
Após novo cenário de desabastecimento e licitações desertas, o Ministério da Saúde deve conseguir manter estoque de imunoglobulina humana 5g no Sistema Único de Saúde (SUS) pelo menos até o primeiro semestre de 2021. Para viabilizar a entrega de produtos sem registro no Brasil, a pasta terá que desembolsar R$ 56,7 milhões além do planejado.
O medicamento é usado no tratamento de pacientes com imunodeficiências e outras doenças. No sistema público, faz parte do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF), ou seja, o ministério é responsável pela compra e distribuição de acordo com as solicitações feitas pelas secretarias estaduais.
Os imbróglios mais recentes envolvendo compras do insumo pela pasta se arrastam há dois anos. Em 2018, um contrato com o preço do medicamento acima do teto permitido, firmado com a Blau Farmacêutica, gerou uma representação no Tribunal de Contas da União (TCU). Como parte do desdobramento desse processo, o ministério realizou em 2019 um pregão com participação internacional.
A licitação gerou a assinatura de três contatos em 2020, sendo dois com a empresa chinesa Nanjing Pharmacare e um com a empresa sul-coreana SK Plasma para o fornecimento de 400 mil frascos do produto. A falta de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), porém, era um empecilho para a distribuição no SUS.
A agência já havia recusado um pedido de importação excepcional do medicamento em setembro de 2019. Em março deste ano, após pressionar os diretores, afirmando que os estoques de imunoglobulina no país estavam “zerados”, o ex-ministro Henrique Mandetta conseguiu a autorização. A Anvisa, por sua vez, deixou claro que a liberação não significava o reconhecimento de qualidade, segurança e eficácia do produto.
Depois disso, a empresa chinesa chegou a fornecer ao ministério 47.878 frascos de imunoglobulina humana 5g com valor unitário de R$ 698,32, mas paralisou a entrega em seguida. O motivo foi que o preço acordado no contrato seguinte, para fornecimento de mais 252.122 unidades a partir de abril, não contemplava custos adicionais relacionados à alta do dólar e dificuldades logísticas enfrentadas na pandemia da Covid-19.
Inicialmente, um pedido de alteração do valor feito pela Nanjing foi negado, mas novas tentativas de licitação falharam e a pasta se convenceu. Há pouco mais de dois meses, o secretário-executivo adjunto do Ministério da Saúde, Jorge Luiz Kormann — indicado à diretoria da Anvisa no dia 12 de novembro —, reconsiderou a decisão e autorizou o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato.
Em documento datado de 25 de setembro, ao qual o JOTA teve acesso, Kormann cita uma nota em que a área técnica da Secretária de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) manifesta preocupação em relação à demanda e ao estoque estratégico da pasta.
“O Ministério da Saúde não tem tido êxito na aquisição e disponibilização do medicamente via pregão e até mesmo emergencialmente. O cenário atual de abastecimento da rede SUS é de apenas 16,4% da demanda nacional em 2020”, diz o trecho.
À época, conforme relatado no despacho, um processo de compra emergencial de produto tinha a oferta do frasco pela Blau por R$ 1.046,70, um centavo a menos em relação ao valor fixado pela Câmara de Regulação de Preços de Medicamentos (CMED). O preço, no entanto, foi considerado muito superior ao proposto pela empresa chinesa.
“Considerando todas as informações de falta do medicamento na rede pública, por razões de interesse público e para que possamos prover o abastecimento do Sistema Único de Saúde desse medicamento escasso, restituo para continuidade”, concluiu o secretário-executivo adjunto.
O frasco da imunoglobulina chinesa foi fixado, então, em R$ 873,89. O valor do contrato passou de R$ 176 milhões para R$ 220,3 milhões, conforme decisão publicada na edição do Diário Oficial da União (DOU) do dia 1º de outubro. Na última semana, um novo lote do produto chegou ao centro de distribuição do Ministério da Saúde.
A empresa sul-coreana SK Plasma, que não chegou a fazer entregas, também conseguiu o reequilíbrio econômico-financeiro. No dia 25 de novembro, foi publicada no DOU a atualização do valor de R$ 69,8 milhões para R$ 82,2 milhões. Nesse caso, a unidade custará R$ 822,72.
Risco aos pacientes
No dia 30 de outubro, a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI), a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), o Grupo Brasileiro de Imunodeficiências (BRAGID) e associações de pacientes enviaram uma carta ao secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Hélio Angotti, cobrando explicações.
“Muitos pacientes estão há meses sem receber o medicamento que lhes é tão necessário, o que implica em aumento do uso de antibióticos por via oral ou com necessidade de internações para tratamento por via intravenosa. A informação que recebemos das secretarias estaduais de saúde é que há uma falta de fornecimento por parte do Ministério da Saúde. Diante desse cenário, colocamos aqui nossa preocupação, mas também nossa ansiedade por não estarmos cientes do que está ocorrendo e não termos alternativas no manejo dos pacientes, crianças e adultos, de todas as faixas etárias, principalmente durante o período de pandemia da Covid-19 na qual nos encontramos”, diz o texto.
A ASBAI chegou a criticar publicamente a compra e distribuição de imunoglobulina sem registro pelo ministério por considerar que o produto poderia representar risco à saúde dos pacientes.
“O ideal seria ter o registro, cumprindo todas as exigências da Anvisa. Ficamos inseguros, mas não tínhamos como recusar o produto diante da falta. Não soubemos de reações adversas graves”, afirmou a diretora adjunta científica da ASBAI, Ekaterini Goudouris.
Na visão da médica, a entrega da imunoglobulina sem registro é melhor do que o desabastecimento, mas o ministério precisa tratar o problema com mais transparência. Até o momento, a carta enviada pelas entidades não foi respondida pelo titular da SCTIE.
“Gera um problema de ansiedade, porque os pacientes sabem que dependem disso. Já passamos por um desabastecimento mundial há cerca de 15 anos. Vimos pacientes sendo internados, morrendo. Quem precisa da imunoglobulina para viver não tem outra opção”, afirmou.
O Ministério da Saúde foi procurado pela reportagem, mas não informou quando os produtos recebidos neste mês poderão ser distribuídos.
PMVG e licitações desertas
A pasta tem lidado com tentativas frustradas de licitações para a aquisição da imunoglobulina humana 5g. As farmacêuticas com registro na Anvisa alegam que o Preço Máximo de Venda ao Governo (PMVG), o teto estabelecido pela CMED, não compensa os custos para o fornecimento do insumo no Brasil.
Em audiência pública realizada no dia 12 de março no auditório do Ministério da Saúde, o diretor do Departamento de Logística (DLOG), Roberto Ferreira Dias, foi avisado por representantes de empresas interessadas sobre a possibilidade de debandada durante a pandemia devido à alta do dólar.
O ministério se preparava, na ocasião, para a aquisição de 575 mil frascos do produto com o objetivo de abastecer o SUS em 2021. O edital foi lançado em maio, mas não chegou a ser finalizado. Em outubro, houve uma nova tentativa de aquisição do mesmo quantitativo, mas a licitação foi deserta.