Pedro Gordilho

No curso dos séculos, a arte busca traduzir a essência do fascinante universo feminino. O universo do corpo, da beleza, como também a alma feminina. Seja nos versos de Camões, de Vinicius de Morais, de Drummond, seja nas Madonas de Michelangelo e Rafael ou no sorriso intrigante da Mona Lisa de Da Vinci, na origem do mundo de Courbet, seja nas imagens de Bergman ou de Antonioni, a arte sempre procurou, geralmente sem sucesso, decifrar a mulher, transformando-a em palavras e imagens, em ideias, abstrações e desejos.
Hoje tem-se como bem certificado que a beleza passou a ser um bem de consumo como qualquer outro. Nádegas e seios estão a venda na forma de silicone. A finalidade é esculpir um corpo idealizado que, como regra, não se acha conectado com as reais necessidades psicológicas da mulher. As mulheres passam a ser proprietárias de um corpo artificial, com elevado poder de sexualização. Mas e o amor? Explica a psiquiatra Ana Beatriz B. Silva: “O amor? Isso não faz parte do negocio.”
Mas há uma parte do universo feminino, de elevado poder, com ou sem o apoio de centros cirúrgicos. Depois da noite dos tempos, mais que as pernas intermináveis ou um par de seios triunfantes – o ideal seria ainda reunir os três –, há a parte da anatomia feminina que fascina a todos, homens ou mulheres. Impossível ficar insensível ao quadril feminino bem torneado.
O quadril tem uma carga erótica quase animal. Mesmo as mulheres, entre si, se voltam para ver um belo par de quadris. Sartre tinha razão, ao dizer “o universo se move em torno de um par de quadris e isso é tudo”.
São eles um atributo exclusivamente humano. Foram adquiridas quando nossos ancestrais deram o grande passo e se puseram de pé, exclusivamente sobre as pernas traseiras. Os músculos glúteos se expandiram, permitindo ao corpo manter-se permanentemente ereto e são esses músculos que nos dão o par de hemisférios de que tratamos.
Para os gregos as nádegas eram uma parte bela da anatomia, em parte devido à sua agradável curvatura, mas também por seu contraste com o traseiro dos macacos e chimpanzés. Segundo os gregos, a curvilínea deusa do amor, Afrodite Calipígia – literamente, “aquela que tem belas nádegas” –, tinha nas nádegas a parte esteticamente mais agradável de toda a sua anatomia. Eram tão veneradas que um templo foi erguido em sua honra, fazendo das nádegas a única parte do corpo humano objeto do culto.
E a consequência de tudo isto é a constatação de que se as nádegas arredondadas eram a marca que distinguia o ser humano dos animais, então os monstros das trevas não deviam ter esta característica anatômica. Foi assim que o demônio ganhou a reputação de ser “desbundado”. Os primitivos europeus estavam convencidos de que, embora pudesse assumir a forma humana, o demo nunca conseguia simular as nádegas arredondadas, que estariam além de seus poderes diabólicos.
E como essa gordura extra, que as mulheres têm, constitui um atributo exclusivo do sexo feminino, isto faz desse atributo um forte sinal sensual. Esse sinal é acentuado por outras virtudes, como a capacidade de rotação da pelve e a ondulação dos quadris no caminhar. A mulher comum tem as costas mais arqueadas que o homem. Em posição normal de repouso, o quadril se projeta mais para fora que o do homem, não importa seu tamanho. Quando ela caminha, a estrutura óssea das pernas e dos quadris provoca uma ondulação maior da região glútea. Em outras palavras: ela rebola ao andar.
No passado remoto os quadris femininos eram mais protuberantes. Não se pode ter uma prova disso pelos esqueletos mas quando observamos pinturas e esculturas da Idade da Pedra vemos que eram outras as dimensões. E mesmo depois da Idade da Pedra persistiram na arte pré-histórica de muitas culturas, mas depois começou a desaparecer até atingir as proporções atuais. 
