Marcella Fernandes

O depoimento do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta à CPI da Pandemia frustrou as expectativas da oposição em apontar a interferência do presidente Jair Bolsonaro nas decisões do Ministério da Saúde. Embora o ortopedista tenha relatado ações negacionistas do presidente no combate à crise sanitária, ele negou uma intervenção direta em sua gestão e defendeu decisões tomadas pelo ministério quando estava à frente da pasta.
Sucessor de Mandetta no ministério, Nelson Teich será ouvido nesta quarta-feira (5/5). O depoimento previsto para tarde desta terça-feira (4/5) foi adiado. O oncologista ficou no governo por 29 dias e foi sucedido por Eduardo Pazuello, ministro da Saúde mais longevo no na pandemia.
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A oitiva do ex-ministro militar, prevista para quarta-feira, será feita em 19 de maio. O general informou que não poderia comparecer pessoalmente nesta semana por ter entrado em contato no fim de semana com duas pessoas diagnosticadas com Covid-19. A decisão sobre a nova data foi aprovada pelo colegiado de forma simbólica, após sugestão do presidente do colegiado, senador Omar Aziz (PSD-AM), apesar de parlamentares governistas chegarem a defender a oitiva online. 
No início da sessão, aliados do Planalto também atuaram para adiar o início dos trabalhos. O senador Eduardo Girão (Podemos-CE) chegou a apresentar requerimento com objetivo de garantir a realização de depoimentos para apurar possíveis irregularidades de estados e municípios. Para ele, este deve ser foco da comissão, mas a reunião desta terça-feira teve resultado positivo. "O depoimento do ex-ministro Mandetta foi satisfatório, todos puderam fazer as perguntas que desejavam e isto permitiu a obtenção de informações para o início dos trabalhos que devem, sempre, ser pautados pela isenção e imparcialidade, um espaço para o contraditório e a ampla defesa”, disse. "É imperioso evitar-se o prejulgamento para que a CPI tenha credibilidade", completou.
Na avaliação do também governista Marcos Rogério (DEM-RO), o depoimento demonstrou que havia incerteza até por parte da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre quais medidas adotar. "O que nós tivemos foi a confirmação de que o enfrentamento da pandemia foi encoberto de incertezas desde o começo, partindo da própria Organização Mundial da Saúde. Não há uma afirmativa certa e segura capaz de demonstrar que as opiniões do presidente ou de quem quer que seja tenham sido impróprias. O próprio Mandetta reconhece a insuficiência de dados, informações e certezas em seu tempo como ministro", afirmou.
Ao longo de mais de cinco horas, o primeiro ex-ministro da Saúde de Bolsonaro afirmou que as decisões do presidente eram guiadas por um “assessoramento paralelo”. Segundo Mandetta, o presidente tinha ciência do possível impacto das decisões no número de mortes caso ações não baseadas em critérios científicos fossem adotadas. "Alertei sistematicamente inclusive com a projeção de 180 mil mortos", afirmou em referência à previsão de que o Brasil poderia chegar a esse patamar em 31 de dezembro de 2020. Esse número foi atingido em 11 de dezembro.
O cenário mais sombrio - o cenário mais otimista falava em 80, 90 mil óbitos - foi apresentado ao presidente em reunião no Palácio da Alvorada em 28 de março em que estavam presentes outros ministros incluindo Walter Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos, na época titulares da Casa Civil e da Secretaria de Governo, respectivamente. No dia, Mandetta entregou a Bolsonaro uma carta em defesa do isolamento social. 
Mandetta citou influência dos filhos, especialmente do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) e do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), e a presença de ambos em reuniões no Palácio do Planalto.  "Testemunhei várias reuniões em que o filho do presidente, o vereador fluminense, estava nas reuniões fazendo anotações. Tinha reuniões às quais eu fui convocado. Tinha assessoramento paralelo", afirmou.
O ex-integrante do governo Bolsonaro negou confrontos diretos com o presidente e com colegas de Esplanada,além do episódio envolvendo a fala de Onyx Lorenzoni (Secretaria-Geral) sobre sua eventual demissão. "Frontalmente, não me lembro de ninguém", disse. "Fora do Ministério da Saúde, ele [Bolsonaro] construiu algum aconselhamento que levou a esta tomada de decisão, mas não saberia nomear",  respondeu em relação à influência sobre o presidente.
A interferência dos filhos também foi um entrave nas relações com a China, país exportador de insumos hospitalares. Mandetta relatou um episódio em que precisou conversar com o embaixador por telefone porque Eduardo Bolsonaro, assessores do Planalto e o então ministro do Itamaraty Ernesto Araújo se opuseram a uma reunião presencial.
