JOTA Discute
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O filme mais caro da história do cinema vai estrear. Ele será exibido em grandes teatros e será acompanhado de uma orquestra, que interpretará a trilha sonora original ao vivo. As duas maiores atrizes do cinema estão no filme, que conta uma história de amor em meio à Guerra Civil norte-americana, registrada com grandes cenas de batalha campal, recriadas com figurinos e mais de 2 mil figurantes. Na Casa Branca, o presidente americano, que pôde assistir a uma exibição prévia, elogiou. Só tem um problema com esse filme: ele é racista. Os negros são personificados por atores brancos com os rostos pintados de preto. Ao final, a Ku Klux Klan surge como salvação.
Você assistiria a esse filme?
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Este foi o primeiro grande dilema social e político envolvendo o cinema. Foi, também, quando a Sétima Arte invadiu os tribunais pela primeira vez. Quando "O Nascimento de uma Nação" foi lançado, em 1915, há exatos 100 anos, ninguém sabia ao certo o que fazer. O cinema ainda não era propriamente cinema: o meio já era a principal forma de entretenimento das massas e também da classe média em praticamente todo o mundo - no Brasil, inclusive. Mas as elites ainda torciam o nariz para o cinema, preferindo o teatro, os concertos e a ópera.
O mundo em 1915 , porém, tinha mudado rápidamente. A Primeira Guerra tinha acabado de começar, deixando flagrante que o diálogo entre nações não funcionava mais - por extensão, o direito claramente não servia para mais nada. Regras internas e internacionais eram ignoradas, reescritas, revolucionadas. A música clássica vivia uma revolução particular, com a estreia de "A Sagração da Primavera", em 1913, em Paris, Berlim e Viena.
Tudo mudava rápido quando o americano D.W. Griffith completou seu projeto mais ambicioso: "O Nascimento de uma Nação", em fevereiro de 1915. Considerado, de forma unânime, como o pai do cinema. O prestígio de Griffith chegou a Charles Chaplin, Orson Welles, Glauber Rocha e até ao soviético comunista Sergei Eisenstein, para quem Griffith estava para o cinema como Charles Dickens estava para a literatura.
Era indiscutível para todos, inclusive juízes, que "O Nascimento de uma Nação" era um divisor de águas, um filme que marcaria toda a geração que vivia no mundo de 1915.
Mas como lidar com o racismo?
Por entender que o filme incitava a crimes de ódio, a então refém criada NAACP, organização de defesa e afirmação de afrodescentes nos EUA, entrou com pedidos de suspensão do filme em diversas cidades americanas. Tribunais em capitais importantes, como Boston e Chicago, aceitaram o pedido e o filme foi proibido. Diversos tumultos sociais tomaram grandes cidades, inclusive com a ajuda de brancos, que se recusavam a apoiar o filme. Também na França e na Alemanha o filme foi proibido. Em Nova York, onde ele estreou, as sessões foram repletas de manifestações populares, mas também de filas intermináveis.
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Até hoje, o mundo de Hollywood (onde, aliás, boa parte do longa foi filmada, apesar de, em 1915, a área ser praticamente deserta) considera que este filme de Griffith foi o mais caro de todos os tempos. Também foi um dos mais lucrativos da Sétima Arte. E certamente o mais polêmico.
O especialista em cinema e em ciências sociais da Universidade de Londres, Melvyn Stokes, afirmou recentemente que os protestos contra o filme de Griffith foram a semente para a importante luta da NAACP e dos negros norte-americanos por igualdade de direitos nos EUA, movimento que chegaria ao auge nos anos 1960, com a ascenção de um dos líderes da NAACP, Martin Luther King.
"O Nascimento de uma Nação" causa furor até hoje, cem anos mais tarde. Por conta de sua importância para o cinema, o serviço de imagens em movimento por streaming, a Netflix, colocou o filme à disposição dos assinantes do site nos Estados Unidos no início de 2015. A reação dos usuários foi extremamente negativa, forçando a Netflix a retirar o filme de seu cardápio. Os ecos do cinema e da proibição continuam presentes, basta lembrar a censura autoimposta pela Sony ao longa "A Entrevista", que critica e ironiza a ditadura da Coreia do Norte.
Por conta de toda a polêmica, Griffith partiu para um projeto que era ainda mais ambicioso, mas também um pedido de desculpas: "Intolerância", de 1916. Sem racismo e sem polêmica, "Intolerância" é considerado hoje um dos maiores filmes da história do cinema, que influenciou e influencia até hoje todos os estudantes e amantes de Cinema em todo o mundo. Mas "Intolerância" foi um fracasso de bilheteria: Griffith quebrou em 1917 e passou a viver a partir dali de filmes mais próximos de novela. Seu declínio acelerou a partir de 1924. Seu último filme foi lançado em 1931, mas Griffith ainda viveria 17 anos depois daquilo, completamente esquecido pela indústria que ele tinha criado sozinho. Morreu no lobby de um hotel em Los Angeles, ainda considerado um pária.
A sociedade americana ainda convive com a dualidade de 1915. Apesar da eleição e reeleição de Barack Obama, presidente da Nação e negro, escândalos terríveis de racismo praticado pela polícia em cidades como Ferguson e Baltimore.
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O Nascimento de uma Nação (Estados Unidos, 1915). Direção: D.W.Griffith. Elenco: Lillian Gish, Mae Marsh, Henry B. Walthall, Miriam Cooper, Ralph Lewis, George Siegmann, Walter Long. Duração: 180 minutos.