Bernardo Gonzaga

O dia a dia da advocacia trouxe a dois advogados não só a experiência técnica da profissão mas também um vasto conhecimento da formação de um órgão que hoje tem a capacidade de definir os rumos da economia do país através de sua fiscalização, medidas cautelares e aprovação ou rejeição de concessões e desestatizações. 
O Tribunal de Contas da União (TCU) é definido pelos advogados Pedro Dutra e Thiago Reis como “O soberano da regulação”. Definição essa que deu origem ao livro de mesmo nome. Segundo os dois juristas, a corte de contas vem extrapolando a lei que a rege ao longo de mais de 30 anos. Como faz isso? Editando instruções normativas que definem por si só a abrangência e a competência do tribunal.
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Com uma linguagem técnica e embasada em decisões do passado da corte e detalhada juridicamente e historicamente, o livro conta como o TCU chegou aos dias de hoje tendo poder suficiente para embargar uma concessão, definir critérios técnicos para agências reguladoras e “regular o dinheiro público”, como diz um dos autores. 
O JOTA conversou com os autores que contaram um pouco do que trata o livro e o porquê do tribunal, na visão deles, se comportar como um soberano, aquele que tudo pode.
<blockquote class="jota-article__eye">Confira a íntegra da entrevista abaixo</blockquote>
JOTA - Por que o Tribunal de Contas da União (TCU) é o "soberano da regulação"? 
Pedro Dutra - “Soberano" está no sentido técnico. Em Direito, é aquele que é titular de todas as competências. Aquele que tudo pode. E o soberano era o rei da França. Então, a história da evolução do regime democrático é a história da redução das competências do soberano. E aí se criou o artigo 137 da Constituição, que define que o agente público só pode agir na forma da lei. E o agente privado pode fazer tudo aquilo que não é proibido. Hoje nós nos demos conta de que o TCU, no entender dele, e segundo competência que atribui por mão própria, é o soberano da regulação porque ele manda nas agências reguladoras e nos concessionários também. 
Thiago Reis - Esse é o primeiro trabalho na doutrina jurídica que examina de uma forma bastante crítica e bastante fundamentada esse problema da competência do TCU. Uma das dificuldades que nós encontramos na doutrina do Direito Constitucional foi de definir o que é a competência do tribunal. A gente foi buscar no Direito Comparado algum subsídio para discutir com mais propriedade para chegar a essa conclusão, que é a competência que está nas mãos do TCU. 
Uma pessoa consultada no livro diz que “enquanto ninguém barrar, vai embora”, fazendo referência ao aumento de abrangência da atuação do TCU. Quem deveria barrar o TCU?
P.D - A lei. Mas é que ele não dá bola para a lei. O artigo 71 [da Constituição] diz que ele é um órgão de fiscalização, mas ele se diz um órgão de controle, quando um órgão de controle, o artigo 70 diz que é o Congresso. Então, é um caso flagrante de desrespeito à lei. No livro está mostrado que o TCU tem um projeto de poder. Ele entende que ele tem um poder soberano. Recentemente o Procurador junto ao Tribunal -- que, aliás, é curioso que eles não são Ministério Público, mas se dizem de Ministério Público. Tem decisão do Supremo dizendo que eles não são Ministério Público --, Lucas Furtado, cogitou de processar o presidente Trump. E já cogitou processar o Banco Central por discordar da fixação da taxa de juros. Essa é a embriaguez de quando você deixa de seguir estritamente a lei. 
T.R - O Tribunal constantemente está interferindo na seara de outros poderes. A primeira vítima é a agência reguladora, mas também o Poder Judiciário, que tem a todo momento a sua competência violada pelo Tribunal de Contas. A quem compete revisar os atos da agência reguladora? Ao Poder Judiciário. A quem compete fiscalizar a execução de um contrato de concessão? Ao Ministério Público Federal. Esses órgãos, que muitas vezes respeitam as decisões do TCU, são órgãos que sistematicamente têm tido a sua competência violada. E isso eu acho que não está claro nem para o Supremo. O Supremo também está se sujeitando a essa expansão de competência do TCU. 
