
O BNDES divulgou nesta semana um lucro líquido de R$ 41,7 bilhões em 2022, resultado impulsionado por fatores extraordinários, como os dividendos da Petrobras. O resultado recorrente foi de R$ 12,5 bilhões, com alta de 46%. Mesmo antes da divulgação dos números, logo que a nova legislatura teve início, em fevereiro, o banco já era alvo de projetos de lei tanto na Câmara quanto no Senado que propõe mudanças relacionadas ao financiamentos de obras no exterior. A reação foi ainda maior depois que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) defendeu que o BNDES volte a financiar projetos de empresas brasileiras em obras no exterior.
As propostas pedem a modificação, entre outras normas, da Lei 5.662/71, que enquadrou o antigo BNDE, atual BNDES, como empresa pública; da Lei 4.131/62, que trata das remessas, por quaisquer empresas públicas, de valores para o exterior, e da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Uma das propostas (PRS 19/2023) é do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), que defende que qualquer empréstimo externo do BNDES com linhas superiores a U$ 100 milhões tenha aval do Senado para acontecer. O texto prevê que seriam previamente proibidas quaisquer linhas de crédito para países inadimplentes durante 10 anos.
Na Câmara, há o Projeto de Lei Complementar (PLP) 1/23 do deputado federal Mendonça Filho (União-PE), apresentada no segundo dia da nova legislatura. Segundo ele, há carência de infraestrutura básica, como saneamento, rodovias e habitação no Brasil. “Isso posto, levanta-se a dúvida acerca de um viés ideológico na concessão de empréstimos subvencionado para obras e serviços realizados no exterior”, argumentou o deputado.
Em conversa com o JOTA, Mendonça Filho disse que “o PL já foi uma primeira iniciativa brecando essa posição açodada do presidente Lula de permitir um empréstimo que sequer foi protocolado junto ao BNDES, para beneficiar a Argentina”.
Em visita ao país vizinho, em 23 de janeiro, Lula esteve com o presidente argentino, Alberto Fernández, e disse que o BNDES poderia financiar uma parte da obra do gasoduto Néstor Kirchner, no oeste do país. A finalização das obras do gasoduto contribuiria para reduzir a dependência do Brasil com o gás boliviano.
“Eu acho que essa [a proposição de outros projetos] é uma reação da Casa, uma mobilização contra a posição adotada pelo presidente Lula e por seu partido, o PT. Não cabe ao Brasil, que convive com uma realidade de várias adversidades [na infraestrutura, habitação, saneamento básico e rodovias], socorrer a Argentina. Nós mal temos recursos para que o país possa encaminhar seus projetos em relação ao futuro, imagine que tenhamos que socorrer a Argentina”, disse Mendonça Filho.
Em comum, todos os parlamentares que lançam críticas ao financiamento do BNDES a obras no exterior afirmam que países como Venezuela e Cuba deram calotes. Na cerimônia de posse de Aloizio Mercadante na presidência do BNDES, em fevereiro, Lula falou sobre o tema e sugeriu que a falta de pagamento se deu devido a divergências diplomáticas com o Brasil a partir do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016. Para o presidente, os países são “nações amigas” e voltarão a honrar seus compromissos.
Em 2020, no governo de Jair Bolsonaro (PL), o Brasil rompeu formalmente as relações com a Venezuela de Nicolás Maduro. O Brasil também ficou sem embaixador em Cuba desde 2016, e vice-versa, a partir do mandato de Michel Temer na presidência da República.
Programa de financiamento lançado em 1998
O programa de financiamento e exportação de bens e serviços do banco foi lançado oficialmente em 1998 e suas ações foram interrompidas em 2017, após escândalos de corrupção envolvendo a contratação de empreiteiras.