E por que seria assim? Uma hipótese, suscitada pelo antropólogo Desmond Morris, é de que os nossos ancestrais tinham relações sexuais por trás, como outros primatas, de modo que os sinais sexuais pré-humanos da fêmea vinham da parte posterior. Quando evoluímos para a postura ereta, e os músculos traseiros formaram as nádegas, a forma arredondada se tornou o novo sinal sexual.
As mulheres que tinham grandes horizontes traseiros enviavam fortes sinais sexuais e com isso as nádegas foram crescendo. As mais sensuais tinham a vantagem de enviar super sinais com suas super nádegas, mas elas ficaram tão grandes que começaram a atrapalhar a relação sexual. Então os homens resolveram o problema adotando a relação frontal. 
Não é fácil dizer quanto tempo vai durar essa moda de quadris firmes e generosos, mas não há duvida de que o mundo da moda e da cultura popular está sempre voltando a essa região como foco de erotismo, revelando uma preferência. 
Há muito a nossa espécie abandonou a locomoção sobre quatro patas, mas o quadril feminino se recusa a desaparecer do inconsciente masculino. Já se ressaltou que o símbolo universal do amor, a forma estilizada do coração, na realidade se baseia nas nádegas femininas. De fato, ela se parece muito pouco com o verdadeiro coração e tem uma estranha semelhança com as nádegas femininas vistas por trás. 
O costume italiano de beliscar essa parte do corpo feminino é conhecido. Qualquer quadril atraente que caminhasse por uma cidade italiana corria o risco de ter as nádegas beliscadas por um admirador desconhecido. De acordo com sua educação, ela podia se sentir orgulhosa, levemente irritada ou mesmo ofendida. O autor de uma satírica intitulada Como ser Italiano relata os três beliscões fundamentais: 
Pizzicato: Um rápido beliscão executado com o polegar e o dedo médio. Recomendado para iniciantes.
Vivice: Um beliscão mais rigoroso, executado com vários dedos e várias vezes em rápida sucessão. 
Sostenuto: Um beliscão bem apertado e prolongado, adequado no caso de “cintas resistentes”.
Fora de duvida que as feministas não acham nenhuma graça nisso e em certa ocasião chegaram a revidar procurando nas ruas horizontes masculinos que pudessem ser beliscados.
Mas a garupa de uma mulher não é somente esse fantasma coletivo que anima os homens. Ela permitiu também dois autores franceses, Caroline Pochon e Allan Rothschild, revisitar toda a historia da arte e, mesmo sem pretensão, a historia da humanidade, a partir do quadril feminino. O livro com edição luxuosa tem o nome de La Face Cachée des Fesses (O Lado Oculto dos Quadris). Obras primas de Rubens, de Matisse, são lembradas, também imagens publicitárias de hoje e de ontem, igualmente as imagens de quadris carregados de protesto ou evocando a liberdade que o quadril celebra, os autores tratam com profundidade um assunto que normalmente não seria. E mostram sobretudo que nós sempre falamos desse tema com inteligência e também compaixão, assinalando a todos que o desejo é frequentemente fruto de uma relação de força e que cada época decreta os seus tabus. Com eles nós aprendemos uma coisa, advertem os autores: desde que se fala de fesse é de si mesmo que se fala. 
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Referencias bibliográficas 
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<li style="font-weight: 400;">Caroline Pochon et Alan Rothschild, La Face Cachée des Fesses, Arte Éditions 2009, 200 ilustrations, 256 pages</li>
<li style="font-weight: 400;">Desmond Morris, A Mulher Nua, Ed. Globo, 2005</li>
<li style="font-weight: 400;">Desmond Morris, O Macaco Nu, Dist. Record 1967</li>
<li style="font-weight: 400;">Hans-Jürgen Döpp, L’Éloge de la fesse, Parkstone, 2010</li>
<li style="font-weight: 400;">Patrice Guériot et Jean-Denis Bruet-Ferreol, Moon, Éditions Blanche, 2009, 200 photos</li>
<li style="font-weight: 400;">Raphael Mazzuco, Culo by Mazzuco, Atria Books, 2011.</li>
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