Secretária executiva da Comissão Nacional para Implementação da Convenção Quadro do Tabaco, Vera Luiza da Costa e Silva, em entrevista ao JOTA, defendeu a responsabilização da indústria de cigarro por danos provocados pelo produto ao meio ambiente. Uma das principais responsáveis pela inclusão na agenda da Conferência das Partes dessa discussão, Vera está convicta de que a nova abordagem trará reflexos importantes para a luta antitabagista.
O tema, embora considerado promissor, deve encontrar resistências. Nesta segunda-feira (5/2), durante o debate, foi necessário um esforço de convencimento para que o tema fosse de fato integrado à agenda. Mas há defensores de peso. Na cerimônia de abertura da COP-10, foram várias as referências sobre o impacto do tabagismo ao meio ambiente. Um dos que incluíram o tema no pronunciamento foi o diretor da Organização Pan-Americana de Saúde, Jarbas Barbosa.
Agora, aprovada a discussão, o próximo passo é definir a forma de atuação. “Não é algo ambicioso. Queremos colocar a locomotiva para andar”, disse. Isso significaria reunir evidências sobre o impacto do cigarro à saúde, ao meio ambiente e a interação desses dois fatores. E, a partir daí, afirma Vera, “ver como se pode responsabilizar a indústria por isso”.
Pedidos de reparação sobre danos provocados pelo cigarro à saúde não são novidade. Em 1998, indústrias do cigarro fizeram acordo para ressarcir 46 estados norte-americanos por gastos com tratamento de problemas de saúde provocados pelo cigarro. Em 2019, a Advocacia-Geral da União ingressou com uma ação pedindo ressarcimento de gastos que o Sistema Único de Saúde teve com tratamento de 26 doenças relacionadas ao tabagismo. A discussão no Brasil está em curso.
A ideia que começa a ser pensada é de se estender essa estratégia também para danos ambientais. A secretária executiva afirma que a indústria, diante dos estudos demonstrando o impacto negativo de cigarros tradicionais e eletrônicos, iniciou programas de responsabilidade corporativa. Ela questiona, contudo, o alcance dessas medidas e afirma que essa é uma estratégia para transferir a responsabilidade para o indivíduo e sociedade.
Para Vera, além da responsabilização, seria importante que filtros fossem retirados dos cigarros. Ela argumenta que os filtros em nada protegem o indivíduo, foram criados apenas para facilitar o fumo .
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Qual a origem da proposta?
O preâmbulo do tratado já cita a questão do impacto do tabaco no meio ambiente. O artigo 18 do documento refere-se ao tema e, ainda, à saúde dos trabalhadores da cadeia produtiva do tabaco. O artigo 17, por sua vez, fala sobre cultivos que substituam o tabaco. Países produtores sabiam, desde o início do século, que as medidas de combate ao tabagismo deveriam vir acompanhadas de alternativas para trabalhadores, diante da esperada queda de demanda pelo fumo. Era preciso ajudar essas famílias. Vemos que o consumo está de fato caindo. No Rio Grande do Sul, muitas famílias pararam de produzir. A indústria encontrou uma saída para ela, os dispositivos eletrônicos de fumar. Ela continua lucrando com a dependência à nicotina. Um dependente de nicotina, de vape ou de cigarro, é o mesmo. Não muda nada. Só muda a forma de que a nicotina é oferecida para o corpo.
Mas os programas de substituição de cultura não vingaram no Brasil.
De fato. Eles estão esquecidos em países produtores e não interessam aos países grandes consumidores. É muito semelhante ao fluxo da droga. Quem se lasca são os pequenos. Os países em desenvolvimento, os que se envolvem nesse tipo de cultivo. E quem paga pelo produto não paga o preço social. O cigarro com tabaco, acontece algo semelhante. Ao mesmo tempo, a agenda de meio ambiente vem se fortalecendo globalmente e o Brasil tem protagonismo. O país tem estruturas para lidar com crimes ambientais. Com a renovação da Conicq, o Ministério do Meio Ambiente passou a ter uma atuação forte. Dessa interação chegamos à conclusão de que seria um tema importante a se discutir. Somos um país produtor, enfrentamos a questão do agrotóxico, a questão do impacto sobre a terra, sobre o meio ambiente. Os filtros que são jogados. E, no caso dos dispositivos eletrônicos, as baterias, metais pesados e o impacto sobre o clima. Pensamos: essa agenda, inicialmente voltada para o fumicultor, pode se transformar numa agenda global, voltada para o lixo gerado pelo tabaco e pela poluição ambiental. E isso pode provocar não apenas países produtores, mas também os consumidores. Trazemos assim de volta para a agenda essa discussão do meio ambiente e, em paralelo, a discussão da substituição do cultivo do tabaco.
