Regras fiscais

As ressalvas jurídicas ao uso de precatórios e FUNDEB para criar o Renda Cidadã

Especialistas em direito financeiro e ministro do TCU veem falta de transparência na proposta, que encontra resistência

precatórios
Créditos: Waldemir Barreto/Agência Senado
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O senador Márcio Bittar, relator da PEC do Pacto Federativo, confirmou na última segunda-feira (28/9) que o governo estabelecerá um teto de 2% das receitas correntes líquidas para pagar precatórios, reduzindo consideravelmente o valor previsto, de R$ 55 bilhões, para 2021. 

Segundo a proposta que está sendo desenhada pelo governo, o que sobrar dos R$ 55 bilhões que foram destinados para o pagamento dos precatórios em 2021, somado ao orçamento do bolsa família, financiará o Renda Cidadã. 

A Receita Corrente Líquida prevista para 2021 é de R$ 804 bilhões. Com o limite de R$ 2% para pagamento de precatórios, o valor final seria em torno de R$ 16 bilhões. Dessa forma, abriria-se um espaço em torno de R$ 39 bilhões para financiar o novo programa social.

Além disso, segundo Bittar, a nova emenda constitucional do Fundeb estabeleceu que “até 5% dos recursos novos que serão pagos pela União sejam utilizados para ajudar as famílias que estão no programa a manter seus filhos no programa Renda Brasil e a manterem seus filhos nas escolas”. 

Segundo os líderes do Congresso Nacional, essa medida não fere o teto de gastos.

Reações

A proposta do governo causou reações. Técnicos legislativos, especialistas em contas públicas e ministros do TCU avaliam que, do ponto de vista das finanças públicas e do direito financeiro, a proposta não é das melhores, já que o adiamento dos precatórios criaria um passivo a ser pago nos exercícios posteriores. 

Isso porque, nos termos do §7 do artigo 30 da Lei de Responsabilidade Fiscal: “os precatórios judiciais não pagos durante a execução do orçamento em que houverem sido incluídos integram a dívida consolidada, para fins de aplicação dos limites”, estabelece o dispositivo.

O ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União (TCU), afirmou no Twitter que o uso de recursos dos precatórios para financiar o Renda Cidadã representa um “truque para esconder fuga do teto de gastos”. “Em vez de o teto estimular economia de dinheiro, estimulou a criatividade”, reagiu.

A proposta, segundo o ministro, reduz a despesa primária de forma artificial “porque a dívida não desaparece, apenas é rolada para o ano seguinte”. 

Em relação ao Fundeb, Dantas disse que não há problemas jurídicos, mas que o problema “é o significado político para o compromisso com gestão fiscal responsável”.

“Explicando: a EC 95 exclui do teto de gastos a despesa com o FUNDEB. Inflar o FUNDEB para, em seguida, dele tirar 5% para financiar outro programa, é rigorosamente o mesmo que inserir mais uma exceção no parágrafo 6º do art. 107. Por que não fazê-lo às claras?”, questionou Bruno Dantas.

Já Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado Federal, aponta que ao não se pagar um precatório devido, ele automaticamente incrementará a dívida pública.

“Não se está cancelando despesa. Por isso, é uma solução ruim. A despesa não some. Optou-se por isso para que não fosse necessário mexer em outros gastos obrigatórios, mas é uma saída ruim, pois aumenta a dívida e gera um aparente espaço fiscal, no curto prazo, e ainda produz incerteza e risco em relação à avaliação do mercado sobre a capacidade de pagamento do governo brasileiro”, afirmou ao JOTA

Esta é a razão, em sua visão, de os mercados reagirem tão mal ao anúncio. “A exemplo do que se viu na alta dos juros futuros”, complementa.

Em seu entendimento, a conta é relativamente simples. Se, dos R$ 54,7 bilhões previstos para pagamento de precatórios, forem pagos apenas 2% da RCL — isto é, R$ 16,1 bilhões — os R$ 38,6 bilhões remanescentes seriam incorporados à dívida pública. “Isso significa que o governo passaria a dever esse valor e os juros aplicados sobre ele”, diz Salto.

Em suma, ele define a medida como uma “solução do tipo ‘para inglês ver'”. “Ele não cortou um centavo de gastos públicos e não aumentou receitas. O que fez foi anunciar não pagamento de uma parte dos precatórios e contabilização criativa de despesas que não são do Fundeb mas que passariam a ser tratadas, possivelmente, como tal, ainda que quanto a esta última medida, não tenha ficado muito claro como se dará, na prática, a aplicação dos tais 5%”, finaliza.

O economista Leonardo Ribeiro, que é analista do Senado Federal, disse ao JOTA que, com esse modelo, o governo financiaria o “Renda Cidadã” postergando o pagamento de uma despesa obrigatória, se endividando, e não reduzindo uma despesa de forma permanente ou aumentando uma receita de forma permanente, o que feriria a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Nesse caso, segundo o economista, o ideal seria apresentar o Renda Cidadã de forma condicionada, o que só permitiria a execução do recurso por meio da exclusão de outro gasto obrigatório.