Apesar de gerar controvérsias e ser uma temática com margem à desinformação, os empréstimos financiados pelo BNDES são feitos a partir da moeda brasileira e no Brasil para empresas também nacionais executarem suas obras em outros países. Ou seja, é um financiamento de exportação de serviços. Logo, quem recebe a quantia destinada ao financiamento é a empresa brasileira que exporta os seus serviços para o exterior, e não o país em que a obra será realizada. Já as dívidas são pagas, em parcelas, pelas nações estrangeiras que receberam os serviços. A realização do pagamento ainda é feita com uma taxa de juros anual, acordada entre o governo federal e o país que recebeu os empréstimos.
”Para a realização dos projetos, sempre há um estudo técnico, uma análise jurídica e um cerco de garantias. O BNDES é muito cuidadoso no que faz e na avaliação que realiza dos projetos. Então, é muito difícil existir um projeto que seja de má qualidade. Esses empréstimos [ofertados às empresas nacionais] são cercados de garantias, o banco tem um caráter muito técnico na decisão que ele irá prestar na avaliação de seus projetos”, comentou Nelson Marconi, coordenador executivo do Fórum de Economia da FGV.
Mario Schapiro, professor de Direito também na FGV, disse não achar “necessariamente absurdo” que o Brasil financie atividades de outros países, uma vez que diversas outras nações fazem isso, como os Estados Unidos, a China e os países europeus. A questão importante a ser feita, segundo ele, é qual o interesse nacional em promover esse financiamento e qual o custo de oportunidade em fazê-lo — isto é, o que o Brasil deixaria de financiar em seu território para subsidiar um empreendimento no exterior. ”Eventualmente, pode valer a pena, seja por um interesse geopolítico, seja mesmo por um interesse diretamente econômico, como a constituição de rotas de comércio, infraestruturas econômicas que venham a beneficiar o Brasil”, complementou.
Para Marconi, o retorno da prática de financiar empresas brasileiras em obras no exterior seria positivo, pois um bom projeto — acima das escolhas de qual país possivelmente seria escolhido — demandaria que empreiteiras nacionais fizessem o desenho dele e, com sua possível aprovação, contribuiria na contratação de empresas também locais e na geração de empregos para a execução das obras. Ou seja, para ele, essa prática gera impacto positivo para a economia.
”Lógico que um projeto direcionado para o mercado interno também tem esse impacto, talvez até maior. Mas um projeto destinado a ser implementado fora do país também fará com que empregos sejam gerados aqui e que muitas empresas levem os seus colaboradores a atuarem no local da obra”, afirmou Marconi.
Schapiro salienta que os empréstimos devem levar em conta uma questão de custo e efetividade: dados os recursos escassos do BNDES, essa é a melhor alocação financeira para gerar emprego, renda e crescimento no Brasil?
”Nesse sentido, essa avaliação é a mesma que deve perpassar toda a política operacional do banco, essa política é o que estabelece as escolhas do BNDES. A política operacional tem escolhido os setores com maior capacidade de alavancagem do desenvolvimento? A questão, portanto, é menos de se saber se as empresas executam obras no Brasil ou no exterior e mais de saber se esse suporte financeiro maximiza retorno para os propósitos de uma política de desenvolvimento”, comentou.
Debate ficou ideológico
Os dois especialistas falam sobre como os debates em torno dos financiamentos do BNDES a obras no exterior se tornaram, por vezes, ideológicos. Para Schapiro, o BNDES é um banco público e como tal é sujeito ao debate público. E, como o banco teve uma atuação destacada nos anos 2010, tornou-se um ator central da controvérsia eleitoral, que nem sempre prima pela melhor qualidade.
”Parece-me inevitável que agências de governo venham a se tornar objeto do debate público – faz parte da democracia. Há, no entanto, dois pontos a serem destacados. De um lado, o banco, assim como as demais agências de governo, deve procurar o máximo de prestação de contas, sobretudo para se proteger de críticas levianas e impróprias – e o BNDES aprimorou significativamente seus mecanismos de informação nos últimos 15 anos. De outro lado, a imprensa precisa ser cuidadosa em apontar problemas de uma forma consistente, sem se deixar levar por ideologias, qualificando, portanto, o debate público”, comentou.