P.D - A ideia do livro é suscitar esse debate, inclusive no âmbito da iniciativa privada. 
No livro os senhores citam muitos exemplos de outros países, principalmente França, Itália e Alemanha. O que temos a aprender com eles?
T.R - O primeiro dado a se levar em conta é que não existe um tribunal que concentre poder como o TCU. Há uma separação muito clara lá fora entre a produção de informação pelas respectivas cortes de contas nos diversos países e a tomada de decisão. Na Alemanha e na França, as cortes de contas avaliam a eficiência de uma determinada política pública, de um contrato, só que eles não tomam decisão com base nessa avaliação. Eles produzem relatórios que são discutidos na imprensa, no parlamento, no governo. E aí as instâncias competentes vão tomar decisões. O que acontece, e isso é algo muito particular no Tribunal brasileiro, é essa concentração não só na produção de informação mas também na tomada de decisão e nas sanções. O TCU tem esse poder de interferir tão fortemente na política pública. Isso não existe lá fora. 
P.D - E como o TCU se justifica? O TCU faz o Direito dele. Ele baixa instruções normativas que o autorizam a agir. A cada movimento legislativo, ele faz um movimento interno baixando uma norma que atribui competência a ele mesmo. Então, ele atua com fundamento na norma que ele baixou. Nenhum órgão é autorizado a baixar norma para terceiro, só para dentro de si. E isso leva a duas coisas: ao "custo TCU" e ao apagão das canetas. 
Há algumas inconstitucionalidade na lei orgânica do TCU. Mas o mais flagrante é o TCU nesta lei ser chamado de órgão de controle. Coisa que a Constituição no artigo 71 diz que ele não é. Artigo terceiro da mesma lei também outorga ao TCU competência para editar normas infra legais sobre matéria tratada naquela norma voltadas essas normas para o TCU. Logo, todas essas instruções normativas que o TCU edita criando obrigações para terceiros exorbitam a competência que a lei deu a ele sendo obviamente uma violação da Constituição. Quem expede normas legais é o Congresso. O TCU não tem esse poder.
E como evitar esse apagão das canetas tendo em vista todos esses problemas que os senhores citaram?
P.D - Não falta legislação. Basta cumprir a existente. É perguntar para o TCU onde está dito que ele pode fazer o que faz. 
E quem deveria fazer isso? 
P.D - Todos os órgãos afetados pelo TCU. A Advocacia-Geral da União (AGU) em nome dos funcionários públicos, que são afetados pelo TCU, e criar um amplo debate sobre isso. O TCU pode determinar política pública? O TCU pode intervir em atos da administração pública? Não pode! O TCU é um tribunal que fiscaliza conta no mundo inteiro. Contas quer dizer o uso de verbas orçadas. Quem controla a ação do Estado é o Congresso. É preciso se debater isso. E na empresa privada o custo TCU é muito alto. Hoje o TCU tem uma capacidade de intervenção muito grande e a empresa privada vai se insurgir contra ele? Só quando houver uma consciência ampliada do custo TCU que aumenta todos os preços públicos. Sem dúvida. 
Há uma leniência de outros poderes perante o TCU? 
T.R - Eu acho que essa pergunta se conecta com a anterior. Porque uma das coisas que mais nos choca é como a gente pode ter um tribunal com o aspecto de intervenção como TCU se a gente, olhando para a constituição, vê que ele não tem esse poder. Como que se explica isso? Porque houve uma naturalização a respeito da atuação do TCU nos últimos anos. Eu acho que a gente tomou como dado que o tribunal, do jeito que ele opera, que isso está correto. O problema é que quando a gente olha para a Constituição e para os danos dessa ação do tribunal, a gente vê que tem alguma coisa que está fora de lugar e isso está gerando uma série de disfuncionalidades na sociedade brasileira. O debate que deve ser provocado é sobre a competência do TCU. 
