
Uma proposta que tramita na Câmara dos Deputados visa alterar a palavra “gênero” para “sexo” na Lei Maria da Penha para que os direitos previstos na norma não sejam concedidos a “outros grupos sociais que não exclusivamente a mulher”. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) também deve julgar processos sobre a aplicabilidade da lei para pessoas transexuais e travestis.
O Projeto de Lei 2746/21 foi apresentado à Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados e pretende alterar a palavra “gênero” por “sexo” na redação da Lei Maria da Penha, além de determinar que o atendimento psicossocial do agressor busque a restruturação social e da família.
O autor, deputado Francisco Jr. (PSD-GO), presidente da Frente Parlamentar Católica, sustenta na justificativa do projeto que a lei tem atendido “por vias transversais” outros grupos sociais “que não exclusivamente a mulher”. A proposta será analisada pelas comissões de Direitos Humanos e Minorias; de Defesa dos Direitos da Mulher; e de Constituição e Justiça e de Cidadania.
Júlia Vidal, doutoranda em Direito na Universidade de Brasília (UNB) e coordenadora jurídica do projeto Transpasse: apoio jurídico a travestis e transexuais, explica que, a Lei Maria da Penha entende que a violência doméstica e familiar é a ação e omissão baseada em gênero. “A lei deixa claro que a abrangência de mulheres trans e travestis é necessária. Trata-se de experiências e identidades que se reivindicam enquanto pertencentes ao gênero feminino, então é uma associação tácita”, afirma
Para Valéria Scarance, promotora de Justiça no Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) e professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a Lei Maria da Penha “trouxe conceitos muito importantes e inovadores à época como o de violência baseada no gênero e de relação homoafetiva. Quando a lei foi feita, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não havia reconhecido juridicamente as relações entre pessoas do mesmo sexo e a lei já protegia vítimas mulheres nessas circunstâncias”.
Vidal afirma que as mudanças propostas pelo PL representam um retrocesso e que, caso sejam aprovadas, legitimariam a violência contra pessoas trans e travestis. “Na medida em que o Estado fecha os olhos para a violência, ele se torna conivente com ela”, observa.
Scarance destaca que alterar a palavra “gênero” para “sexo” na Lei Maria da Penha poderá prejudicar a proteção jurídica de quem necessita. “Significa regredir a lei ao determinismo biológico, ao binarismo, a um momento que não existe mais em nosso país, quando a identidade de gênero era determinada pelo órgão sexual”, explica.
Para Márcia Rocha, advogada conselheira da OAB-SP e coordenadora do projeto Transempregos, “a Lei Maria da Penha tem que ser uma semente para que se olhe todas as questões de violência doméstica de um modo geral”, destaca. A advogada ressalta que a proposta de tirar direitos de pessoas LGBTs, além de retrógrada, pode ser vista como uma tentativa de conquistar eleitores.
No mesmo sentido, Vidal explica que “o PL pode ser compreendido dentro do movimento de ofensiva antigênero como uma política de Estado. Essa política não se restringe ao Brasil, pesquisadores apontam que o movimento é transnacional, e ela visa combater e se opor a conquistas feministas e conquistas dos direitos LGBTs”.
Jurisprudência
Está em tramitação no STJ um recurso do MPSP (REsp 1.977.124/SP) que questiona uma decisão que negou a medida protetiva a uma mulher trans que foi agredida pelo pai. Os desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) entenderam que existe “impossibilidade jurídica de fazer a equiparação ‘transexual feminino = mulher”.
No caso, a transexual sustenta que foi agredida e perseguida pelo pai, mas conseguiu fugir. As agressões deixaram marcas visíveis que foram constatadas por autoridade policial. Ao negar o recurso, o desembargador Francisco Bruno afirmou que “não é possível dizer, como comumente se diz, que o transexual feminino ‘se sente mulher”.
Ele alegou que não seria possível conceder a medida protetiva com base na Lei Maria da Penha, somente poderia enquadrar o caso no Código de Processo Penal. Porém, o magistrado entendeu que não teriam elementos que justificassem isso, já que o pai responde a um processo por desacato e não por violência contra a pessoa, e não teriam outras ocorrências entre a vítima e ele.
Scarance lembra que embora o entendimento da aplicação da Lei Maria da Penha para mulheres trans e travestis não seja pacífico, “há inúmeros julgados pela aplicação da lei nessas circunstâncias. Esse entendimento, inclusive consta de Enunciados Nacionais da Copevid (Ministério Público), Fonavid (Judiciário) e Condege (Defensoria)”, observa.
Para Vidal, o STJ deve reconhecer a aplicabilidade da lei para essa população. Ela ainda afirma que o desembargador “não aplicou o que está escrito na lei como gênero e foi na contramão de toda a conquista de direitos de pessoas trans”, destaca.