O ex-auditor do TCU Antônio Carlos Costa D’Ávila, especialista em Direito Financeiro que participou das acusações que rejeitaram as contas da ex-presidente Dilma por pedaladas fiscais disse ao JOTA que, com base nas informações preliminares divulgadas pelos líderes governistas, em seu entendimento o modelo para o Renda Cidadã configuraria “uma pedalada clássica, mas não representaria crime”.

“Seria mera utilização das regras do jogo (forma de contabilizar a dívida e os fluxos primários) para obter uma vantagem na apuração do resultado fiscal. Em outras palavras, deixa-se de efetuar o pagamento de um gasto para não registrar a despesa, pois o passivo respectivo não é registrado pelas estatísticas oficiais. Seria bem diferente de quase todas as ‘pedaladas’ mais famosas”, disse.

No entendimento de D’Ávila, seria interessante rever a forma como todas essas operações são registradas. “Desde que trabalhei no TCU, alerto para a necessidade de se evoluir para uma apuração de resultados fiscais e de dívida cujas regras de apuração sejam mais transparentes e associadas às normas estabelecidas pela LRF.”

PEC do Pacto: chave para definição do Orçamento

Fontes envolvidas na formulação da PEC do Pacto Federativo (188/2019) consultadas pelo JOTA explicaram que o timing de aprovação da PEC ditará os rumos do Orçamento em 2021, que iniciará sua tramitação de fato nesta terça-feira (29), após instalação da Comissão Mista de Orçamento. 

Caso a PEC seja aprovada ainda neste ano, o Congresso ajustaria o valor destinado ao pagamento de precatórios ainda em 2020, antes de aprovar o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), reduzindo o valor de R$ 55 bilhões para o novo valor estabelecido com a trava de 2% da Receita Corrente Líquida. No entanto, caso a PEC seja aprovada somente no próximo ano, o governo teria de enviar um PL para remanejar parte das despesas previstas para pagamento de precatórios para o programa Renda Cidadã.

Participantes da elaboração do texto do Orçamento destacam que o valor final para os precatórios ainda não está definido, dependerá da redação exata que for definida na PEC do Pacto Federativo. 

Assim, no momento em que a PEC fosse promulgada, teria que ser promovida uma reorganização da programação de pagamentos de precatórios para que se ajustem à nova regra.

Reação no Congresso e no Judiciário

Membros que estão formulando a PEC comentam, no entanto, que esse tema não será pacífico no âmbito do Judiciário, temendo judicialização tanto no STF quanto em instâncias inferiores. Há risco de que a medida não encontre guarida entre os ministros do Supremo, já que a Corte no passado já se manifestou pela inconstitucionalidade do postergamento e do parcelamento de precatórios pelos estados.

Em março de 2013, o plenário do STF julgou parcialmente procedentes as ADI 4.357 e 4.425, que tratavam da EC 62/09, a emenda dos precatórios. O regime especial declarado inconstitucional instituído pela EC 62 consistia na adoção de sistema de parcelamento de 15 anos da dívida, combinado ao regime de destinação de parcelas variáveis entre 1% a 2% da receita de estados e municípios para uma conta especial para o pagamento de precatórios.

Desses recursos, 50% seriam destinados ao pagamento por ordem cronológica, e os valores restantes a um sistema que combinava pagamentos por ordem crescente de valor, por meio de leilões ou em acordos diretos com credores. Dois anos depois, a Corte modulou os efeitos da decisão, para que tivesse validade a partir da sessão de 2013, além de detalhes sobre a remuneração dos créditos, formas alternativas de pagamento e a delegação do Conselho Nacional de Justiça  (CNJ) para que apresentasse proposta normativa sobre a matéria.

“Os modelos especiais para pagamento de precatórios afrontam a ideia central do Estado democrático direito, violam as garantias do livre e eficaz acesso ao Poder Judiciário, do devido processo legal e da duração razoável do processo e afrontam a autoridades das decisões judiciais, ao prolongar, compulsoriamente, o cumprimento de sentenças judiciais com trânsito em julgado”, afirmou na ocasião a ministra Rosa Weber, que integrou a corrente vencedora do julgamento.

No próprio Congresso há insatisfação. Cumprindo período de quarentena, o presidente da Câmara usou o Twitter para se manifestar: “O governo e o Congresso precisam enfrentar o desafio de regulamentar o teto de gastos JÁ. Essa indefinição pode provocar mais uma crise que vai impactar a vida dos brasileiros, adiando ainda mais a recuperação econômica provocada pela pandemia”, escreveu Rodrigo Maia.

Para o líder do PSB, deputado Alessandro Molon (RJ), “o que o governo está fazendo é anunciando que não vai mais pagar em dia suas dívidas judiciais, fazendo uma enorme pedalada fiscal, de cerca de 20 a 30 bilhões por ano. Isso será uma bola de neve fiscal”, avaliou. “De nada vai adiantar alguém ganhar na Justiça contra a União, já que não vai receber em vida.”

Também o deputado Arnaldo Jardim, líder do Cidadania, classificou como “frágil” a proposta que cria o programa federal Renda Cidadã. Partidos de oposição, como PC do B e PT, criticaram a medida elaborada pelo governo.