motta cumprida desde a sua nomeação.
Na última sexta-feira (19/8), por telefone, a assessoria da Gestão informou não dispor dos dados e alegou dificuldade interna para determinar quem poderia atender a solicitação. Segundo a assessoria, apesar de coordenar a comissão de trabalho, não acompanha o dia-a-dia institucional do presidente interino. As informações também não constam no sistema e-Agendas do governo federal. No site oficial, Motta sequer aparece com o presidente.