Melina Rocha

O STF recentemente julgou dois casos envolvendo a constitucionalidade da tributação do software pelo ICMS (ADI 1945 e ADI 5659). Apesar de o julgamento ainda não ter finalizado, já se firmou o entendimento, por maioria dos votos, de que o ICMS não incide sobre o licenciamento de softwares e que estas operações deveriam ser caracterizadas como prestação de serviços sujeitas, portanto, ao ISS.
Tanto os debates levantados neste julgamento, quanto o seu resultado final, demonstram i) os limites da fragmentação das bases tributárias presente no sistema brasileiro, ii) a inadequação das materialidades e competências tributárias constitucionais dos entes federativos para tributar novos negócios jurídicos, principalmente os decorrentes da economia digital e, por fim, iii) a necessidade de adoção de um imposto sobre o consumo de base ampla, tal como os modelos internacionais de IVA – Imposto sobre o Valor Adicionado - para superar a diferenciação entre mercadorias/bens x serviços.
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Sem adentrar em todos os argumentos levantados nos votos e nos que foram decisivos para o julgamento destes casos específicos, este artigo tem por objetivo discutir, a partir de inconsistências presentes no  julgamento do licenciamento de software, os limites da fragmentação das bases e das competências tributárias do atual sistema constitucional. Além disso, o artigo procura demonstrar que somente a adoção de um IVA com base ampla será capaz de resolver estes problemas e debater qual o melhor modelo legal para superar discussões de caracterização e diferenciação entre bens x serviços.
<h3>Dificuldades de enquadramento do licenciamento e cessão de uso nas materialidades e competências tributárias constitucionais atuais</h3>
O julgamento das ADI 1945 e ADI 5659 mostrou todas as dificuldades para se enquadrar certos negócios jurídicos nas materialidades constitucionais do ICMS e ISS. A primeira premissa que deve ser considerada, e que parece não ter sido devidamente discutida no julgamento, é diferenciar o negócio jurídico (compra e venda, locação, licenciamento, direito de uso, prestação, etc.) do seu objeto (bem, mercadoria ou serviço). A incidência dos tributos -  seja do ICMS ou do ISS - se dá sobre o negócio jurídico conjugado a um determinado objeto e não sobre o objeto em si. Então, ao final, a questão é definir quais negócios jurídicos estão sujeitos a qual tributo.
A Constituição Federal atribuiu aos Estados a competência para tributar “operações relativas à circulação de mercadorias” pelo ICMS. Tanto a doutrina quanto a jurisprudência do próprio STF consolidaram o entendimento de que os termos “operações” e “circulação” a que se refere o art. 155 II devem ser interpretados como negócios jurídicos que ensejam transferência de propriedade, tal como a compra e venda. O objeto do negócio jurídico, conforme o dispositivo constitucional, deve ser uma mercadoria e o STF igualmente já definiu que mercadoria pode ser tanto um bem tangível quanto intangível. Ou seja, a competência do ICMS está delimitada a negócios jurídicos que transfiram a propriedade (ex. compra e venda) e que tenham por objeto mercadorias – tangíveis ou intangíveis. De sorte que, tendo em vista esta delimitação constitucional da competência dos Estados, não pode o ICMS incidir sobre outros negócios jurídicos que igualmente têm por objeto bens, tais como locação, cessão de uso, licenciamento, etc.
No caso do software, o negócio jurídico é geralmente um contrato de licenciamento ou cessão de direito de uso. No que tange ao objeto do negócio jurídico, claramente a natureza jurídica do software é de bem intangível, conforme art. 2º da Lei 9.609/98 e art. 3º da Lei 9.610/98<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Por se tratar, portanto, de negócios jurídicos com bens intangíveis, em que não há a transferência de propriedade, o STF parece ter acertado ao declarar a inconstitucionalidade da tributação pelo ICMS sobre operações que tenham por objeto software. O STF poderia ter optado por alargar o conceito de “operações” para abranger outros negócios jurídicos com bens, não somente aqueles que transferem a propriedade (tais como licenciamento, direito de uso e talvez a própria locação de bens), já que a Constituição parece não delimitar expressamente a competência tributária dos Estados neste sentido.
