
Com a nova lei do Rol (Lei 14.454/2022), sancionada em setembro do ano passado, ficou estabelecido que o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) passou a servir apenas como referência básica de cobertura pelos planos de saúde. Com isso, o rol passou a ser exemplificativo. No entanto, após quase oito meses de sancionada, ainda existem entraves para a efetiva aplicação e fiscalização da norma, que aguarda regulamentação do governo federal — isto é, um decreto que detalhe como deve ser aplicada.
Enquanto isso não acontece, pacientes continuam tendo que recorrer à judicialização após a negativa de cobertura pelas operadoras de saúde. A ANS, por sua vez, não toma parte na fiscalização do cumprimento da lei.
De acordo com a norma, tratamentos, terapias e medicamentos prescritos por médicos ou dentistas que não estejam no rol da ANS devem ser cobertos e autorizados pelos planos de saúde desde que exista comprovação da eficácia científica; existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec); ou que estejam incorporadas por, no mínimo, um órgão de avaliação de tecnologias em saúde de renome internacional. No entanto, não há definição de quais órgãos podem ser utilizados como referência ou qual a qualidade dos estudos utilizados para comprovar a eficácia e segurança.
Fiscalização
Uma medida que garantiria a efetividade da aplicação da lei seria a fiscalização das operadoras de saúde por parte das autoridades responsáveis.
Por um lado, a ANS afirma que essa atribuição não foi delegada a ela na nova lei do Rol. “Não há previsão legal que dê à ANS competência para que a Agência fiscalize o § 13º da lei 14.454/2022”, disse a entidade em nota ao JOTA.
Já a coordenadora da comissão de saúde suplementar do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Ana Navarrete, afirma que existe um equívoco na interpretação da ANS sobre a nova lei do Rol, considerando que a lei de criação da ANS estabelece a competência de fiscalização dos planos.
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“Claro que a lei específica do rol não vai dizer que a ANS tem que fiscalizar, porque já existe uma outra lei, que é a lei que criou a ANS (Lei 9.961/2000), que no Artigo 4, dá competência para a Agência fiscalizar os planos de saúde em relação à cobertura”, explica ela.
Segundo Navarrete, a nova lei veio para deixar claro que o rol é uma referência mínima. “Não precisaria haver nesse texto uma especificação de que a ANS teria que fiscalizar, essa informação já está dada”, aponta ela.
Para a advogada Mérces Nunes, especialista em direito médico e da saúde, já que a lei não confere competência à ANS para regulamentar e fiscalizar essa matéria, é necessário ou que a lei seja alterada para dispor a respeito da competência da ANS para fiscalizar a sua aplicação, ou que a lei seja regulamentada nos termos do artigo 84, inciso IV da Constituição Federal, pelo presidente da República que tem competência privativa para expedir decretos e regulamentos para fiel execução das leis.
Operadoras de saúde
As entidades do setor de saúde suplementar enxergam a nova lei com receio. Segundo a União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde (Unidas), existe o risco de afetar a segurança financeira das operadoras por conta da cobertura de tratamentos não previstos no rol.
“O grande problema é a incerteza, a imprevisibilidade. Nós estamos em um cenário ruim, de déficit de R$ 12 bilhões no ano passado. As operadoras estão com uma dificuldade muito grande de ter liquidez e de fechar no superávit. Com essa lei você não sabe o que pode vir como cobertura ou como agravo de custos”, detalha Anderson Mendes, presidente da Unidas.
Em relação aos critérios para a aplicação da nova lei do Rol, Mendes cita que o item da lei que fala sobre as evidências científicas é o que gera maior dúvida, já que ele não menciona qual nível de evidência e que resultado é preciso para validar uma tecnologia e incorporá-la.
O superintendente médico da Abramge, Dr. Cassio Ide Alves, argumenta que um outro efeito da nova lei do rol é a perda da garantia de segurança clínica dos pacientes, já que tratamentos fora do rol não passarão pelo processo de Avaliação de Tecnologia em Saúde (ATS) feito pela ANS.
“Vejo um impacto importante na segurança clínica e na segurança social. São tecnologias que ainda não tem uma robustez clínica, não tem evidências marcantes, confiáveis, e acabam sendo prescritas. Ou seja, você abre mão de uma ciência que é utilizada no mundo inteiro, de avaliação de tecnologia em saúde, para permitir a cobertura de um tratamento”, pontua Alves.
Segundo o superintendente da Abramge, sem critérios específicos de quais devem ser as comprovações científicas válidas, tratamentos que não são consagrados acabam sendo prescritos e existem pessoas que se aproveitam dessa nova brecha para aplicar fraudes. “A gente percebeu que aumentaram os casos de fraude”, declara Alves.
Alves aponta ainda que um defeito da nova lei do Rol é não dizer objetivamente o que é essa evidência científica e plano terapêutico citados no § 13, assim como quais são as agências de incorporação de tecnologia de renome internacional que podem ser usadas como referência. “Tem que citar quais são. Por exemplo, o NICE (National Institute for Clinical Excellence), que é da Inglaterra e do País de Gales, é o de maior renome, mas também temos a agência do Canadá, a da França, da Escócia e do Japão. A lei poderia exemplificar”, conclui.
Efeitos da nova lei do Rol
A deputada estadual Andréa Werner (PSB-SP), presidente da comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) e uma das personalidades que se engajou pelo fim do rol taxativo, afirma que após a mudança na lei algumas operadoras já começaram a cumprir a nova regra e houve o atendimento das demandas. Porém, segundo ela, muitas operadoras não se sentem obrigadas a fazer valer a nova lei, o que resulta em judicialização.
De acordo com a advogada Mérces Nunes, diante da negativa de cobertura de tratamento fora do rol da ANS, o caminho é realmente a judicialização. “Desde que esteja comprovado que ao menos um dos requisitos estabelecidos pela Lei 14.454/2022 foi atendido, o paciente pode ingressar com ação judicial para pleitear a cobertura do tratamento que lhe foi negado”, explica.
Werner conta também ter percebido efeitos negativos para os pacientes após a sanção da lei, como o aumento de preço, a dificuldade para os usuários adentrarem a apólice e a rescisão unilateral de contratos por parte das operadoras.
“Nosso gabinete já recebeu 192 denúncias, nos últimos dias, de grandes operadoras que rescindiram contratos, unilateralmente, de pacientes em tratamento – casos de pessoas com deficiência ou não, e, inclusive, casos de crianças em tratamento oncológico”, revelou a deputada estadual. A cifra diz respeito ao período de 30 de abril a 22 de maio.