Melina Rocha

Eduardo Fleury

Com a aprovação da reforma do imposto de renda, se anuncia que a Câmara retomará a discussão do projeto da CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) apresentado em julho de 2020 pelo governo federal. Ocorre que, paralelamente, o Senado já está com a discussão da PEC 110/19, que propõe uma reforma mais ampla da tributação sobre o consumo, bem avançada. O relator da PEC 110/19, senador Roberto Rocha, já anunciou que vai apresentar em breve um novo substitutivo propondo um sistema de IVA Dual, com a criação de dois IVAs (Imposto sobre Valor Adicionado) separados: um IVA Federal e um IVA compartilhado entre Estados e Municípios.
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A CBS foi apresentada como um IVA Federal. A exposição de motivos do PL 3.887/20 repete em dez ocasiões que a CBS é um tributo sobre o valor adicionado. A apresentação feita pela equipe do governo federal, no dia em que o projeto foi apresentado, igualmente ressaltou que a CBS é um tributo sobre o valor adicionado, inclusive mencionando que seria compatível com as PECs 45/19 e 110/19.
De acordo com os modelos internacionais, IVA tem como fato gerador operações, transações, fornecimentos de bens e serviços. O modelo de IVA alia este fato gerador à técnica da não-cumulatividade, o que permite o creditamento do IVA pago em cada operação, de modo a desonerar a cadeia produtiva e para que o ônus econômico recaia sobre o consumidor final. O fato gerador “operações” e a não-cumulatividade na cadeia são as características fundamentais de um IVA.
Assim, para que a CBS seja realmente um IVA Federal, deve i) incidir sobre operações com bens e prestações de serviços e ii) permitir o creditamento da CBS paga ao longo da cadeia. Entretanto, o art. 195, I, “b” da CF/88, que dá fundamento constitucional para a CBS, somente atribuiu competência para a União criar contribuições sobre receita ou faturamento. Não nos parece, portanto, que o art. 195 tenha dado à União competência para criar uma contribuição sobre o valor adicionado.
Ressalta-se que a competência constitucional para tributar “operações com bens” e “prestações de serviços” é exclusiva dos Estados e dos Municípios, através do ICMS e do ISS respectivamente. A União igualmente não poderia criar uma contribuição sobre o valor adicionado com base na competência residual prevista no art. 195 § 4º, já que tal competência, ao remeter ao art. 154, I, exige lei complementar e proíbe a instituição de contribuições que tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados na Constituição. A CBS, portanto, para ser constitucional, só pode ter como fato gerador a receita ou o faturamento e, sendo assim, não pode ser um verdadeiro tributo sobre o valor adicionado.
Mesmo com esta incompatibilidade com a Constituição, a natureza de um tributo sobre operações está presente em todo o PL 3.887/20, a começar pelo artigo 1º, que prevê expressamente que “A CBS incide sobre as operações com bens e serviços”. Mesmo que este dispositivo específico seja excluído, outros artigos do PL igualmente confirmam que a CBS é um tributo sobre operações e não sobre receitas: o creditamento ocorre em relação ao valor destacado na nota fiscal emitida em decorrência da operação de aquisição de bens e serviços (art. 9º)  , o valor da CBS incidente sobre a operação será destacado em documento fiscal (art. 17º), as plataformas são responsáveis pela CBS incidente sobre a operação realizada por seu intermédio (art. 5º), a multa não dispensa a cobrança da CBS incidente sobre a operação (art. 84).  Está claro pela leitura do PL que todo o modelo de incidência e apuração da CBS é típico de um tributo sobre operações, nos moldes de IVA, e não sobre receitas.
Para tentar enquadrar a CBS à materialidade hoje prevista no art. 195 da CF/88, o PL 3.887/20 definiu como fato gerador e base de cálculo a “receita bruta auferida em cada operação” (e não a operação em si). Assim, conforme os apoiadores do PL, a CBS tributa receita e não operações e, portanto, seria constitucional. Defendem que a constituição trouxe um conceito aberto de “receita” e “faturamento” e que, por isso, a União poderia perfeitamente restringir esta competência, limitando e definindo estes conceitos como bem entendesse, inclusive para tributar somente a receita de operações com bens e serviços.