Não foi uma aprovação fácil.
Conseguimos praticamente um consenso, não houve objeção. Agora a gente vai discutir como é que a gente vai ter uma proposta. Ela não é uma proposta ambiciosa, ela coloca a locomotiva para andar. Ver o impacto do tabagismo e responsabilizar a indústria por isso. A indústria fica fazendo programas de responsabilidade social corporativa para dizer que eles estão cuidando do clima e dessa questão do meio ambiente. Na verdade, isso não é monitorado. Na prática, a indústria usa filtros para as pessoas começarem a fumar mais facilmente para diminuir a aspereza da fumaça. Para saúde, o filtro não faz diferença. E ele polui o ambiente. Diante disso tudo, a indústria não se responsabiliza. Ela faz campanhas de coleta de bituca na praia, transferindo a responsabilidade para o consumidor. A indústria tem que ser responsabilizada pelo produto que ela fabrica e pelo impacto no meio ambiente.
Criar regras para o lixo provocado, por exemplo?
É uma possibilidade. Outro ponto: proibir filtro no cigarro comum. Quem quiser fumar, fuma sem filtro. Porque o filtro não ajuda a saúde, não reduz risco, não reduz danos. E o filtro só serve para poluir o ambiente e para fazer as pessoas fumarem. Então, a gente está falando de um produto que mata um em cada dois consumidores regulares. E há um problema maior, porque há também o tabagismo passivo e o risco ao meio ambiente. E isso vale para os dispositivos eletrônicos de fumar. Eles causam danos aos fumantes, a fumaça que vai para o meio ambiente e o lixo gerado.
Como funcionaria essa responsabilização?
Há um artigo que trata sobre essa responsabilização. É por isso que alguns países estão hesitantes com esse ângulo do meio ambiente. Há em algumas delegações muita interferência da indústria do fumo, delegações que se tornam sensíveis aos apelos. Mas esse grupo, ao que parece, não estava preparado para a questão que apresentamos. Esse tema traz um novo balanço para discussão. A indústria estava numa situação relativamente confortável, com programas de responsabilidade. A ideia era dizer que a responsabilidade do descarte da bituca era da população, dos governos que não limpam.
Há uma movimentação para criar uma regulamentação para propaganda de DEFS nas redes sociais. Como ficará a discussão?
Países que inicialmente liberaram o uso, diante da epidemia do uso entre adolescentes, começaram a recuar. No Reino Unido, um em cada cinco adolescentes usa o DEF. No Canadá está acontecendo uma coisa igualzinha. Precisamos avançar aqui na COP. É um processo difícil, é um processo que requer o entendimento e o convencimento e também uma definição política por parte dos países para avançarem naquela área, mas é uma coisa que é necessária.
E no Brasil?
Pelo que a gente tem observado, o consumo no Brasil, apesar de a indústria dizer o contrário, aumentou pouquíssimo. A gente deve ter um milhão de usuários. Todas as sociedades médicas, todas as instituições de saúde são favoráveis a você manter a proibição da comercialização. A proibição da comercialização de dispositivos eletrônicos de fumar não é um projeto para deter o indivíduo. É para deter a indústria para fazer o marketing sobre o indivíduo. Porque o indivíduo que tem acesso, ou que compra no mercado, seja lá o que for, ele vai usar o dispositivo eletrônico para fumar. E isso não é proibido, não está proibido, e nem ninguém quer proibir o consumidor de usar o produto.
Seria preciso nas regras para redes sociais?
A gente tem que trabalhar com medidas de governo para reduzir essa utilização da mídia social para fazer promoção de produtos nos serviços de saúde, minimamente a gente tem que abordar essa questão na legislação brasileira. A gente tem resposta para tudo. A gente precisa de vontade política para isso.
A jornalista viajou para a COP-10 a convite da Campaign for Tobacco-Free Kids