Pedro Gordilho

Orfeu, poeta e músico tracio, que dançou o carnaval brasileiro pela mão de Marcel Camus e viveu uma experiência brasileira com o sobrenome bem brasílico de Orfeu da Conceição. Ele foi um semi-Deus, filho de Apolo e da ninfa Caliope. Com seus cantos fascinava os animais, as plantas e os grandes rochedos. Ele participou da expedição dos argonautas e quando regressou a Tracia casou com a belíssima ninfa Eurídice. Perdeu seu grande amor e foi reclamá-la perante o rei dos infernos, o reino da morte, para trazê-la de volta à vida ao lograr enternecer o senhor do Hadês.
Eurídice lhe foi restituída, mas sob a condição de que Orfeu não procuraria ver-lhe o rosto senão depois de ter alcançado a Terra.
Num momento em que ia alcançar as regiões da luz Orfeu cedeu à sua grande paixão, voltou-se, e viu sua mulher ser novamente arrebatada. Ele não cumpriu a exigência feita pelas Deusas das trevas, perdeu-a de vez depois de ter vivido a fascinante experiência mágica de tê-la reencontrado.
Orfeu jamais pode consolar-se dessa desgraça. Daí em diante não teve olhos para nenhuma outra mulher. Oferecidas, as Bacantes não aceitaram o desinteresse de Orfeu, magoado pela perda da única mulher que amou verdadeiramente. Diz a lenda que as Bacantes despedaçaram-no nas margens do Hebro, sendo seus membros levados pelas águas do rio, alcançando o corpo as costas de Lesbos, onde foi sepultado.
Orfeu personifica a música e o amor. Com sua música, seus cantos, fascinava o mundo à sua volta. O seu amor é um exemplo que a humanidade, através dos seus escultores, pintores, poetas, buscou retratar e continua retratando até os dias que correm. Os pintores não resistiram à força da lenda que a história preservou. Poussin pintou Eurídice mordida pela serpente (Museu do Louvre). Corot pintou Orfeu com a lira na mão direita e com a esquerda levando Eurídice através de uma paisagem toda banhada por misteriosos vapores. Rubens, Orfeu nos infernos (Madri). Breughel, Tintoreto e P. Fris e muitos outros pintaram o mesmo motivo. Gustavo Moreau pintou Rapariga recolhendo a cabeça de Orfeu e a sua lira e Delacroix pintou, num dos hemiciclos da Biblioteca da Assembléia Nacional, em Paris, Orfeu levando a civilização aos povos bárbaros e ensinando-lhes a arte da paz e, numa das cúpulas da Biblioteca do Palácio de Luxemburgo, o pintor dramático produziu Orfeu ditando a Hesíodo as tradições mitológicas da Grécia.
Foi na música que lenda produziu mais sucesso, sobretudo no famoso drama lírico em três atos, libreto italiano de Calzabigi, com música de Gluck, representado na opera de Paris em 1774. Retocada, para apresentação francesa, a partitura constituiu uma incomparável obra prima de comoção, de patético e também de horror, mas sobretudo de encantadora poesia. O primeiro ato, que representa a cerimônia dos funerais de Eurídice, faz ouvir as doloridas lamentações de Orfeu no meio de um coro profundamente melancólico das mulheres. Logo que elas partem, Orfeu exprime a sua dor em acentos lancinantes. Numa deliciosa arieta que se segue, o amor aparece a incutir-lhe esperança. No segundo ato, Orfeu quer atravessar os infernos para ir procurar Eurídice. Com a lira na mão, espera, usando os seus cantos, comover as divindades do mundo das trevas à sua passagem. Ao côro furioso dos demônios responde com suplicas ardentes: “Deixai-vos enternecer pelas minhas lágrimas!”.
Toda esta cena grandiosa é, ao mesmo tempo, marcada pelo horror, sem prejuízo, no entanto, da beleza e da poesia. O contraste é frisante com o do terceiro ato, que retrata o cenário dos Campos Elíseos. Nele, a decoração, os cantos e as danças, tudo é luz, tudo é prazer. Orfeu encontrou Eurídice toma-a pela mão, leva-a mas sem olhar para ela, buscando obedecer a vontade divina, pois que, se a fitasse, haveria de perdê-la de novo, e, então, definitivamente.
Mas Eurídice, que desconhece esta condição marcada pela crueldade, suplica-lhe que se volte para ela, quer vê-lo, e por fim recusa-se a acompanhá-lo. O semi-Deus Orfeu, ansioso, desolado, perdido de amor, não podendo lutar mais volta-se finalmente. Apenas o seu olhar encontra o dela, ao ver sua amada cair morta a seus pés. É a partir daí que ele canta a ária contemplando o tom dilacerante: “Perdi a minha Eurídice, nada iguala a minha infelicidade!”.
Marcel Camus produziu, nos anos sessenta, o belíssimo filme franco-brasileiro Orfeu do Carnaval, retratando a lenda adaptada ao cenário brasileiro sob sua ótica, tendo recebido numerosos prêmios.
E o poeta Vinícius de Moraes escreveu o musical brilhante reunindo, para a grande produção, cenários de Oscar Niemeyer e música de Antonio Carlos Jobim na peça apresentada no Municipal do Rio de Janeiro, em setembro de 1956, Orfeu da Conceição.
Jean Cocteau, em seu filme O Testamento de Orfeu, produz uma das obras primas da cinematografia de todos os tempos: fora do tempo e do real, retrata as experiências de um poeta, seu julgamento, sua assunção.
MONÓLOGO DE ORFEU
Mulher mais adorada!
Vinicius de Moraes
Agora não estás, deixa que rompa 
O meu peito em soluços! Te enrustiste 
Em minha vida; e cada hora que passa 
É mais por que te amar; a hora derrama 
O seu óleo de amor; em mim, amada... 
E sabes de uma coisa? Cada vez 
Que o sofrimento vem, essa saudade 
De estar perto, se longe, ou estar mais perto Se perto, - que é que eu sei! Essa agonia 
De viver fraco, o peito extravasado 
O mel correndo; essa incapacidade 
De me sentir mais eu, Orfeu; tudo isso 
Que é bem capaz de confundir o espírito 
De um homem – nada disso tem importância Quando tu chegas com essa charla antiga Esse contentamento, essa harmonia 
Esse corpo! E me dizes essas coisas 
Que me dão essa força, essa coragem 
Esse orgulho de rei. Ah, minha Eurídice 
Meu verso, meu silêncio, minha música! Nunca fujas de mim! Sem ti sou nada 
Sou coisa sem razão, jogada, sou 
Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice... 
Coisa incompreensível! A existência 
Sem ti é como olhar para um relógio 
Só com o ponteiro dos minutos. Tu 
És a hora, és o que dá sentido 
E direção ao tempo, minha amiga 
Mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada! A beleza da vida és tu, amada 
Milhões amada! Ah! Criatura! Quem 
Poderia pensar que Orfeu: Orfeu 
Cujo violão é a vida da cidade 
E cuja fala, como o vento à flor 
Despetala as mulheres – que ele, Orfeu Ficasse assim rendido aos teus encantos! Mulata, pele escura, dente branco 
Vai teu caminho que eu vou te seguindo 
No pensamento e aqui me deixo rente Quando voltares, pela lua cheia 
Para os braços sem fim do teu amigo! 
Vai tua vida, pássaro contente 
Vai tua vida que estarei contigo!

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JOTA

Orfeu da Tracia, do Carnaval e da Conceição

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Orfeu da Tracia, do Carnaval e da Conceição

A personificação do amor e da música