No entanto, tratar desta forma a delimitação das competências constitucionais equivaleria a ignorá-las. O Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou afirmando que não é razoável “...interpretar a referência às bases econômicas como meras sugestões de tributação, porquanto não cabe à Constituição sugerir, mas outorgar competências e traçar os seus limites”<a href="applewebdata://E8826837-DBFB-4E5D-91C9-C3D72C167C6D#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Neste mesmo RE a Suprema Corte reafirmou que o Texto constitucional “não permite a instituição de imposto novo sobre fato gerador e base de cálculo relativo aos impostos já outorgados a cada ente político”.
Assim, fica claro que a pretensão de tributar “receitas de operações” é uma mera tentativa retórica de se adequar à competência constitucional e esconder que a CBS é, na verdade, um tributo sobre valor adicionado gerado nas operações e, portanto, incompatível com a competência dada pelo art. 195, I, b.
Tributos que incidem sobre operações, tais como os modelos internacionais de IVA e o ICMS, são considerados circulatórios, em outras palavras, visam tributar o valor agregado nas diversas etapas do processo produtivo culminando com a entrega do bem ou serviço ao consumidor, o verdadeiro contribuinte do imposto.
A diferença entre um tributo sobre receitas e um tributo sobre operações está longe de ser um mero preciosismo jurídico. Neste sentido, Marco Aurélio Greco, ao analisar o modelo da PIS/COFINS não-cumulativa e as diferenciando de tributos sobre operações, afirma que, para fins de definir a respectiva incidência das contribuições, “relevantes são a receita e/ou o faturamento, eventos ligados à pessoa, e não às coisas objeto de negociação, nem às operações em si. De fato, operação é negócio jurídico que se reporta à coisa, enquanto faturamento/receita diz respeito às pessoas"<a href="applewebdata://E8826837-DBFB-4E5D-91C9-C3D72C167C6D#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Para começar, receita diz respeito à pessoa jurídica, e não a um negócio jurídico com duas partes, tal como operações com bens ou prestações de serviços. Em um tributo sobre o valor adicionado, o fato gerador depende da ocorrência da operação ou da prestação, ou seja, de um negócio jurídico que tem por objeto bens ou serviços. Por isso que tributos sobre o valor adicionado têm por pressuposto uma cadeia econômica, com um encadeamento de negócios jurídicos que permite a concretização da não-cumulatividade através da incidência, creditamento e apuração do IVA a cada operação.
Tributos sobre receita são diretos, ou seja, o fato gerador incide sobre um fato - a receita - que só pode ser auferida pela pessoa jurídica. A mesma pessoa que realiza o fato gerador é a pessoa que juridicamente paga e recolhe o tributo, por isso é um tributo direto. Eventual repercussão do valor do tributo direto é meramente econômica e não jurídica. Já em IVAs incidentes sobre operações, a repercussão é também jurídica: o contribuinte de fato (o adquirente de bens ou serviços) é aquele que efetivamente pagará o tributo destacado em documento fiscal em cada operação. O fornecedor somente é responsável em coletar o tributo incidente em cada operação e recolher o valor aos cofres públicos, mas não é ele quem está efetivamente pagando o tributo do ponto de vista jurídico.
O resultado prático disso são as diversas restrições ao crédito previstas nos tributos sobre operações em função do não pagamento do imposto por parte do fornecedor. Vários regulamentos do ICMS prevêem que o crédito seja vedado em caso de empresa declarada inapta mesmo após o fornecimento, ou ainda que o crédito depende do recolhimento do imposto via guia especial. No caso dos tributos sobre receita, a repercussão jurídica da cobrança se esgota na empresa obrigada a fazer o pagamento.
Repita-se que, do ponto de vista econômico, tributos diretos igualmente podem ser repassados no preço ao adquirente, mas, do ponto de vista jurídico, a pessoa jurídica que aufere receita é quem paga o tributo (não o adquirente de bens ou serviços, como no IVA).
