Redação JOTA

"Senhor le General d´Armée Benoit Pugar,
Grand Chancelier de la Légion d´Honneur
Senhor Embaixador da França no Brasil, Monsieur Michel Miraillet
Autoridades presentes, meus colegas de Supremo Tribunal Federal, Senhor Presidente da Câmara dos Deputados, em nome de quem cumprimento cada qual dos parlamentares brasileiros
Familiares aqui presentes,
Amigos, senhoras e senhores,
Inicio meu agradecimento ao Governo de França na pessoa do Senhor Géneral d´Armée Benoit Pugar, Grand Chancelier de la Légion d´Honneur, por ter tão generosamente me agraciado com esta condecoração. Peço Monsieur le Grand Chancelier de la Légion d´Honneur, que transmita ao Senhor Presidente da República de França o meu muito obrigada pela condecoração com que me honra.
Também sou grata ao Senhor Embaixador da França no Brasil, Monsieur Michel Miraillet, por receber amigos brasileiros e franceses nesta ocasião, em tão afável hospitalidade.
Sinto-me especialmente honrada por ter sido acolhida nesta prestigiosa ordem pelo que é e pelo significado que transmite o que cada vez mais precisamos ter como fundamento e objetivo de nossos comportamentos pessoais e sociais.
Esta condecoração é símbolo de valores humanos que enaltecem o servir ao outro em benefício de todos. E que não se tome este servir, nesta ocasião, como retórica, por ter esse um sentido maior e mais densificado, como pensado e exposto por Napoleão Bonaparte ao constituir a legião em 20 de maio de 1802. E é o que ainda hoje está na base da legião de honra congregando pessoas com iguais compromissos.
Ao ler a carta noticiando a concessão da insígnia Senhor Embaixador, lembrei-me de algo que sequer sabia ter guardado na memória.
Jovem ainda reclamei, um dia, com a minha mãe porque eu era sempre procurada por uma pessoa que somente aparecia quando precisava de minha ajuda. Servida, ela desaparecia. Para voltar em outra necessidade na qual eu pudesse ajudar. Ao que minha mãe respondeu: “agradeça. Em todos os minutos da vida, e ainda que a gente não perceba, a gente está precisando da ajuda de alguém e podendo ajudar alguém. Agradeça quando for quem pode ajudar. É a situação mais fácil. Precisar do outro é a situação mais difícil”.
Não tenho um átimo de dúvida quanto à correção daquele ensinamento. Servir é mais fácil. Precisar do serviço mostra a fragilidade própria de cada um de nós. O que nos deixa no desconforto do que pode ser, no mínimo, uma incerteza (o outro pode ou não querer ajudar), e no máximo, uma dívida com o outro (quando ele ajuda).
Mas é nossa fragilidade – muito mais que nossa força – que nos mostra o outro e, assim, permite-nos ser solidário. Mais que tudo mostra o que é cada um de nós com o outro. E a necessidade de ser pelo outro.
Por isso a importância dos valores humanos pelos quais lutamos: eles nos põem em condições de sermos, se não menos frágeis em nossa humanidade, mais confortáveis na segurança que a solidariedade nos propicia.
Por isso não se descoloriram os valores da liberdade, da igualdade e da fraternidade, que se estamparam na Revolução Francesa, que se firmaram como nortes a serem seguidos e que persistem como sinais a serem observados para uma convivência digna e justa, em todo o mundo.
Na vida, perdem-se algumas experiências, perdem-se algumas lutas na busca de realização daqueles valores, mas a vida não se perde por só não se ter ganho o que almejado. Não se esmoreceu a luta pelas liberdades, por uma convivência com respeito à diferença, que marca a identidade única de cada pessoa, e pela igualdade que é inerente à humanidade. Outros ganham tantas vezes contra os nossos ideais e ideias! Mas, à maneira de meu conterrâneo Darcy Ribeiro, nem sempre a gente queria estar com quem venceu, menos ainda ser quem venceu se eram com ideias contrárias às liberdades, à igualdade e ao viver solidário.
Reitero: não são poucas as vezes nas quais não se vence a luta pelas liberdades, por mais direitos, por mais e melhor educação, por mais respeito ao pensar diverso. Mas esta legião constituída por Napoleão Bonaparte demonstra continuarem hígidos os princípios mais caros à humanidade e que traduzem a solidariedade a justificar a vida em sociedade e a informar as bases da experiência democrática. Estes valores postos como sinais a iluminar a caminhada traz-nos, de um lado, a certeza de que há outros trilhando a mesma vereda, que não há solidão humana total, que não vale desanimar. Há que se lembrar sempre que mesmo quando difícil o momento, há que seguir adiante sem perder o rumo. Dificuldades fazem parte. Viver nunca é facilidade.
Como me lembrou um dia papai, quando já estava com 97 anos, “a vida é boa, é dura e é curta, não importa quanto se viva. O importante é que ela seja bem vivida”.
Tenho sido presenteada na vida por inúmeras oportunidades de atuar, pessoal e profissionalmente, em espaços que são próprios para prestar serviços. Aliás, o que tenho sido, mais que sempre na vida, é uma servidora pública brasileira: como professora de direito da PUC/MINAS, ofício que é uma troca permanente na relação professor/aluno; na condição de advogada, parte também desempenhado como servidora pública, como procuradora do Estado de Minas Gerais, e nos últimos anos, pouco mais de uma década, como juíza integrante do Supremo Tribunal Federal.
