Fora da agenda, reuniões de figuras do alto escalão do governo para tratar de compras de vacina e medicamentos no contexto de combate à Covid-19 despertaram suspeitas sobre negociações ilícitas – como tratativas sobre propina e distribuição de remédios sem comprovação científica contra o vírus. Para representantes das empresas que encampam relações com governos e tem o lobby como ferramenta essencial de trabalho, o momento pede dose extra de cuidados.
Milton Seligman, professor do Insper, coordenador do curso de relações governamentais e negociação, comenta esse contexto. Conheça o JOTA PRO Poder, cobertura regulatória e institucional dos Três Poderes que faz a diferença para tomadores de decisão.
Pandemia e influência no setor público
Desconfianças sobre encontros sem registro do Ministério da Saúde e do Planalto vieram à tona nos últimos dois meses. Por si só, compromissos que não estão oficializados na agenda não tratam necessariamente de assuntos escusos, mas, com a pressão do momento, falta de transparência não é um indicativo desejável mesmo em circunstâncias legítimas.
Embora a pandemia tenha dado destaque às conversas entre representantes do governo e de empresas – ou supostos negociadores capazes de disponibilizar um ou outro item urgente, não apenas vacinas –, a prática de lobby é legítima e bastante antiga.
“Há três atividades em relação ao Estado que acontecem em todas as formas de governo: a luta pelo poder, que acontece na Roma Antiga ou antes mesmo; quando um dos grupos vence e assume o controle da sociedade, tendo que governar, executar ações do Estado e traçar políticas; e por último, a tentativa de influenciar políticas públicas, o lobby”, diz Seligman.
“O lobby é inerente à atividade humana, em todas as sociedades e organizações de governo, dentro e fora de democracias. Mas, nos momentos críticos, como uma pandemia, as consequências são muito mais agudas”, completa.
Estratégias do lobby
Essa influência também ocorreria a partir de diferentes atividades – não partindo apenas de associações e empresas, por exemplo –, porém com diferentes níveis de força, que devem ser observados pelo Estado. “Quando se observam os interesses privados, como em processo em que o comprador é o Estado, se tenta induzir a comprar. O que precisa ficar claro é quanto é legítimo que esse interesse privado influencie a política pública. É preciso mostrar o quanto, sobretudo, o conjunto da sociedade ganha”, diz o professor, que foi vice-presidente de corporate affairs da Ambev.
“Por princípio, quem influencia precisa ser transparente quanto a qual seria a vantagem que ele teria com certa política pública; o que governo e Estado ganhariam; e, por fim, o benefício para o conjunto da sociedade. Ou mesmo responder à pergunta ‘por que quem perde tem que perder?'”, explica.
Manobrar opinião pública também é uma estratégia. “A institucionalização do lobby, que em alguns países é mais forte, estabelece alguns códigos de ética, que determinam como agir. Uma das questões é criar os registros dos encontros entre quem tem representação pública e quem não tem. A inexistência disso pode constituir em um problema”, completa Seligman.
No contexto das reuniões fora da agenda oficial, ganhou manchete em diferentes jornais esse tipo de encontro do presidente Jair Bolsonaro e do atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, com a farmacêutica Pfizer em meados de junho. Não há qualquer suspeita rondando a tratativa – embora não se saiba exatamente o que foi falado.
No caso da Pfizer, no âmbito da CPI da Covid-19, ficou expressa a relevância de todas as negociações, em comunicações oficiais, terem sido documentadas pela empresa, incluindo os contatos com ofertas de vacina e as condições para o negócio. Se da parte do governo há suspeitas de ilegalidades nas tratativas de compras de algumas vacinas (como a indiana Covaxin), nessa situação a empresa se cercou de registros demonstrando idoneidade.
Imposição de regras e limites
No caso brasileiro, há discussão na Câmara dos Deputados caminhando no sentido de institucionalizar e delimitar regras para o lobby em relações com os Poderes há mais de uma década. O debate se dá no Projeto de Lei 1202/2007. “É preciso evitar que ações legítimas sejam boicotadas. É muito diferente a ida de um grupo indígena ao Congresso em comparação com uma associação que tenta forçar a abrir o comércio dentro de uma pandemia”, afirma.
“Um risco é que a solução trivial para o problema é impor que todo interesse privado não possa ser negociado com o Estado, o que é impossível. A influência privada nas políticas públicas não é por si negativa, desde que o interesse público se sobressaia”, diz.
Além de o Estado ter o dever de analisar qual é o impacto na sociedade, se positivo ou negativo, é preciso que sejam criadas alternativas para haver uma equiparação de forças entre os diferentes pontos de vista. Isso não significa limitar a atuação de certos grupos, mas garantir que todos sejam ouvidos: “Esse equilíbrio de forças não depende do tamanho apenas, de quem é mais ou menos poderoso, e estipular que todos sejam iguais. Todo mundo tenta e pode influenciar”.