O atual modelo de PIS/COFINS não cumulativo, que se fundamenta no art. 195, I, “b” da CF, não incide nem é calculado sobre operações, tanto que a apuração é feita por meio do modelo “base contra base”. Importante lembrar que o denominado PIS/COFINS não-cumulativo estabelece que o tributo será determinado pela aplicação da alíquota sobre as receitas. Isto é, o valor devido é calculado com base na receita e não no valor das operações. A mesma legislação permite descontos de alguns créditos que são totalmente desvinculados do valor recolhido na etapa anterior. Fornecedores tributados por regimes distintos (Lucro Presumido e Simples) possibilitam o cálculo do crédito independentemente do valor de PIS/COFINS pago por eles. O legislador cuidou para que a repercussão jurídica do tributo ficasse exclusivamente na Pessoa Jurídica que auferiu a receita.
Além disso, duas outras diferenças nos parecem importantes. A responsabilização de terceiros, como por exemplos as plataformas, não pode ser feita da mesma forma em tributos sobre receita e em tributos sobre operações. No caso de tributos sobre receita, uma plataforma não pode ser responsável pelo pagamento de tributos por operações realizadas por seu intermédio, já que ela não tem qualquer vinculação com o fato gerador de auferir receita, que é próprio da pessoa jurídica que efetivamente realiza a transação. Já em tributos sobre operações, a plataforma participa diretamente do negócio jurídico ocorrido como intermediária, daí porque a sua responsabilização é possível.
Por fim, a importação é uma outra materialidade que se enquadra e se submetem perfeitamente em sistemas de IVAs. Já nos tributos sobre receita, a materialidade importação não é compatível e deve seguir um regime separado, tanto que atualmente a CBS Importação tem por fundamento constitucional o art. 195, IV, e não o art. 195, I, “b”.
É possível e desejável que a CBS seja um IVA federal, mas para que isso aconteça é necessário que se inclua no art. 195 da CF/88 a materialidade “operações com bens e prestações de serviços” para que a União passe a ter competência para criar contribuição sobre o valor adicionado. Somente assim a CBS poderá ser constitucional e um verdadeiro IVA federal compatível com um IBS subnacional dentro de um sistema de IVA Dual.
A PEC 110/19 é assim a oportunidade ideal para “constitucionalizar” a CBS e para alinhar as principais regras (fato gerador, regra da não cumulatividade, apuração, etc) dos IVAs Federal e Subnacional, de modo que, para o contribuinte, os dois tributos sejam o mais próximo possível. Entretanto, a PEC deve ser necessariamente aprovada antes da CBS, para não se repetir o mesmo erro da Lei nº 9.718/98 e da EC 20/98. Na época, a Lei nº 9.718/98 previu a incidência da PIS/COFINS sobre o total das receitas auferidas pela pessoa jurídica, enquanto a redação do art. 195, I, “b” à época somente previa a competência para tributar o faturamento. Mesmo que, somente após alguns dias, a EC 20/98 tenha incluído a base “receita” no art. 195, I, “b”, o STF decidiu que “não existe constitucionalidade superveniente”, ou seja, mesmo sendo aprovada logo em seguida, a EC 20/98 não poderia dar base constitucional a uma lei promulgada anteriormente.
Mesmo que não se concorde com os argumentos aqui levantados e ainda se defenda a constitucionalidade da CBS, não se pode negar que o assunto criará litígio e será inevitavelmente levado ao STF. Toda esta discussão pode perfeitamente ser evitada com a inclusão da materialidade “operações com bens e serviços” na Constituição pela PEC 110/19. Após a aprovação da PEC, a CBS pode ser aprovada logo em seguida, com pouquíssimos ajustes no PL 3.887/20. Este é o único caminho possível para que a CBS seja um verdadeiro IVA Federal, tal como parece ter sido a vontade de seus formuladores desde o início.
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<a href="applewebdata://E8826837-DBFB-4E5D-91C9-C3D72C167C6D#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> RE 559.937/RS de 20/03/2013
<a href="applewebdata://E8826837-DBFB-4E5D-91C9-C3D72C167C6D#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> GRECO, Marco Aurélio. Substituição Tributária (antecipação do fato gerador), 2. Ed, Malheiros, São Paulo, p. 191.

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JOTA

O único caminho possível para que a CBS seja um verdadeiro IVA Federal

A PEC 110/2019 e a necessária constitucionalização da CBS

O único caminho possível para que a CBS seja um verdadeiro IVA Federal