Juntamente com os meus colegas de Tribunal e de todo o Poder Judiciário brasileiro, temos a responsabilidade de servir para entregar a jurisdição. Essa tarefa se cumpre a pensar no outro. E em tempos mais convulsionados e impulsionados por mudanças inéditas como o atual, o ofício é mais árduo: nem sempre há clareza de propósitos, embora estejam certas as demandas postas a decisão; não há certeza de rotas, conquanto sejam objetivas as leis e as precisões dos demandantes e, principalmente, sejam visíveis os sofrimentos dos necessitados.
Mais tensos ou intensos os momentos vividos, mais comprometidos, contudo, temos de estar com os direitos conquistados, com as liberdades garantidas, mais ainda nós, da área jurídica, que temos o dever profissional de estar ao lado do outro. Justiça é forma de saciar fomes. Porque é certo que há os que têm fome de justiça.
Fala-se muito em crises e dificuldades no mundo todo nos dias atuais.
Não sei se esses são mais difíceis que outros. Não vivi outros tempos. Meu tempo é agora.
Contam que José Bonifácio vivia em Paris nos anos revolucionários do final do séc. XVIII. E escreveu que não chegou a perceber que vivia uma mudança de mundo. Nós temos essa experiência diária – sensação permanente de mudança de mundo - como inerente a nossa vida. Nem melhor nem pior. É diferente o tempo de cada pessoa.
Nas mudanças que observamos, temos, no entanto, algo mais fácil do que os que vieram antes de nós. Gerações antes da minha conquistaram o que ainda se mantém: a centralidade da experiência dos homens exposta em princípios que identificam, na fraternidade, o compromisso de servir ao outro e de respeitar-lhe a dignidade. O outro que tem urgências próprias, carências peculiares, compreensão singular do mundo. E a certeza de que ele não é menos nem mais que qualquer outra pessoa; é uma individualidade a ser respeitada. Em tempo no qual não há qualquer certeza, a dignidade do ser humano com o qual preciso estar solidária e para o qual preciso atenta é uma certeza e tanto.
Por isso, Senhor Grand Chancelier de la Légion d´Honneur, esta alta distinção francesa que agora me honra receber há de ser considerada como um compromisso para manter-me no mesmo rumo, conduzida pela ideia de que estar com o outro e atuar pelo outro é parte da experiência humana e responsabilidade a ser preservada. E este é o exemplo que os franceses nos oferecem para ser seguido e que, em minha formação humana e profissional, tenho posto à frente de desvalores que nos aparecem, ainda que momentâneos.
Desde a meninice no Sacré-coeur, a França deu-me lições, os franceses, ensinamentos. Do direito e da justiça um tanto. Da música à literatura, da pintura ao ballet, tudo é sempre deslumbramento, ousadia e desafio. E é de uma dessas lições que colho o que venho atentando especialmente nos últimos tempos, em que, mais velha, fico a pensar nos compromissos que devo manter e quais novos tenho de assumir. Em 1957, ao receber o Premio Nobel de Literatura, Albert Camus registrava: “Cada geração se sente, sem dúvida, condenada a reformar o mundo. No entanto, a minha sabe que não o reformará. Mas a sua tarefa é talvez ainda maior. Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça. Herdeira de uma história corrupta onde se mesclam revoluções decaídas, tecnologias enlouquecidas, deuses mortos e ideologias esgotadas, onde poderes medíocres podem hoje a tudo destruir, mas não sabem mais convencer, onde a inteligência se rebaixou para servir ao ódio e à opressão, esta geração tem o débito, com ela mesma e com as gerações próximas, de restabelecer, a partir de suas próprias negações, um pouco daquilo que faz a dignidade de viver e de morrer. Ante um mundo ameaçado pela desintegração, onde nossos grandes inquisidores tentam estabelecer definitivamente o reinado da morte, ela sabe que deve, numa espécie de corrida maluca contra o relógio, restaurar entre as nações uma paz (que não é aquela da servidão), conciliar novamente o trabalho e a cultura, e recriar entre todos os homens uma Arca da Aliança. Não há garantias de que ela possa cumprir essa tarefa imensa, mas é certo de que, em qualquer lugar do mundo, ela já tem o desafio duplo da verdade e da liberdade”.
Não temos desafio pequeno. Mas não tive pais e mestres pequenos. Não tenho como querer seja a minha geração menor que as esperanças que moveram as que me antecederam.
Por isso, a legião que agora me acolhe tem o meu compromisso de persistir responsabilizando-me com os outros e pelos outros nas tarefas que assumir.
O gesto de cada ser humano – de protesto ou de apoio - pode parecer acanhado num mundo conturbado. Mas a ele se somam outros. Agora ou depois.
Por isso Monsieur le Grand Chancelier de la Légion d´Honneur, Monsieur L´Ambassadeur de la France au Brésil, senhoras e senhores, compartilhando esta honra que recebo e que compartilho com a minha família, com os meus amigos de várias gerações, com os meus colegas de jurisdição, agradeço uma vez mais pelo acolhimento na Légion d´Honneur.
Muito obrigada”.

Cármen Lúcia no 10º Encontro Nacional do Poder Judiciário

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JOTA

Honraria, criada por Napoleão Bonaparte em 1802, é a mais alta distinção concedida pela França

O discurso de Cármen Lúcia pelo recebimento da Legião de Honra

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