Pedro Gordilho

Sinfonia, concerto, poema sinfônico: cada uma destas palavras suscita em nós diferentes expectativas, tanto pelo conteúdo quanto pela proveniência destes gêneros. De um modo geral, num concerto sinfônico colocam-se gêneros diversos visando atender expectativas igualmente distintas do público. Mas é possível contemplar em alguns programas especialmente escolhidos um mesmo espírito. A rapsódia facilita sobremodo essa uniformidade.
Na Grécia antiga, o rapsodo circulava de cidade em cidade e declamava longos poemas, principalmente epopeias, em parte declamadas e em parte improvisadas. Era um cantor que ajustava cantos para formar com eles um conjunto. Os mais celebres e mais antigos dos rapsodos são os homeridas. Eles guardavam cuidadosamente o tesouro dos velhos cantos épicos, dos poemas homéricos, e percorriam o mundo grego divulgando as suas descrições épicas, ajustadas umas às outras, de maneira a constituírem grupos.
Na música, a rapsódia recebeu um outro sentido mas reportando-se, de algum modo, às suas raízes gregas. A expressão designa toda peça de caráter épico, de forma relativamente livre e evocando tradições orais e populares virtualmente resguardadas. Se este gênero ficou circunscrito a um pequeno numero de peças musicais, o espírito da rapsódia tende a ganhar outros gêneros e ocupar a preferência dos compositores mais envolvidos por um projeto de afirmação nacional.
A rapsódia tem, a partir daí, uma forte presença de temas populares e, até mesmo, um toque do folclore nacional. Três obras serão aqui destacadas ressaltando a geografia sentimental de seus autores.
Primeiro, a Sinfonia nº 7, de Antonín Dvorák, ressalta a origem geográfica de seu autor. O músico tcheco mereceu a reputação que lhe foi votada pelo grande público que o admirou. Ele havia recentemente ouvido ou escutado a 3ª sinfonia de seu amigo e mentor Johannes Brahms e sentiu que deveria ultrapassar os seus próprios limites, visando não apenas buscar o modelo (a arte sinfônica de Brahms dava curso a Beethoven), mas também de se livrar da etiqueta de artista nacional tcheco. Por isso, Dvorák procura ultrapassar o aspecto “cor local”, presente em sua música, visando elevá-la a uma dimensão verdadeiramente universal. O sopro melódico do compositor, matizado de folclorismo, agrada o público e provoca adesão dos grandes auditórios. A sinfonia, o mais clássico dos gêneros do romantismo, se presta bem para manifestar uma expressão particular – no caso da 7ª sinfonia de Dvorák um sentimento nacional –, desde que sua estrutura não venha a ser perturbada ou alterada.
O espírito da rapsódia se manifesta sob um perfil épico no poema sinfônico Ricardo III de Bedrich Smetana. Concepção que se coloca sobre um desenvolvimento musical narrando o destino do protagonista. A obra não segue o drama de Shakespeare de maneira literal, mas focaliza o personagem principal descrevendo sua ascensão e sua queda. É verdade que o personagem de Ricardo III fornece um vasto material para a descrição musical: ambicioso ao ponto de usurpar o trono de seu irmão e de assassinar seus sobrinhos, ele salva covardemente sua vida vendendo “seu reino por um cavalo”.
Já o Concerto nº 2, para piano e orquestra, de Franz Liszt, sem o recurso propriamente de um programa, muda o caráter de um tema até fazendo o herói sem nome, um recital sem palavras. Este mesmo concerto oferece a impressão de uma inspiração espontânea e, ao mesmo tempo, uma forma improvisada: a música segue seu próprio trajeto. Se a música adota formas mais convencionais, uma maneira de repetir e alinhar os temas dará à obra um caráter verdadeiramente rapsodico: é o caso do final da sétima sinfonia de Dvorák. Malgrado sua diferença de forma, de destinação e de conteúdo, as três obras aqui mencionadas desenham, para seus ouvintes, poemas sem palavras. E são obras inesquecíveis.

8-Concerto-Temporada-2010

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JOTA

Três obras destacadas ressaltam "a geografia sentimental de seus autores"

Nos confins dos gêneros musicais: o espírito da rapsódia

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