Se o ICMS não incide sobre negócios jurídicos que tenham por objeto softwares, igualmente difícil sustentar que o ISS deva incidir sobre estas transações. A Constituição Federal atribuiu aos Municípios a tributação dos “serviços de qualquer natureza” pelo ISS. Em princípio, e por dedução lógica, negócios jurídicos com bens, sejam tangíveis ou intangíveis, não poderiam ser caracterizados como prestações de serviços, a menos que haja uma regra residual ou presunção constitucional expressa ou que se faça uma interpretação ampla, que se aproxime à analogia, da expressão “serviços de qualquer natureza”, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-stf-e-a-tributacao-da-licenca-de-software-16112020">conforme já apontado em artigo aqui publicado.</a>
Entretanto, a Constituição Federal não prevê expressamente nenhuma regra residual de tributação sobre o consumo no sentido de atribuir aos Municípios a competência para tributar negócios jurídicos com bens que não sejam sujeitos ao ICMS. A regra residual do art. 156 III diz respeito somente aos serviços não sujeitos ao ICMS, mas não a outras operações com bens (locação, licenciamento, cessão de uso, etc.). Deste modo, não existe no ordenamento jurídico brasileiro, i) nenhuma regra constitucional expressa que estabeleça competência residual para que o ISS incida sobre outros negócios jurídicos que não estão dentro da materialidade do ICMS e ii) nenhuma regra universal de tributação sobre o consumo, no sentido de que sempre deve haver um tributo sobre operações com bens ou serviços, seja o ICMS ou o ISS.
Obviamente que a Constituição poderia ter criado expressamente uma regra residual  ou uma presunção de que certos negócios jurídicos com bens devem ser equiparados a prestação de serviços, tal como no caso do IVA Europeu, discutido mais abaixo. Não há, entretanto, qualquer regra deste tipo no ordenamento jurídico brasileiro.
Importante também enfatizar que uma coisa é atribuir competência residual ao ISS a outros negócios jurídicos com bens (tal como o IVA europeu); outra, bem diferente, é conceituar serviços (objeto) de forma residual, como tudo que não seja bem (o que considera somente o objeto e não o negócio jurídico em si). Tendo em vista a dificuldade que o STF tem tido para conceituar serviços (cuja definição tem variado entre “obrigação de fazer” a “oferecimento de utilidades”, nos casos mais recentes), se poderia até considerar que a definição de serviços (objeto) possa ser residual ao conceito de bens (no sentido de que sempre que “algo” não for um bem tangível ou intangível, será um serviço). Mas isso não significa, repita-se, atribuir competência residual ao ISS sobre operações com bens que não transferem a propriedade, tendo em vista que neste caso o objeto da operação é um bem (e não “algo” que poderia ser definido como serviço por não se enquadrar na definição de bem).
Desta forma, se, por um lado, a Constituição Federal delimitou a competência do ICMS a negócios jurídicos em que haja a transferência da titularidade jurídica de bens e, por outro lado, atribuiu a competência aos Municípios para tributar prestações de serviço pelo ISS; parece-nos que a Constituição não definiu expressamente a competência para tributar negócios jurídicos com bens que não estejam sujeitos ao ICMS, tais como é o caso da locação, licenciamento, cessão de direito. Trata-se de uma opção (ou talvez esquecimento?) do legislador constituinte e, portanto, de uma lacuna constitucional. Para este tipo de situação a própria Constituição Federal prevê a competência residual da União no art. 154 para instituir tributos sobre materialidades não previstas na Constituição e somente através dela estes negócios jurídicos poderiam ser eventualmente tributados.
Por fim, igualmente questionável o entendimento decisivo do STF de que a Lei Complementar 116/03, ao prever a tributação do software na lista de serviços tributáveis pelo ISS, exerceu a atribuição constitucional de dispor sobre conflitos de competência entre os entes, conforme regra do art. 146, I. Entretanto, no caso de negócios jurídicos com software, não há competência de nenhum dos entes nem muito menos conflito, tendo em vista que, conforme visto acima, Estados tributam negócios jurídicos que transferem a propriedade de uma mercadoria e Municípios tributam serviços. O mesmo entendimento se aplica à locação de bens, conforme súmula 31 do STF, em que não há a previsão de competência tributária a nenhum dos entes. A Lei Complementar, neste caso, não poderia resolver conflito negativo de competência (casos em que nenhum dos entes tem poder de tributar), pois neste caso estará na verdade criando competência tributária a favor de um ou outro ente, e esta é uma prerrogativa exclusivamente constitucional.