O ex-ministro disse que nunca houve uma discussão áspera com o presidente a respeito da adoção do isolamento social — uma das divergências que levou à sua demissão — mas afirmou que a discordância era pública. "Todas recomendações com base na ciência, vida e proteção às fiz em público, nos conselhos de ministros, diretamente ao presidente", completou. Segundo Mandetta, não foi apresentada qualquer proposta técnica do Palácio do Planalto sobre o tema.
<h3>Interferência de Bolsonaro</h3>
Questionado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) sobre pressão do presidente, Mandetta disse que a divergência em relação às recomendações técnicas de combate ao novo coronavírus era feita de forma indireta. "Diretamente a mim, pressionado, para mudar, somente com atos que ele executava", respondeu o ex-ministro. "O Ministério foi confrontado publicamente. Isso dava uma informação dúbia à sociedade", completou.
Já em resposta ao senador Humberto Costa (PT-PE) sobre uma opção política deliberada de apostar na imunidade de rebanho — mesmo sem vacina —  como forma de solução da crise sanitária, Mandetta disse que essa era a "impressão", mas não podia assegurar as motivações do Palácio do Planalto. "Achavam que quem iria contrair a doença eram as pessoas que viviam em favelas apenas, gente que não tinha como não se aglomerar, não tinha saneamento básico. Achavam que iria morrer só quem tinha mesmo de morrer, os idosos", afirmou. 
A pergunta foi feita com base na pesquisa "Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil", publicada em janeiro pela Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, em conjunto com a Conectas Direitos Humanos. O estudo analisou mais de 3 mil normas e "revelou a existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo Governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República”.
À frente do ministério até abril, Mandetta apontou entraves técnicos para a primeira resposta à pandemia, incluindo a dinâmica do mercado global de insumos, no caso de testes e EPIs (Equipamento de Proteção Individual), além da limitação de informações sobre a dinâmica de transmissão do vírus no início da crise. Ele também negou ter recebido qualquer proposta de compra de vacinas porque na época as pesquisas sequer haviam chegado aos testes clínicos. 
<h3>Uso da cloroquina </h3>
O ex-ministro da Saúde destacou que o presidente Jair Bolsonaro defendia o uso da cloroquina sem evidências científicas, mas negou qualquer recomendação por parte do Ministério da Saúde ao Exército para produção do medicamento para tratar pacientes com Covid-19."Lembro do presidente sempre destacar a questão da cloroquina como válvula de tratamento precoce, embora sem evidências científicas", afirmou. 
O ortopedista também negou qualquer recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) para uso da medicação em pacientes infectados pelo novo coronavírus. Segundo Mandetta, a compra pelo SUS de drogas sem evidências científicas implicaria em improbidade administrativa.
Em uma das reuniões citadas por Mandetta, foi apresentado um papel timbrado que seria uma minuta de um decreto para determinar que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) alterasse a bula da cloroquina para incluir a recomendação de tratamento para Covid-19. O presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, se recusou a fazer essa alteração. "Barra torres disse 'não'. E Ramos disse que era [uma alteração] informal", disse Mandetta em referência ao ministro Luiz Eduardo Ramos.
Esse episódio já havia sido relatado por Mandetta, inclusive no livro "Um paciente chamado Brasil — os bastidores da luta contra o coronavírus", lançado em setembro, cinco meses após deixar o governo, em 16 de abril. Mandetta disse não saber quem foi responsável pela redação da minuta.
Segundo o ex-ministro, na sua gestão, a pasta orientou o uso da cloroquina apenas para pacientes graves, como uso compassivo, após consulta ao Conselho Federal de Medicina (CFM). "Mesmo porque é droga, para uso indiscriminado, a margem de segurança dela é estreita", afirmou. Mandetta lembrou que a medicação provoca reações adversas e que automedicação pode "ser muito perigosa para as pessoas".
O uso da cloroquina no SUS para pacientes de Covid-19 passou a ser recomendado no fim de março, por meio da Nota Informativa No 5/2020 estabelece, de 27 de março, assinada por Sandra de Castro Barros e Denizar Vianna de Araújo, na época, respectivamente, diretora do Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos (DAF) e secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (SCTIE) do ministério. Uma nova versão da nota foi publicada em 1º de abril. 
Na época, a recomendação era para uso compassivo para pacientes graves internados, de forma a permitir o acompanhamento de possíveis efeitos colaterais, como disritmia cardíaca.  “O Ministério da Saúde do Brasil disponibilizará para uso, a critério médico, o medicamento cloroquina como terapia adjuvante no tratamento de formas graves, em pacientes hospitalizados, sem que outras medidas de suporte sejam preteridas em seu favor”, diz o texto.
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JOTA

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