Fábio Nascimento Ruiz

Larissa Palermo Frade

“Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.”
(BRECHT, Bertold. Intertexto)
(Atenção: o texto abaixo possui apenas e tão-somente a pretensão de ser a transcrição, em prosa, de uma conversa de bar ocorrida numa madrugada paulistana)
Diria Proudhon que a sociedade é profética, pois se indaga pela boca de uns e se responde pela de outros. Isso pode ser observado na literatura, principalmente. E por literatura queremos dizer toda e qualquer literatura.
Quando assistimos e comentamos entre nós as cenas das manifestações em São Paulo na última terça-feira (12/01), fomos remetidos quase que instantaneamente à nossa saga preferida: a saga Harry Potter (se você achou que era coisa de criança, nunca leu/ouviu dizer/assistiu aos filmes, saiba que há um déficit muito grande na sua vida).
Em Harry Potter, após presenciar a morte de Cedrico, Harry passa a ser capaz de vislumbrar testrálios – criaturas mágicas semelhantes a cavalos, somente visíveis àqueles que já presenciaram a morte (são elas que puxam as carruagens que transportam os estudantes para Hogwarts). Nesse sentido, nos parece ser o fascismo um grande testrálio, talvez o maior deles. E é importante que você, leitor, fixe esse conceito para o que diremos a seguir. 
Partindo dessa premissa de que o fascismo é um testrálio, o que nos permite percebê-lo? Com toda certeza não é presenciar a morte, mas perceber que quem sofre com esse cavalo não é um inimigo mau, um não-humano, um monstro, mas sim um semelhante. Explicaremos.
O ser humano é um grande emaranhado de fios desencapados sobre a água: estamos sempre na iminência de um curto circuito. Somos movidos por diferentes ímpetos e cada corrente filosófica ou sociológica, de forma geral, insiste que temos apenas um único devir, quando estamos muito mais para a profana mistura de todos eles. Somos, então, um pout pourri polissêmico de ímpetos – vale dizer: somos quase que necessariamente uma mistura caótica. É como disse Burgess:
“Poucos de nós não rejeitam liminarmente ambos os pesadelos, tanto o orwelliano como o huxleiano. Em certo sentido, preferiríamos a sociedade repressiva, cheia de polícia secreta e arame farpado, à sociedade cientificamente condicionada, em que ser feliz significa agir sempre de acordo com as normas vigentes. Talvez todos concordássemos com o professor Skinner na ideia de que uma sociedade de homens eficazmente condicionados será excelente para uma nova raça – uma estirpe de seres humanos racionalmente convencidos da necessidade de serem condicionados, contanto que o condicionamento se baseie em recompensas e não em punições. Mas nós não somos essa nova raça e, teimosamente, não queremos ser outra coisa senão aquilo que somos - criaturas cientes dos nossos defeitos e determinadas, em maior ou menor grau, a remediar esses defeitos à nossa maneira.”
Queremos liberdade, segurança, paixão, amor, tesão, pureza, mistério e verdade. Somos uma grande mistura de antíteses infinitas: queremos tudo ao mesmo tempo e não necessariamente de forma ordenada. Essa noção de quem somos, então, uma polissemia de devires, é uma base importante para a construção da ética do diferente. E por que dizemos isso?
Em uma sociedade altamente burocratizada, sendo o Estado um grande super ego que imitamos, é natural que passemos a absorver e aplicar suas noções. As burocracias, por assim dizer, funcionam em uma lógica centrípeta no trato da coisa pública: atendem suas próprias demandas. Forma-se com isso a preocupação, ou melhor, um tipo de solidariedade muito específica: a solidariedade somente com aquele que compartilha a nossa realidade. Quem está de fora passa a ser o outro; um ser distante, genérico e disforme que não vemos como humano, como um ser próximo ou semelhante.
Quando esse “outro” tende a atentar contra a vivência de determinado grupo, ganha as atribuições de “inimigo”. Como não reconhecemos esse “inimigo” como semelhante, é como se qualquer ação passasse a ser lícita para repeli-lo. Assim, em cólera, passamos a admitir verdadeiros absurdos em nome da “proteção da parcela ordeira da sociedade” (e ousamos dizer que se esse vínculo de sociedade se deturpa em um grupo, é bastante factível que o “inimigo” – o “marginal” e o “bandido” – também nos reconheça como o grande inimigo genérico).
Nasce então um proceder muito próprio do Estado de Exceção: suspender compulsoriamente os direitos humanos daqueles que se adaptam à conveniência das estruturas de poder (ou seja, daqueles que possam potencialmente se adaptarem à figura do “inimigo”). Aqui chegamos onde queríamos chegar desde o início da nossa conversa: nos tornamos acríticos em relação à violência policial. Afinal de contas, nós não seríamos os mesmos que aqueles que a sofrem, não é? Ora, eles são... inimigos. Não são? Não. Não são. Não são inimigos nem de quem diz que eles são inimigos. Somos todos semelhantes. Na linha do que quis dizer Brecht: todos poderemos ser levados [todos poderemos ser violentados]. É uma questão de tempo.
Apesar de sermos essencialmente caóticos, cada um de nós crê, de forma quase que absoluta, que é a medida para todas coisas, a medida de certo e errado. Isso pelo fato de que nessa lógica de solidariedade compartimentada, todo aquele que não se adeque ao ethos de um grupo é o diferente. Com isso, passamos a impor a ética do mesmo. No entanto, se é verdade que o humano torna-se bom por praticar o bem (como ensina Aristóteles em “Ética à Nicômaco”) é preciso admitir a incômoda consequência de que a ética do mesmo se consolida quando somos intolerantes em relação ao diferente (por exemplo: quando admitimos a suspensão compulsória dos direitos fundamentais que lhe são garantidos).
O lado bom é que se a ética que adotarmos for a do diferente, com o tempo a sociedade superará suas falsas noções para resoluções de problemas. Seria como se Dom Quixote percebesse que seu inimigo não é o moinho de vento: é um ser mais complexo. Aí sim estaremos progredindo na resolução do problema – mas lembramos que tempo e morte (física, mesmo) caminham lado a lado. Quantas vidas passarão até que o moinho seja reconhecido como ser? Quantas vidas passarão para que obtenhamos a capacidade de enxergarmos testrálios?
Para reconhecer os testrálios é preciso desconstruir o autoritarismo nosso de cada dia, um dos devires que falamos (já que toda forma de autoritarismo vem de um ímpeto inicial de proteção). A sociedade se tornará melhor e mais evoluída quando passarmos a entender que se somos senhores de todos, então todos serão meus senhores também. Logo não existirá horizonte de liberdade factível.
Se, no entanto, admitirmos que somos nossos senhores, tornar-nos-emos responsáveis e conscientes pelos nossos atos, não mais impondo nossos valores. Com isso, permitiríamos aos outros o mesmo e aí sim estaríamos próximos de uma sociedade razoável. A ética do diferente é um imperativo humano de consciência para evitar isso que lemos nos jornais – de explorados que apunhalam explorados; de seres humanos contra seres humanos, guerreando entre si, enquanto uma superestrutura poderosa e genérica segue se consolidando. Enfim, nossa polissemia é o que mais nos aproxima de uma sociedade perfeita, mas também é o que mais nos distancia.
Foi isso que concluímos, ontem, na nossa “conversa de bar”. Mas nossas opiniões podem mudar – vivemos no Mundo da Lua, onde, como diria Lucas Silva &amp; Silva, “tudo pode acontecer”.

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JOTA

Uma reflexão sobre as repressões policiais nas manifestações em São Paulo

Entre Harry Potter, Brecht, Proudhon e Burgess

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