Pega o exemplo da leniência. Esse acordo que foi firmado entre o Supremo, TCU, AGU e CGU. Onde que está escrito que o TCU tem autorização para investigar acordos de leniência? Em lugar nenhum. A lei anticorrupção não diz nada sobre o TCU. Mesmo assim, em 2015, o TCU edita uma instrução normativa onde ele diz como e por que ele vai exercer a fiscalização sobre os acordos de leniência. Não há uma norma que autorize o tribunal a avaliar acordos de leniência. 
P.D - Se você pegar a lei de licitações, Constituição, lei de concessões, lei das agências reguladoras, nenhuma cita o TCU. 
Mas acordos de leniência são feitos porque houve danos ao erário da União. O TCU não poderia atuar por causa disso?
P.D - Veja bem, o ministro José Múcio está dizendo que ele é o regulador do dinheiro público. Isso não existe. O que o TCU faz é fiscalizar o emprego de recursos orçamentários. Isso é o que está na Constituição e é o que uma corte de contas faz no Brasil e fora do Brasil. Não é dano ao erário. Se for dano ao erário você pega uma viatura do governo federal, abalroa essa viatura, é declarado culpado e o TCU vai te investigar porque você causou um dano ao erário porque aquilo é um bem público. 
Mas esse tipo de coisa acontece...
P.D - Mas isso é um absurdo! Esse livro acaba tratando de um absurdo. Aí, o TCU vai dizer que dano ao erário pode ser tudo e potencialmente eu sou competente para intervir em toda ação governamental e fora do país. O José Múcio chegou ao paroxismo: “eu regulo o dinheiro brasileiro”. Isso é que dá começar a agir fora dos limites legais. Dá essa embriaguez no poder. 
O senhores dizem no livro que atuação do TCU como conhecemos hoje não é acidental, ela é articulada ao longo de 30 anos. Na visão dos senhores, quais foram os principais erros na formação do TCU?
P.D - Toda burocracia quer poder. Isso é uma regra universal. O TCU tem uma característica importante que ele tem um quadro de auditores bem preparados para fazer conta. Então, o TCU percebeu que ele poderia ocupar esse espaço transformando os auditores dele paulatinamente em reguladores. E como ele atua junto ao Congresso, ele tem verbas muito generosas e tem uma estrutura muito bem organizada. Ele tem doutrinas internas. Ele tem um instituto, cursos e a sua doutrina e que não se comunica com a doutrina externa, a não ser marginalmente. Se você pegar esse trabalho você vai ver que eles não citam a doutrina brasileira atual, externa ou anterior. Mas isso não aconteceu, por exemplo, na CGU, que é realmente o órgão de controle da administração pública. 
T.R - No livro nós trazemos várias vozes do direito administrativo desde o século XIX denunciando essa tendência do Poder Executivo a apelar o regulamento a normas de caráter infralegal para expandir a sua atuação. O freio que existe é o freio da lei e há dificuldade de fazer com que ela seja cumprida. 
Nós lemos os caras do TCU, o que eles escrevem e como que eles formam seus quadros dentro dos seus institutos. Isso tem um papel importantíssimo para entender a dinâmica da instituição. E o que a gente nota é: “a lei não deve ser um limite à nossa atuação”. Isso acaba redundando na tentativa de sempre buscar ampliar a atuação. O curioso é que a leniência vem de fora. De um desconhecimento de saber o que é a atuação do tribunal e como ele atua. 
O TCU atua politicamente junto à imprensa para ganhar notoriedade?
P.D - O TCU hoje tem uma presença na mídia extraordinária. Menos para falar sobre despesas orçamentárias. Você não vê um ministro do tribunal vir a público discutir despesas orçamentárias. Discute tudo, menos isso. Por quê? Porque ele se socorre muito na mídia justamente para tentar encucar na cultura administrativa brasileira que a eles foi dada a função de regular o dinheiro brasileiro. Então, a pergunta é: para que servem os funcionários públicos? Para que serve o Congresso? Para que serve a Justiça Federal? E nesse ponto que é o investidor privado. 
Nós vamos ter nos próximos meses e anos ativos que hoje são da União indo para a iniciativa privada. É a política do novo governo. No livro os senhores falam da vulnerabilidade das agências reguladoras a pressões externas. O TCU deveria minimizar essa vulnerabilidade ou ele se comporta de maneira imparcial?