Marconi também acredita que a discussão também possui um forte componente ideológico, pois quando esse debate entra em cena, são sempre citados os casos de Cuba, Venezuela e de governos mais ideologicamente orientados para a esquerda e, a partir disso, começam a haver questionamentos de se essa prática deveria ser posta em prática ou não.
”O problema é que, justamente, por conta desses empréstimos os governos acabaram não pagando, mas isso não significa que você faça para esses países ou empresas que não quitaram suas dívidas, e não possa fazer para outros países. Então, a discussão tem um peso ideológico, mas em parte porque esses empréstimos foram feitos a três países e eles não pagaram. Porém, a quantos outros países que poderíamos prestar esses serviços? São casos específicos e que devem ser tratados de outra forma e pensar se eles [os empréstimos] realmente deveriam ser retomados ou não. Mas vários outros países teriam interesse nesse projeto e esses que o Brasil deveria procurar”, complementou Marconi.
Posicionamento do BNDES
Um dia após o encontro entre os presidentes Lula e Fernández, o BNDES emitiu um comunicado afirmando não existir uma demanda ou previsão (por parte do BNDES) para financiar projeto de serviços de infraestrutura no exterior.
”Qualquer alteração nessa política passará necessariamente por um entendimento com o Tribunal de Contas da União (TCU), uma vez que o presidente, Bruno Dantas, tem reforçado o papel de acompanhamento colaborativo das políticas públicas por parte da referida instituição”, disse o BNDES em comunicado. (Confira a nota na íntegra).
Além disso, durante uma coletiva de entrevistas com jornalistas, em 14 de fevereiro, o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, descartou a possibilidade de o banco financiar o gasoduto na Argentina. ”O BNDES não financia obras no exterior”, disse ele.
Em um outro episódio anterior, durante uma entrevista ao UOL, em 9 de fevereiro, Mercadante havia adotado uma postura semelhante em relação ao empréstimo de crédito financeiro a outro país vizinho. Na conversa, ele indicou que não há planos para o BNDES conceder empréstimos à Venezuela e que o financiamento é ”irrelevante” e se tornou um assunto ”ideologizado”. Além disso, ele também citou que o país possui uma dívida vencida com o Brasil de cerca de US$ 900 milhões, e outra a vencer no valor de US$ 172 milhões.
Projetos na Câmara
Além de Mendonça Filho, outros parlamentares também apresentaram propostas semelhantes que tratam de remessas de recursos direcionados ao exterior. O deputado Kim Kataguiri (União-SP) apresentou o PLP 10/23, que altera, entre outras normas, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e a Lei 4.131/62, que trata das remessas, por quaisquer empresas públicas, de valores para o exterior.
Por sua vez, o PLP 13/23, proposto pela deputada Greyce Elias (Avante-MG), veda o uso de recursos do Tesouro Nacional, por meio de bancos públicos, em financiamento a projetos estrangeiros, bem como transferências voluntárias ou concessão de subsídio, aval ou garantia.
Já o PLP 22/23, apresentado pelo deputado Alfredo Gaspar (União-AL), institui critérios para a concessão de crédito pelo BNDES com vistas a financiar a execução de projetos no exterior.
As propostas apresentadas pelos deputados ainda serão despachadas para análise das comissões permanentes e do Plenário da Câmara dos Deputados.
Projetos no Senado
Além da proposta de Flávio Bolsonaro, o senador Plínio Valério (PSDB-AM) apresentou proposta sobre o tema. O PL 87/2023 acrescenta dois parágrafos à Lei 5.662, de 1971. De acordo com o projeto, o BNDES ficaria proibido de financiar, conceder crédito ou prorrogar a validade de operações já contratadas com governos estrangeiros, suas empresas ou outros órgãos e entidades de sua administração direta ou indireta. A única operação permitida seria o financiamento da exportação de bens e serviços produzidos no Brasil.
Já o senador Cleitinho (Republicanos-MG) apresentou o PRS 13/2023, para que qualquer empréstimo externo do BNDES passe antes pelo Senado para que possa se efetivar.
*Com informações das Agências Senado e Câmara