Wesley Dodds

O governo federal, que conta com amplo apoio popular e causa um misto de admiração e temor no resto do mundo, contrata o melhor diretor de cinema do país. O diretor também já era reconhecido como um dos melhores do mundo (hoje, muitos anos depois, ele é considerado um dos grande artistas da história). O governo busca o diretor e diz que coloca a sua disposição todo o dinheiro necessário para ele filmar a história que, anos antes, culminou com a ascensão do próprio governo. O diretor aceita e realiza um filme brilhante... Mas que provocaria a ira do governo, que logo pede para interferir na montagem final e mudar a história filmada e, por extensão, a própria história do país.
Embora o caso tenha ocorrido há quase 90 anos, a história que se segue trata dos limites para a liberdade de expressão, o controle do governo sobre manifestações artísticas e sobre o presente, o passado e o futuro.
Estamos em Moscou, capital da União Soviética. O ano é 1926. O governo era sinônimo de Josef Stalin, que tinha acabado de vencer a disputa interna entre os bolcheviques contra Leon Trotsky. Desde o falecimento de Lênin, dois anos antes, uma guerra se estabeleceu nos gabinetes do governo e do Partido Comunista para decidir quem, entre Stalin e Trotsky, deveria manter o projeto iniciado por Lênin após a Revolução Russa de outubro de 1917.
O diretor de cinema contactado pelo governo de Stalin era ninguém menos que Sergei Eisenstein, que tinha acabado de deixar o mundo boquiaberto com seu segundo filme, "O Encouraçado Potemkin", sucesso em Berlim, Paris e Nova York.
A ideia era simples: Eisenstein teria todo o dinheiro, o equipamento e os atores necessários para filmar a história da Revolução de 1917. Havia apenas uma imposição: era preciso que o filme ficasse pronto em 1927, para comemorar o aniversário de dez anos da revolução comunista.
Eisenstein aceitou. Com isso, abriu a primeira grande discussão jurídica da história do cinema: até onde vai o direito do autor de uma obra de arte e onde começa o direito daquele que financia ou mesmo idealiza o projeto?
Como qualquer gênio indomável, Eisenstein sentiu que a liberdade deveria ser total. Olhando em perspectiva, a situação na Rússia (ou União Soviética) naquele momento ainda era de relativa liberdade política e artística. Os historiadores apontam que a supressão de direitos começou de forma organizada a partir de 1931. As sementes, porém, foram plantadas justamente no acordo entre Stalin e Eisenstein.
O diretor não conseguiu terminar o filme em tempo de lançá-lo em 1927, o que enfureceu o governo. Mas Eisenstein conseguiu driblar um conflito alegando que o resultado final valeria a espera.
Valendo de sua teoria de montagem intelectual, o cineasta montou relações entre religiões e fanatismo político, ao mesmo tempo que registrou a história da revolução comunista. Um ano inteiro de trabalho foi preciso para que Eisenstein, enfim, concluísse o filme, que ganhou o nome de "Outubro".
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Quando "Outubro" estreou, em janeiro de 1928, a reação foi péssima. O público adorou as imagens reconstruídas de Lênin e de batalhas políticas, mas não conseguiu entender as mensagens do filme, muito menos a forma com que Eisenstein fez o filme. O governo de Stalin também não entendeu e ficou ainda mais raivoso com o fato de que, depois de tanta espera, o filme não ter feito sucesso em seu país.
Como o diretor de sucessos de público e crítica, como "A Greve", de 1924, e "O Encouraçado Potemkin", de 1925, simplesmente tinha feito um fracasso apenas três anos depois?
Mas o pior ainda estava por vir: Stalin queria mudar o filme. Quando tudo começou, em 1926, a situação na URSS era uma. Em 1928, outra. Stalin não gostou de ver Trotsky retratado no filme como o herói que comandou o Exército Vermelho na revolução. Naquele momento, Trotsky já era perseguido pelo governo e sua história oficial estava sendo reescrita nos livros escolares.
Stalin entendia que, como havia pagado pelo filme, teria todo o direito de alterar o que quisesse. Eisenstein, na condição de autor, entendia que não.
Um grande debate, envolvendo inclusive advogados e juristas do Partido Comunista Russo, se iniciou e terminou com um "acordão": Eisenstein cedeu um pouco e Stalin aceitou ficar sem tudo o que queria. A versão americana do filme, que levou o nome de "Outubro: Os Dez Dias que Abalaram o Mundo" foi lançada em Nova York no fim de 1928, e foi melhor recebida.
Hoje, "Outubro" é visto como um clássico do cinema, obrigatório para quem gosta da Sétima Arte - e sim, o filme é plenamente compreensível aos olhos de hoje.
Como ficou a relação entre Stalin e Eisenstein? Nunca mais seria a mesma. O diretor partiu para um périplo pelo mundo, entre 1929 e 1931. Quando voltou, encontrou seu país como ele é lembrado até hoje quando se pensa em URSS e Stalin: ditadura, culto à personalidade, industrialização forçada, repressão à liberdade de expressão, controle da vida social. Einsenstein não conseguiu ver o mundo sem o stalinismo. Morreu amargurado em 1948, cinco anos antes de Stalin.
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Outubro (URSS, 1928). Direção: Sergei Eisenstein. Duração: 149 minutos

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