T.R - Quando a gente fala de concessão, o TCU não tem nada a opinar. 
Mas ele tem um poder enorme em qualquer projeto de concessão que esteja na carteira do PPI...
P.D - Doutrinariamente nós desafiamos esse poder. Se você notar as intervenções do TCU em concessões, ele não cita uma lei que o autorize a intervir. Ele se apoia nas normas que ele edita. 
E ele se apoia também na equipe técnica que possui...
P.D - E ainda não se examinou o quanto ela erra. E erra muito. Porque não me parece superior a uma agência reguladora bem formada, a técnicos do Banco Central, do Cade… 
T.R - Mas isso é o mais chocante. Não há amparo jurídico nenhum para atuação do TCU no campo de concessões. Nada. E, no entanto, é isso que a gente observa nos jornais. E mostra o nível de naturalização da atuação do tribunal. Ele só pode analisar regularidade e legalidade. Mas o tribunal quer julgar o mérito. Ele quer olhar para uma multa julgada pela CGU e dizer se ela está certa ou não, ele quer olhar para o preço de um contrato de obra pública e dizer se aquele preço está correto. É aí que começa o problema. 
Mas não é exagero dizer que a política econômica do país, pelo menos nos próximos dois anos e meio está nas mãos do TCU, uma vez que a gente tem como programa de governo desestatizações e concessões…
P.D - Eu diria que não é exagero dizer que o TCU põe a mão na política do governo. O procurador Júlio Marcelo quer discutir as multas aplicadas pelo CADE. Isso é um absurdo! Isso é acabar com a independências desses órgãos asseguradas em lei. 
Eu quero chamar a atenção para o que acontece com a empresa privada. A empresa privada é suscetível à ação do TCU diretamente. Porque o concessionário privado assina um contrato com o poder concedente mas tem um sócio oculto que é o TCU. Então, o acionista que comprou a ação não sabe que o TCU está escolhendo a política do Banco do Brasil e BNDES no lugar da própria União que é acionista daquele banco. No contrato de concessão é a mesma coisa. Então, qual é a defesa que o agente privado tem? Ele vai aumentar as provisões para um futuro risco. Então, o TCU acaba por onerar as concessões, ao contrário do que ele proclama. 
Vocês falam que um dos maiores erros do Estado no passado foi não ter firmado uma regulação técnica e independente em infraestrutura. As atuais mudanças de regulação que o governo pretende fazer, como os senhores vêm elas mesmo sem tocar no papel do TCU?
T.R - O que a gente verificou no nosso estudo é que há um padrão na atuação do tribunal. A cada ação do Congresso e do Executivo, o TCU reage incorporando aquela ação legislativa dentro da sua área de intervenção. E ele faz isso editando instruções normativas. Se esse padrão se mantiver nos próximos anos, nada indica que uma alteração legislativa vai surtir efeito. O tribunal certamente editar uma norma e vai regulamentar a matéria e vai definir como ele vai solicitar documentos do Poder Executivo. Enquanto não se discutir a questão da competência, a gente fica andando em círculos. 
P.D - O TCU nunca se pronunciou, por exemplo, ao contingenciamento de verbas das agências reguladoras. Ele quer as agências fracas e economicamente dependentes também. 
Por quê esse livro? 
P.D - Ele nasce da nossa experiência do dia a dia da advocacia na área de infraestrutura e concorrência. Não vamos nos esquecer que quando o TCU interfere ele interfere na livre concorrência e na licitação. O que nos leva a dizer que ele interfere na ordem econômica em geral. E foi essa interferência refletindo no dia a dia dos concessionários e de outras empresas, foi nos levando a examinar isso mais detidamente. E a conclusão que chegamos foi: qual lei que autoriza o TCU a fazer isso? De onde ele tira competência no sentido técnico jurídico. E vimos que ainda não havia um estudo assim.

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JOTA

Pedro Dutra e Thiago Reis afirmam que não cabe ao TCU fiscalizar dano ao erário e interferir em concessões

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