Silvana Batini

As eleições de outubro já ocupam a pauta do Supremo. Na última semana, dois julgamentos na Corte fixaram interpretação de leis eleitorais. É bom que essas incertezas sobre o processo eleitoral sejam superadas o quanto antes. Mas, para além da velocidade e o resultado explícito dessas decisões, é importante analisar o que se esconde atrás destas ações.
A legislação eleitoral brasileira é hoje um emaranhado de normas - algumas antigas, outras novíssimas-, cuja convivência harmônica desafia, muitas vezes, a lógica. A cada dois anos o tema da reforma política retorna. Mas, ao final, o que se produz são alterações pontuais das leis, via de regra para atender a interesses específicos da classe política que disputará o próximo pleito. As dificuldades interpretativas que resultam deste quadro são notórias, como mostraram os julgamentos da semana passada.
Estavam em jogo a ADPF 167 e a ADI 5525.
Na primeira, o Supremo decidiu que o TSE é o órgão competente para julgar Recurso contra Expedição de Diploma (RCED) relativo a eleições estaduais. RCED é uma medida prevista no Código Eleitoral e sempre provocou controvérsias (afinal, é recurso ou ação?) quanto ao rito a ser adotado. Em 2009, quando a ADPF 167 foi proposta, o RCED era utilizado para cassar diplomas por vários fundamentos: desde fraude na contagem dos votos, passando por fatores relativos à elegibilidade do candidato e especialmente por abuso de poder econômico ou político. E já naquela época a jurisprudência se sedimentara no sentido de dar competência ao TSE para julgamento do RCED. Ocorre que infrações como abuso de poder econômico também podiam – e ainda podem – ser objeto de outras duas ações eleitorais: a Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) e a Ação de Impugnação de Mandato Eletivo (AIME), para as quais a competência sempre foi e continua sendo do juízo de origem.
Em outras palavras, um candidato a deputado estadual, por exemplo, poderia responder por abuso de poder econômico em uma AIJE tramitando no TRE de seu estado e ao mesmo tempo e pelos mesmos fatos em um RCED que tramitava perante o TSE. Isto, obviamente, gerava um tumulto processual e uma insegurança jurídica enormes. Por este ângulo, a competência do TSE para julgar originariamente estas ações era de fato questionável e justificava a provocação ao Supremo.
Em 2013, a lei mudou e restringiu o objeto do RCED, hoje destinado exclusivamente a questões relativas a condições de elegibilidade e fatores de inelegibilidade. Não mais abuso de poder econômico. O problema de superposição de competências sobre um mesmo fato foi superado pelo próprio legislador. Assim, quando o Supremo, após 9 anos de tramitação, definiu na quarta-feira pela competência do TSE em RCEDs, julgou uma realidade totalmente diversa daquela que inspirou a ação.
Decidiu sobre algo que, de certa forma já estava resolvido. Choveu no molhado.
Na ADI 5525, o movimento foi diverso. Aqui, o Supremo agiu para limitar alterações legais produzidas há pouco mais de dois anos atrás, em 2015, cuja relevância ficou patente no julgamento da chapa Dilma/Temer em 2017.
Até então, se a justiça eleitoral cassasse prefeitos, governadores ou presidentes na primeira metade de seus mandatos, teria que realizar eleições diretas. Se fosse na segunda metade, eleições indiretas.
Em 2015 a lei passou a prever eleições indiretas apenas se a cassação se desse nos últimos seis meses do mandato. Esqueceu-se da regra constitucional específica que previa de forma análoga ao texto anterior, no caso de vacância do cargo de Presidente.
Por ocasião do julgamento da chapa Dilma/Temer, não se sabia ao certo que tipo de eleições teríamos, caso a chapa fosse cassada e esta dúvida era fonte de muita apreensão.
O julgamento da semana passada chegou tarde para apaziguar os ânimos e aclarar o ambiente do julgamento de Temer, mas definiu o destino dos eventuais municípios e estados, cujos eleitos venham a ser cassados daqui para frente: para eles serão eleições diretas, salvo se a cassação se der nos últimos seis meses de seus mandatos. Para a cassação de presidentes e senadores, valerá a Constituição.
Na mesma ADI o Supremo decidiu ser inconstitucional aguardar o trânsito em julgado de decisões de cassação de mandato ou indeferimento de registro. Neste ponto, aparentemente apenas referendou um posicionamento já assumido pelo TSE em passado recente. Na verdade, é a projeção desta decisão para um futuro próximo que preocupa: se Lula vier a ser candidato e tiver seu registro cassado ou indeferido pelo TSE, os efeitos desta decisão seriam imediatos e não dependeriam de um posicionamento do Supremo.
Os dois julgamentos parecem apontar para um ponto comum: as sucessivas alterações legislativas e a composição instável da justiça eleitoral são fatores que geram insegurança latente em nossos processos eleitorais. Emendas pontuais de normas esparsas geram incongruências que comprometem a segurança jurídica. Em um quadro de intensa jurisdicionalização das eleições, o problema se torna ainda mais complexo: nem a jurisprudência se pacifica, já que a composição das cortes também se altera com velocidade incomum, quando comparada a outros tribunais. A mudança de composição do TSE, em particular, é bastante rápida.
Um modelo estável de legislação eleitoral, que atenda a anseios de legitimidade e segurança parece utópico em um quadro de democracia ainda não amadurecida, como é o nosso.
O ativismo do Supremo em matéria eleitoral se alimenta disto. Para o bem e para o mal, sempre há um espaço de incerteza para o tribunal agir. Nesse cenário, porém, muitas vezes o tribunal acaba resolvendo a incerteza de ontem, sem conseguir realmente promover segurança para o futuro.
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*Este artigo expressa a opinião do autor, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV

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JOTA

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