Professor da Fundação Getúlio Vargas, o médico sanitarista Adriano Massuda afirma ser essencial garantir mais recursos para a saúde em 2024. O problema do orçamento para o setor, garante, está longe de estar resolvido. “O que tivemos esse ano foi um alívio”, disse. Para ele, a nova gestão terá de gastar energia para reconstrução das áreas técnicas e um olhar atento para os contratos. Em sua avaliação, as mudanças na última gestão deixaram a pasta mais vulnerável. “Pode-se dizer que se escancarou a porteira para a corrupção dentro do Ministério da Saúde. Isso vai exigir da nova gestão muita capacidade administrativa.”
O retrato traçado por Massuda é fruto de um profundo mergulho no setor, por mais de um mês. Ao lado dos ex-ministros da Saúde Arthur Chioro, Humberto Costa, José Gomes Temporão e Alexandre Padilha, além da ministra Nísia Trindade, o professor participou do grupo de transição de governo, período em que vários setores da saúde foram ouvidos para se traçar um panorama dos desafios do setor.
Na conclusão dos trabalhos, foi elaborado um relatório, cuja íntegra foi divulgada neste mês. Massuda foi o co-relator. Além de um diagnóstico, o documento serve de sinalizador dos pontos que estarão em análise pela nova gestão.
A ministra da Saúde, Nísia Trindade, pouco antes de tomar posse, deixou claro que o conteúdo do relatório seria considerado por ela e por sua equipe.
A seguir, trechos da entrevista de Massuda, concedida na semana passada ao JOTA.
O relatório aponta para uma série de problemas. Qual é o mais urgente?
A primeira coisa é deixar claro que houve um processo de desmonte da estrutura administrativa do Ministério da Saúde, uma destruição de uma administração que pode ser comparável ao 8 de janeiro. Houve desmonte das áreas técnicas, o desprezo pelas instâncias de gestão. E a parte administrativa faz parte disso. Contratos de serviços essenciais para aquisição de medicamentos, vacinas, não foram feitos ou renovados. Desde a gestão de José Gomes Temporão, o Ministério da Saúde passou a comprar medicamentos, para ganhar maior poder na negociação e reduzir também as demandas judiciais, sobretudo com produtos de alto custo. Isso trouxe grandes benefícios.
Um dos medicamentos para hepatites, por exemplo, o sofosbuvir, foi adquirido com um dos menores preços no mundo. Isso exigiu da Secretaria Executiva a tarefa de fazer grandes compras, algo que não fazia antes. Mas o que vimos é que, na gestão de Bolsonaro, houve uma mudança nas atribuições desta secretaria. Ela inchou, passou a abrigar a gestão de hospitais federais do Rio e questões de compras foram deixadas de lado. A eficiência dessa área, a de contratos de aquisição de medicamentos, vacinas, terá de ser reconstruída. Essa é uma área muito sensível, que precisa de grande cuidado, muita atenção por parte da gestão.
A que o senhor atribuiria esse desmonte?
Um componente ideológico forte. A construção do SUS precisa ter um Ministério da Saúde forte, que organize a implementação de políticas para buscar garantir a universalização do acesso e a integralidade do cuidado. No sistema descentralizado com municípios, o Ministério da Saúde tem o papel importante de ser o maestro dessa orquestra.
No governo de Michel Temer as coisas mudaram. O então ministro Ricardo Barros falou de maneira taxativa que esse SUS universal, integral, era um delírio dos sanitaristas, isso não se efetiva na prática. Já em 2016 ele falava sobre a necessidade de se encontrar um balanço entre o orçamento restrito, previsto do contexto de austeridade fiscal, com o que a população deveria receber. Em outras palavras, um pacote mínimo de serviços.
A gestão Bolsonaro piora ainda mais essa situação. Tem um componente ideológico, sem dúvida, que tenta reduzir o tamanho do SUS e o papel do Ministério da Saúde. Há também uma incompetência administrativa para entender a complexidade do sistema de saúde. Quando você não tem compromisso com o que você está cuidando, não busca fazer o melhor…
Os senhores afirmam haver também uma maior fragilidade do Denasus.
Houve uma desregulação do mercado privado e também um enfraquecimento das estruturas de controle social. As áreas de auditoria foram desestruturadas e essa fragilização na estrutura de controle foi informação do TCU, demonstrando que o sistema está mais vulnerável para contratos. Portanto, há a questão ideológica, a dimensão da capacidade administrativa, mas tem também a facilitação para realização de contratos bilionários sem o devido controle.
Não nos esqueçamos também das emendas parlamentares cujo uso escapava de controle. Pode-se dizer que se escancarou a porteira para a corrupção dentro do Ministério da Saúde. Isso vai exigir da nova gestão a capacidade administrativa para fazer o contrato que garanta a chegada do insumo. Mas exigirá também a reconstrução dessas instâncias de controle para fazer que o orçamento seja executado da melhor maneira possível.