<h3>Qual o melhor modelo para tributar negócios jurídicos da economia digital? Somente o IVA poderá tributar de forma ampla o consumo</h3>
Conforme exposto acima, nos julgamentos envolvendo a tributação do licenciamento do software, o STF parece ter acatado, de forma questionável, a tese de que a Lei Complementar 116/03 teria a prerrogativa de definir a tributação do licenciamento do software pelo ISS. Estes precedentes confirmam, portanto, i) o esgotamento total da fragmentação das bases tributárias hoje presente no sistema tributário brasileiro, ii) os limites das atuais competências e materialidades para tributar novos negócios, especialmente aqueles surgidos com a digitalização da economia e iii) a necessidade de uma reforma tributária que adote um IVA no Brasil. Somente um IVA com base ampla, mesma alíquota para operações com bens e serviços e regras de local e momento de ocorrência do fato gerador idênticas será capaz de acabar e ultrapassar discussões sobre tipo de negócio e natureza jurídica do objeto. Um IVA amplo tributa todo e qualquer negócio jurídico que tenha por objeto bens, sejam tangíveis ou intangíveis, e serviços.
Interessante notar que o Min. Dias Toffoli, na apresentação oral do seu voto vencedor nas ADIs do software, mencionou as regras do IVA Europeu para justificar uma tributação sobre o consumo ampla e a incidência residual do ISS a outras operações com bens. No entanto, esta comparação é equivocada e tal tributação residual não se aplica ao ordenamento brasileiro. <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/politicas-tributarias/analise-e-proposta-do-fato-gerador-do-ibs-na-reforma-tributaria-do-brasil-15052020">Conforme artigo aqui publicado</a>, o modelo de IVA da União Europeia considera operação com bens somente aquelas em que a propriedade é transferida, enquanto todos os demais tipos de operações com bens (ex. locação, arrendamento, cessão de direitos, etc.) são equiparados a serviços. Importante ressaltar que esta tributação residual e equiparação a serviços é feita de maneira expressa pela diretiva europeia, o que não ocorre no Brasil.
Cabe ainda mencionar que esta tributação residual, que tem por consequência uma equiparação de certas operações com bens a serviços, foi uma escolha de política tributária da União Europeia e não é uma característica intrínseca ou necessária aos regimes de tributação de IVA, tanto que muitos outros países com IVA - Canadá, Nova Zelândia e Índia - não adotam tal equiparação. Nestes países, operações com bens intangíveis, por exemplo, são consideradas operações com bens e não serviços para fins de aplicação das regras do IVA.
Por fim, importante ressaltar que o enquadramento de todas as transações típicas da digitalização da economia no conceito de serviços tem trazido inúmeras discussões no âmbito na União Europeia, que teve que criar a categoria de “serviços fornecidos eletronicamente” para tentar diferenciar as regras aplicáveis a estas transações daquelas dos demais serviços. Por esta razão, especialistas<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> tem considerado tal equiparação como artificial e ultrapassada e propõem inclusive modificá-la no sentido de  considerar estas transações como “fornecimento de intangíveis” ao invés de serviços, nos moldes de outros modelos de IVA no mundo.
O IVA a ser adotado em uma eventual reforma tributária deverá levar em consideração todas estas discussões, sejam as decorrentes do atual modelo brasileiro, sejam aquelas presentes nos países que já adotam IVA, para que o novo modelo tenha uma base de incidência realmente abrangente e não crie novas discussões envolvendo diferenciação entre bens e serviços.
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https://www.youtube.com/watch?v=TsrYNCIbLGs&amp;feature=emb_title
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O art. 2º da Lei 9.609/98 define que “o regime de proteção à propriedade intelectual de programa de computador é o conferido às obras literárias pela legislação de direitos autorais” e o art. 3º da Lei 9.610/98, por sua vez, define que “os direitos autorais reputam-se, para os efeitos legais, bens móveis”.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Neste sentido, ver Lamensch, Marie. European Value Added Tax in Digital Era: a Critical Analysis and Proposals for Reform. IBFD Doctoral Series, Volume 36, 2014.

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JOTA

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