Carlos Melo

“O conflito é o nervo da política”, dizia um texto já clássico dos anos 1970. Ela existe, na verdade, por conta dele. Os conflitos são latentes, mas podem e devem ser superados pela sincera disposição em somar ou, no mínimo, pela inevitabilidade de conviver. Em que pese a diferença de valores, crenças, concepções de mundo; em que pese a permanente disputa dessas crenças por influenciar a sociedade e controlar os meios do Estado, todos estão irremediavelmente condenados ao convívio. A política é, por excelência, o instrumento para isso: para que não se faça a guerra de verdade. Esta é sua natureza; sua arte e sua beleza.
Em toda a sociedade há, portanto, diferenças. A ideia de união estável e sem conflitos é tão romântica quanto irreal.  Por outro lado, a unidade pactuada é possível sim. E é forjada pela ação de lideranças políticas que estabelecem diálogos, constroem o entendimento e definem pactos. Uma sociedade saudável não é a que elimina as diferenças, mas a que sabe conviver com elas; a que encontrou um modo de relacionamento baseado no respeito e na tolerância, arbitrados por princípios básicos, na maior parte das vezes, consignados numa Constituição -- o edifício da política que a sociedade foi capaz de forjar.
O conflito no Brasil, portanto, sempre existiu e, sejamos sinceros, está posto há décadas, alternando momentos de maior ou menor latência, de maior ou menor explicitação. Historicamente, o país demonstra dificuldade em manter pactos, de quando em quando revistos por processos mais ou menos turbulentos. O tom e a virulência das disputas atuais faz com que se suspeite que nem mesmo os conflitos havidos antes de 1964 e nos anos de ditadura militar foram, ao final, superados.
Quem viveu a transição brasileira na década de 1970 e 1980 recorda-se do antagonismo e do conflito sempre latentes entre apoiadores e adversários do regime militar: as arengas entre Arena e MDB; a oposição clandestina e a repressão descarada. Naquele processo, o evoluir da conjuntura e o passar dos anos fizeram com que as oposições – no plural -- adquirissem unidade mínima, com a intenção de derrotar o regime. Assumiu, assim, denominação genérica de “a oposição”, mas articulava vários grupos contraditórios entre si incapazes de gerar alternativa conjunta.
Em sentido contrário, também o regime se modificou: disputas internas fragmentaram a Arena, que se dividiu em vários grupos; o mais proeminente identificado com seu líder, Paulo Maluf. O “malufismo” por muito tempo foi a cara do conservadorismo nacional – que, aliás, nunca teve nada de liberal. Uma cara sem charme, desgastada com o tempo, com o malogro econômico, com denúncias de corrupção. E como filho feio não tem pai, a direita brasileira ficou órfã; seus representantes configuraram uma verdadeira diáspora na direção de vários partidos.
Por sua vez, a tênue unidade da oposição durou, basicamente, até a campanha das diretas-já, em 1984. Já na eleição indireta de Tancredo Neves para a presidência da República essa unidade se rompeu. A antiga oposição se estilhaçou: uns mais moderados, outros mais radicais; uns mais afáveis, outros sectários. Sucessivamente, esses grupos todos chegaram ao poder: PMDB, PSDB, PT, os satélites todos desses partidos e até mesmo o brizolismo pelas mãos de Dilma Rousseff.
A diáspora da direita tradicional, sua assimilação pelos partidos da antiga oposição por meio de alianças ou com a simples adoção de vários de seus métodos políticos e eleitorais – do patrimonialismo ao clientelismo, do fisiologismo à corrupção, do ufanismo ao populismo -- causaram a falsa impressão de consenso, de paz; da liquidação do conflito.
Também contribuíram para isso o salto qualitativo da estabilidade monetária trazida pelo Plano Real, o bom momento econômico em virtude do cenário externo e a adoção de políticas que permitiram distribuição de renda e inclusão social em grande medida.
A sociedade se transformou: a abertura para o mundo, a tecnologia que permitiu novas e variáveis conexões pessoais e a busca de novos padrões de sociabilidade; mas também o individualismo, o hedonismo e o consumismo que, paradoxalmente, desprezavam a própria ideia de sociedade e, ilusoriamente, supunham poder relevar a política à condição de nulidade.   
Todavia, mais uma vez, o malogro econômico revelou a verdade: houve pouca ou nenhuma transformação política, todavia, a sociedade que se modernizou era sua refém – atada a seus métodos e enredada na trama dos interesses de uma infinidade de grupos conflitantes, que se debatem na defesa de direitos e ou privilégios mais ou menos transparentes.
Neste contexto surgiu a Operação Lava Jato e tornou o jogo ainda mais complexo: sua fúria varreu o sistema; acua atores e indispõe ainda mais os diversos grupos; escancara o conflito e, dada sua inevitável transparência, torna-o inconciliável, incapaz de repactuação.
Revelou-se que suposto consenso era apenas circunstancial e precário, baseado na cooptação, na distribuição fisiológica de recursos públicos apenas possível em virtude do bom momento econômico que naquele modelo tornou-se, por fim, insustentável. O regime político não apenas envelheceu, ficou anacrônico, disfuncional, sem conexão e articulação com a sociedade; perdeu o timing econômico e tornando-se incapaz de liderar num novo processo de mudança e costurar novos pactos sociais.
O conflito ganhou as ruas; está solto. Ele, em si, não seria um problema houvesse sistema político para ajustá-lo a níveis de tensão controláveis, houvesse interlocução entre os grupos e lideranças capazes retomar o diálogo, garantir a tolerância e avalizar novas regras do jogo. Mas, não há. Neste momento, não há. O conflito latente tornou-se explícito, e pulsa sua pressão incontida. Como nervo exposto, demonstra a gravidade do momento. É o nervo da política, sem política alguma para contê-lo.

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JOTA

O conflito ganhou as ruas; está solto. Ele, em si, não seria um problema houvesse sistema político para ajustá-lo a níveis de tensão controláveis, houvesse interlocução entre os grupos e lideranças capazes retomar o diálogo, garantir a tolerância e avalizar novas regras do jogo. Mas, não há

O nervo exposto da política