É preciso fazer uma revisão dos contratos já firmados para identificar eventuais irregularidades?
Sim, é a recomendação. No relatório, mostramos o risco de que 10 milhões de vacinas percam o prazo de validade nas primeiras semanas de janeiro. Além da necessidade de descarte de outras 3 milhões de doses. Nos Distritos Sanitários Indígenas, mais da metade dos contratos listados pelo |Ministério da Saúde estão próximos de terminar ou já terminaram.
Muitos contratos não estão formalizados, há apenas o reconhecimento da dívida. Há algum risco de ruptura por falta de pagamento? É possível fazer renegociações?
Não houve uma conversa específica com os contratados, porque essa tarefa não foi atribuída ao grupo. Houve, sim, uma tentativa de conversa com a antiga gestão do Ministério da Saúde, que foi muito difícil, porque todas informações de contratos , estoques, no governo Bolsonaro estavam sob sigilo.
Isso dificultou o trabalho e fez com que fizéssemos um relatório a partir de informações fragmentadas. Mesmo assim, conseguimos identificar a existência de uma quantidade muito grande de insumos nos estoques com validade vencida ou a vencer, incluindo uma grande quantidade de vacinas contra Covid-19. Nas nossas conversas com setor produtivo, houve uma demonstração clara do desejo de retomada do diálogo e das políticas. Uma das preocupações era com a questão da regularidade dos pagamentos.
O relatório faz uma série de observações sobre a regulação do mercado privado e da atuação das agências. Mas as agências têm autonomia, como equacionar eventuais descompassos?
Houve nos últimos anos uma série de tentativas de desregulamentação, de maneira geral, para além das agências. Uma delas na incorporação de medicamentos. Bastaria a aprovação da Anvisa, sem necessidade de aval da Conitec.
Houve também tentativas de desregulamentação de questões ligadas a agrotóxicos. Com relação às agências, o Ministério da Saúde vai ter de ser muito assertivo sobre o que espera da regulação do setor. Quem formula a política nacional é o Ministério da Saúde. As agências regulam o mercado. Há uma grande diferença. Um tema importante, por exemplo, é o ressarcimento ao SUS. É preciso aumentar a capacidade de controle desse ressarcimento, garantir que o uso desses recursos desse ressarcimento seja feito de acordo com as necessidades. Vai ser preciso que o Ministério da Saúde atue de maneira a dizer claramente o que espera dessas agências, que oriente claramente sobre a necessidade de revisão dos instrumentos de regulação para garantir o interesse público. Existem instrumentos de gestão para isso.
Quem poderia fazer isso?
Isso atravessa o conjunto do Ministério e é crucial ter um trabalho integrado entre secretarias. A de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos, por exemplo, é responsável por definir o rol e incorporação de serviços e procedimentos a serem oferecidos. A Secretaria de Atenção Especializada, deve identificar o escoamento de ações que deveriam ser feitas pelos planos e estão sendo realizadas pelo SUS.
Na área de oncologia, terapia renal substitutiva, a gente vê que é comum pacientes que têm planos de saúde realizarem essas ações que são de alto custo pelo SUS.
O fomento de ação primária em saúde pela Secretaria de Atenção Primária seria outro ponto. Como orientar melhor as operadoras para cuidar das ações de promoção. A saúde suplementar é um sistema importante, que cobre mais de 50 milhões da população. Não dá para fechar os olhos. É importante construir uma ação mais articulada entre o SUS que atua com esse segmento da população que é coberta pelos planos de saúde.
Os senhores chamam também atenção para a questão de orçamento. O problema não está equacionado?
Está longe de ser equacionado. A EC trouxe um fôlego para 2023. Mas o fato é que a questão de recursos vai exigir uma ação concreta do governo federal. Se o acréscimo garantido para este ano não se estender, teremos uma crise. E estamos falando do essencial.
O cálculo é de que para fazer frente às necessidades, a saúde necessitaria receber o equivalente a 6% do PIB. Esse aumento, sabemos, não é possível fazer num curto espaço de tempo, em quatro anos. Daí a necessidade de termos um planejamento de médio prazo, de 10 anos, por exemplo. Sabemos que municípios estão em uma situação fiscal comprometida e governos estaduais também têm baixa capacidade. A resposta maior deve vir do governo federal.
É preciso ainda ter um olhar cuidadoso sobre o controle de doenças transmissíveis. Vimos o impacto da pandemia. O mundo está suscetível a outras doenças, outras pandemias como a da Covid. Essa experiência recente tem de servir de alerta.
Qual será a aplicação do relatório? A ministra vai se guiar por ele?
A ministra teve uma contribuição decisiva na elaboração do material. Na cerimônia de entrega do relatório, ela falou que ele serviria de base para sua gestão. Penso que é um material riquíssimo para iniciar um planejamento. Muitas das ações sugeridas já estão sendo implementadas.